sábado, 18 de junho de 2016

Que é literatura?

Que é literatura?
No século XIX, alguns críticos, como Sílvio Romero, entendiam por literatura (do lat. littera, "letra") toda a produção escrita de um povo, mesmo bilhete de namorado ou receita médica. Hoje não é assim. Lite­ratura, agora, é tudo que está escrito com a finalidade de distrair o espírito e agradar a sensibilidade. Física e Biologia, por exem­plo, não são literatura, ainda que leiamos belos textos dessas disciplinas. Enfim, não são literatura porque sua missão precípua é informar, e sua linguagem é apenas instrumento ou veículo de conhecimentos. Ao contrário, num poema, a linguagem é matéria essencial e não um instrumento para se chegar a outra coisa. O caráter ver­bal ou linguístico participa da essência da literatura. A biologia, a química ou a física poderiam até dispensar as palavras, substi­tuindo-as por um código de símbolos algé­bricos. Se fizermos isso com um poema, es­taremos destruindo sua estrutura, negando seu ser. Portanto, literatura é a arte cuja essência é a palavra e o discurso. Literatura é novela, romance, conto, teatro, enfim, to­das essas leituras que você curte sem preci­sar pôr na prática no dia seguinte, sem que você precise provar se são verdadeiras ou fictícias. Repare que nós dissemos leituras. Isso identifica a literatura apenas com a es­crita, e aí já topamos com um primeiro pro­blema. Pois a arte da palavra pode ser ape­nas oral, como se observa no folclore. Se é assim, as canções populares do rádio também constituem modalidade literária. E não precisam ser escritas, porém registra­das de uma ou outra forma. Antes do apa­recimento da escrita, os povos antigos já se divertiam com poemas, canções, rituais simbólicos. Ainda hoje, muitos dos sambis­tas de morro compõem "de cor", sem lápis e papel. O essencial é que a literatura seja feita com palavras destinadas a agradar nosso espírito. Só isso. O resto você enten­derá depois. Agora estamos preocupados em mostrar como se estuda literatura. Por isso, vamos partir de alguns pontos bási­cos:
1 — Se você não entende nada de na­da da vida, vai ser difícil entender nosso papo. Não pedimos que você pense como um velho. Nada disso. Mas você deve pelo menos saber algo de amor, amizade, emo­ção, ódio, intriga, destino, ironia... Estas coisas são a essência da vida... Que é vida senão esse estar-aí-nesse-mundo-cão-de-todo-dia? Vida é seu coração pulsando hoje, dormindo amanhã; é sua chateação na se­mana, sua alegria no sábado... Vida é tudo isso e muito mais. Vida é o tudo de você, e, como o tudo não cabe nas palavras, é im­possível definir a vida, entende? A vida também compreende certas coisas impos­síveis, só realizáveis pelo sonho: voar, co­mo os deuses da mitologia; ganhar na loteria aqui e agora, neste instante... Bater um papo com Deus... Amar infinitamente, sem sombreado... Viver eternamente. Tudo isso é impossível, porém, coisas que cabem dentro da vida, não é? Pois então: a litera­tura pode exprimir tudo isso como se fosse verdade. Então a literatura significa e expri­me a vida em maior grau possível.
