A disciplina e a autoridade do professor
Não é aconselhável...
...dando como pretexto a necessidade de
manutenção da disciplina e da autoridade, lançar mão, com frequência, de
medidas punitivas: nota zero, censuras violentas, penalidades legais, etc.;
Medidas
dessa natureza só se explicam em casos realmente graves. Entretanto, parece que
a chamada "indisciplina" — termo que mal se compreende como pôde vir
a aplicar-se à conduta das crianças, e coisa que se deveria esperar só
ocorresse excepcionalmente nas salas de aulas — constitui, ao ver de muita
gente, um... fato escolar por
excelência. Quantos professores têm a sacudir-lhes os nervos o seu indefectível
"caso" cotidiano de "indisciplina" na classe, seja de
ensino primário, seja de ensino médio. E com que triste desconhecimento da
verdadeira natureza do problema, narram o "caso" aos colegas, às
vezes, com luxo de pormenores e amargo cortejo de comentários sobre as medidas
de que se valeram na ocasião, sobre o desmazelo dos pais, as vicissitudes
reservadas à nova geração, que qualificam de "mole", esportiva,
estragada, irresponsável .. . Em suas jeremiadas só acham consolação no fato de
poderem proclamar que souberam "fazer valer sua autoridade" na
ocasião, aquela autoridade que é, para eles, o direito de punir conferido por
lei, direito concebido como inerente ao cargo que exercem e decorrente da
função que devem desempenhar. A "autoridade" é vista aí como um dom
que acompanha a função, "uma espécie de imposto moral devido pelos
alunos", quase uma compensação ou paga dos sacrifícios exigidos pelo
exercício da missão docente. Por meio de zeros,
gritos, ameaças, intimidações, logram certos professores, passageiramente
embora, fazer reinar na sala de aula o espetáculo de uma ordem aparente,
constituída de silêncio, imobilidade e subordinação dos discentes às suas
determinações. E quando isso conseguem, proclamam gloriosamente haverem
vencido, sem ajuda de outrem, o monstro da "indisciplina",
salvaguardando, por esse meio, a dignidade pedagógica, o "princípio da
autoridade", e a própria autoridade de que se acham investidos.
Será, porém,
essa a disciplina que a escola deve exigir e inculcar? essa a verdadeira
autoridade do mestre?
Mesquinha
coisa seria a Pedagogia e desprezível arte a Didática se tudo nelas se
reduzisse à busca de meios de dar aos mestres essa precaríssima vitória no
eterno "conflito de gerações", que se desenrola nas salas de aulas
entre a inocência nativa das crianças ou a viçosa espontaneidade do
adolescente, de um lado e, do outro lado, o formalismo neurastênico de certos
profissionais do ensino. É preciso dizer de uma vez por todas: nem aquele
espetáculo visível e comovedor de "ordem", que o rigor dos chamados
"mestres disciplinadores" faz baixar sobre as salas de aulas,
constitui verdadeira disciplina, nem o direito que invocam de impor normas e
punir infrações constitui autoridade verdadeira.
Sem dúvida,
toda educação é, sob certo aspecto, compressão ou coação. E esta compressão
visa à subordinação dos educandos a uma ordem superior e exterior a eles, e
cuja guarda, na sala de aula, está confiada ao professor. Mas daí a concluir,
por uma espécie de "imoralismo didático", que "os fins
justificam os meios", há um abismo. A disciplina que a sã educação aspira
a realizar é subordinação, sem dúvida, mas uma subordinação deliberada,
reflexiva, voluntária, a uma ordem exterior conscientemente aceita e
reconhecida como socialmente útil e moralmente boa. Que tal subordinação —
assentimento e não derrota — pode ser garantida e ensinada pela
"autoridade" do professor, é certo. Mas não se trata de sua
"autoridade de direito", dessa autoridade conferida por lei e
decorrente da função, cargo ou posto, mas da que lhe advém de suas próprias
qualidades, isto é, de sua inteligência, de sua cultura, de seu caráter, de seu
trabalho, de sua eficácia, numa palavra, de sua personalidade.
A autoridade
do professor não é dádiva do ofício docente; é uma conquista do ato pedagógico.
Não é, como se tem pensado, apenas um direito do professor; é, antes de tudo,
um dever, o maior dever do educador. Quando um professor entra, pela primeira
vez, numa sala de aula, os alunos o recebem, não com hostilidade, mas com
atitude expectante, com ares que parecem traduzir um anseio de contato com uma
personalidade superior, de cujo convívio e de cujas lições pressentem haver
proveitos possíveis. Eles esperam dos
mestres algo a que se julgam com atreito. Atitude de credores, dir-se-á, de
cobradores, em busca do que lhes é devido: ensinamentos, exemplos, apoio,
simpatia, saber, orientação. Decorridos alguns dias, eis que os alunos — como
se costuma dizer — "tomaram o pulso ao professor". Se nele
encontraram aquelas qualidades admiradas, de inteligência e caráter, de cultura
e boa vontade, de clareza e dedicação, o resultado será que o fantasma da "indisciplina"
se desvanecerá como por encanto, não chegará sequer a esboçar-se. Se, pelo
contrário, não'encontraram no professor o que admiram, não lhe reconhecerão
títulos ou credenciais ao acatamento e respeito e, indo da decepção à
indiferença, desta ao escárnio e à hostilidade, desencadearão, na classe, a
hidra de numerosas cabeças da "indisciplina", que o professor, a golpes
de zeros, de brados, de punições de
toda sorte, não conseguirá exterminar.
O que há,
porém, de mais triste em tudo isso é que raros, raríssimos, são os casos de
verdadeira ou pura indisciplina da classe, isto é, nos quais a culpa da
ocorrência cabe exclusivamente aos alunos. O estudo exaustivo dos
"casos" revela, quase sempre, como causa ou ao menos condição mais
remota e mais profunda, uma deficiência do professor. Talvez não haja exagero
em afirmar que não há indisciplina sem certa cumplicidade do professor.
Em
conclusão: não se fie demasiadamente o mestre, ao tratar com os alunos, na
chamada "autoridade de direito", isto é, na que a lei confere à
função; efetivamente não é a função que deve dar prestígio ao que a desempenha
inas este é que há de dignificar aquela. Cuide, pois, cada docente de aprimorar
suas qualidades pessoais, sua cultura e sua técnica pedagógica e verá que,
quanto mais, por esse meio, conquista e consolida "autoridade de
fato" sobre a classe, tanto menos — e por isso mesmo — terá necessidade e
ocasião de lançar mão de sua "autoridade de direito".
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Fonte:
Didática Mínima, por: Rafael Grisi. Companhia Editora Nacional, 10ª Edição. São Paulo, 1978, pág. 80-83.
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