2 — Em literatura todo mundo imita todo mundo. Ninguém cria nada do nada, como — aliás — em todas as atividades humanas. Grandes poetas imitaram. Uma geração vai fornecendo seu material para a geração seguinte. A geração seguinte pode mesmo "satirizar" ou menosprezar a pro­dução anterior: isso é uma forma de levá-la em consideração. TRADIÇÃO é uma pala­vra muito importante em história literária. Isso não quer dizer que os grandes autores sejam passadistas ou tradicionalistas. Ao contrário, podem ser revolucionários. Transformar a tradição também é uma for­ma de preservá-la, enriquecendo-a. Todo grande autor do futuro um dia será passa­do.
3 — Uma pessoa pode estar numa das seguintes situações existenciais: a) voltada para si mesma (sonhando, refletindo, lem­brando, etc.); b) dialogando (o que pressu­põe um interlocutor real ou imaginário); c) sendo mencionada pelos outros. É o caso, por exemplo, de estarmos elogiando al­guém e esse alguém não está presente: é, portanto, um ausente, uma terceira pessoa. Resumindo, há basicamente três situações existenciais para um indivíduo, dentro da obra literária: ou ele fala para si, ou ele fa­la corri os outros, ou falam dele. Essas três situações existenciais se combinam para formar grande parte das obras literárias (contos, poemas, romances, etc.).
4 — As explicações anteriores são im­portantes para entendermos algumas no­ções fundamentais em poesia. Fundamen­tais e bastante relativas. Primeiro: se aque­le que fala está profundamente contagiado ou emocionado por aquilo que está dizen­do, seu tom é lírico. Isto não implica que ele esteja falando de si próprio; pode, ao contrário, falar da natureza ou de uma mu­lher. Se o poeta, contagiado por seu liris­mo, dirige a palavra a alguém, diremos que ele age dramaticamente (é preciso saber se esse interlocutor é ou não é importante, pois a força lírica de um poema pode vir desse apelo a outrem). Se, finalmente, o poeta se refere a fatos já passados ou ain­da por ocorrer ou se ele, enfim, conta uma estória qualquer, diremos que seu lirismo se concentra numa narrativa. O poeta líri­co pode, portanto, falar de si mesmo, falar com alguém ou falar de alguém. Para que seja considerado lírico é fundamental que sua subjetividade emocional se revele na­quilo que ele está dizendo. Digamos, por exemplo, que você teve um grande amigo, que veio a falecer inesperadamente. Você escreve um poema sobre esse camarada. Você começa falando dele, à medida que as palavras, os versos, as rimas, as figuras vão apontando a emoção de você, que está escrevendo sobre ele. Digamos, por exem­plo, este começo:
Ah, era sempre a mesma pessoa
A mesma presença sem sombra
No mundo que mudava de manhã...
Seu silêncio era forte, bom, bem nascido.

Note que até aí não houve narração, pois não houve mudança de tempo verbal. É apenas uma lírica descritiva, que salta para o narrativo à medida que você come­ça a jogar com tempos verbais diferentes, que coloquem seu amigo em situações di­versas:
Um dia ele me disse que só tinha medo da tarde
Porque a tarde não tinha rosto nem peso...
Amou várias vezes Mas nele o amor era acidental,
Navalhada sem vestígio...
Seu corpo grande deslizava manso e leve
(Ficou furioso — mas calado — o dia que a tur­ma
o chamou de Pé-Boi...
 Ele nem sabia o que era... Depois riu...)

Finalmente, você pode jogar com o elemento dramático, introduzindo um diá­logo que tenha a capacidade de sustentar o mesmo clima emocional dos fragmentos anteriores. Esse diálogo pode dar-se entre seu amigo e outra pessoa. Pode também manifestar uma conversa sua com ele. Neste caso, o diálogo é hipotético, já que o in­terlocutor não pode responder:
Pê-Boi... Ainda ontem eu relia na memória uma
porção de coisas tuas
E não pude chorar.
Fiz força, mas não pude chorar
(certamente essa tua alma de lata devia andar por
perto pra me impedir qualquer evasão sentimen­tal).

5 — O estudo de um texto literário po­de dividir-se em dois planos. O primeiro de­les consiste no trabalho de compreender o que o autor diz. Para tanto, utilizamos nos­sos conhecimentos gramaticais e linguísti­cos. A segunda tarefa consiste em interpre­tar o texto de acordo com nosso ponto-de-vista particular em relação a ele. Assim, podemos utilizar nossos conhecimentos de psicologia, história, mitologia, moral, etc. Um mesmo poema pode aceitar diversas interpretações distintas e igualmente possí­veis. O quesito fundamental é que a com­preensão seja basicamente a mesma. Se dois leitores tiverem compreensão contrá­ria de um texto, um dos dois estará equivo­cado. Portanto, a compreensão é objetiva: todos precisam chegar a uma única com­preensão, uma vez que o texto diz basicamente alguma coisa. É claro que alguém pode compreender mais profundamente um texto, e ser admirado por sua capacida­de de penetração. Mas não poderá inventar o que o autor não disse. Ele poderá, tam­bém, valorizar, discordar do autor ou mos­trar as influências a que esteve submetido. Porém, isso não é compreender, é interpre­tar. A compreensão é obrigatória. A inter­pretação é livre. Repetimos: é importante compreender bem, para interpretar bem. Por brilhante que seja, uma interpretação (= julgamento, valorização, comparação, etc.) sempre se anula, quando houver algum erro na compreensão. Vamos a um exemplo muito claro, tirado de um poeme­to de Sousândrade, poeta romântico. É apenas uma estrofe com oito versos de cin­co sílabas. Repararemos principalmente nos elementos gramaticais que organizam o significado básico do poema.
Ouvindo (1861)
Ouvindo a voz bela,
Da estrela os fulgores
Diriam, tremiam
Nos seios do céu:
Seduzem aos sábios
Os lábios que as flores
De um canto de encanto
Lhes dão, qual o teu.

Passemos, pois, aos dados gramaticais que abrem a compreensão. Teremos, ini­cialmente, de saber a quem ou a que se re­ferem os verbos. Portanto, determinaremos o sujeito dos verbos; se necessário, chama­remos a atenção sobre outros termos oracionais. Assim,
Ouvindo a voz bela,
já levanta o problema de saber: quem ou­ve? o que exatamente está sendo ouvido? de quem é a voz que se ouve? O verbo ou­vindo não marca nem plural, nem singular. Isso dificulta a determinação do sujeito, que é fulgores. Podemos representar a for­ma sintática da seguinte maneira: "Os ful­gores da estrela, ouvindo a voz bela, di­riam, tremiam". Assim, fulgores também é sujeito dos verbos dizer e tremer. "Nos seios do céu" é um adjunto adverbial de lu­gar. Teremos, portanto, a seguinte com­preensão: Ao ouvir uma voz muito bela (provavelmente de mulher), até os brilhos estelares se admirariam, lá em cima, no fir­mamento. E que foi que disseram?
Seduzem aos sábios
Os lábios que as flores
De um canto de encanto
Lhes dão, qual o teu.

O sujeito de seduzem é lábios; dão é predi­cado de flores: as flores dão seu encanto a eles, os sábios (= lhes), que são seduzidos pelos lábios das flores. Temos, pois, a se­quência: os sábios são seduzidos pelos lá­bios das flores, que se oferecem a eles. Tais lábios saem de um "canto de encanto". No caso, a palavra canto pode significar tanto "lugar, recanto" como "canção, cântico".
Essa ambiguidade não atrapalha o essencial do poema. Ao contrário, valoriza, pois  as duas significações "jogam" alternativamente a imaginação do leitor. Afinal, qual o sentido da última frase (qual o teu)? Certamente é uma comparação com o encantamento de alguém que está diante do poeta, provavelmente a mulher mimoseada pela poesia. Essa última indicação da mulher galan­teada representa o elemento dramático atenuado. É em função dela que o poeta expande seu lirismo sensual, materializado nas estrelas, nos fulgores, no canto, nas flo­res, que são imagens, descrições. Em poe­sia, as imagens visuais são chamadas fanopéias.

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Fonte:Antologia da Literatura Brasileira: Volume I, por: A. Medina Rodrigues, Dácio A. de Castro e Ivan P. Teixeira. Marco Editorial. São Paulo, 1979, págs. 3-6

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