Que é
literatura?
No século XIX, alguns críticos, como Sílvio Romero,
entendiam por literatura (do lat. littera, "letra")
toda a produção escrita de um povo, mesmo bilhete de namorado ou receita médica.
Hoje não é assim. Literatura, agora, é tudo que está escrito com a finalidade
de distrair o espírito e agradar a sensibilidade. Física e Biologia, por exemplo,
não são literatura, ainda que leiamos belos textos dessas disciplinas. Enfim, não
são literatura porque sua missão precípua é informar, e sua linguagem é apenas
instrumento ou veículo de conhecimentos. Ao contrário, num poema, a linguagem é
matéria essencial e não um instrumento para se chegar a outra coisa. O caráter
verbal ou linguístico participa da essência da literatura. A biologia, a química
ou a física poderiam até dispensar as palavras, substituindo-as por um código
de símbolos algébricos. Se fizermos isso com um poema, estaremos destruindo
sua estrutura, negando seu ser. Portanto, literatura é a arte cuja essência é a
palavra e o discurso. Literatura é novela, romance, conto, teatro, enfim, todas
essas leituras que você curte sem precisar pôr na prática no dia
seguinte, sem que você precise provar se são verdadeiras ou fictícias. Repare
que nós dissemos leituras. Isso identifica a literatura apenas com a escrita,
e aí já topamos com um primeiro problema. Pois a arte da palavra pode ser apenas
oral, como se observa no folclore. Se é assim, as canções populares do rádio
também constituem modalidade literária. E não precisam ser escritas, porém
registradas de uma ou outra forma. Antes do aparecimento da escrita, os povos
antigos já se divertiam com poemas, canções, rituais simbólicos. Ainda hoje,
muitos dos sambistas de morro compõem "de cor", sem lápis e papel. O
essencial é que a literatura seja feita com palavras destinadas a agradar nosso
espírito. Só isso. O resto você entenderá depois. Agora estamos preocupados em
mostrar como se estuda literatura. Por isso, vamos partir de alguns pontos básicos:
1 — Se você não entende nada de nada da vida, vai ser
difícil entender nosso papo. Não pedimos que você pense como um velho. Nada
disso. Mas você deve pelo menos saber algo de amor, amizade, emoção, ódio,
intriga, destino, ironia... Estas coisas são a essência da vida... Que é vida
senão esse estar-aí-nesse-mundo-cão-de-todo-dia? Vida é seu coração pulsando
hoje, dormindo amanhã; é sua chateação na semana, sua alegria no sábado...
Vida é tudo isso e muito mais. Vida é o tudo de você, e, como o tudo não
cabe nas palavras, é impossível definir a vida, entende? A vida também
compreende certas coisas impossíveis, só realizáveis pelo sonho: voar, como
os deuses da mitologia; ganhar na loteria aqui e agora, neste instante... Bater
um papo com Deus... Amar infinitamente, sem sombreado... Viver eternamente.
Tudo isso é impossível, porém, coisas que cabem dentro da vida, não é? Pois então:
a literatura pode exprimir tudo isso como se fosse verdade. Então a
literatura significa e exprime a vida em maior grau possível.
2 — Em literatura todo mundo imita todo mundo. Ninguém
cria nada do nada, como — aliás — em todas as atividades humanas. Grandes
poetas imitaram. Uma geração vai fornecendo seu material para a geração
seguinte. A geração seguinte pode mesmo "satirizar" ou menosprezar a
produção anterior: isso é uma forma de levá-la em consideração. TRADIÇÃO é uma
palavra muito importante em história literária. Isso não quer dizer que os
grandes autores sejam passadistas ou tradicionalistas. Ao contrário, podem ser
revolucionários. Transformar a tradição também é uma forma de preservá-la,
enriquecendo-a. Todo grande autor do futuro um dia será passado.
3 — Uma pessoa pode estar numa das seguintes situações
existenciais: a) voltada para si mesma (sonhando, refletindo, lembrando,
etc.); b) dialogando (o que pressupõe um interlocutor real ou imaginário); c)
sendo mencionada pelos outros. É o caso, por exemplo, de estarmos elogiando alguém
e esse alguém não está presente: é, portanto, um ausente, uma terceira pessoa.
Resumindo, há basicamente três situações existenciais para um indivíduo, dentro
da obra literária: ou ele fala para si, ou ele fala corri os outros, ou falam
dele. Essas três situações existenciais se combinam para formar grande parte
das obras literárias (contos, poemas, romances, etc.).
4 — As explicações anteriores são importantes para
entendermos algumas noções fundamentais em poesia. Fundamentais e bastante
relativas. Primeiro: se aquele que fala está profundamente contagiado ou
emocionado por aquilo que está dizendo, seu tom é lírico. Isto não
implica que ele esteja falando de si próprio; pode, ao contrário, falar da
natureza ou de uma mulher. Se o poeta, contagiado por seu lirismo, dirige a
palavra a alguém, diremos que ele age dramaticamente (é preciso saber se
esse interlocutor é ou não é importante, pois a força lírica de um poema pode
vir desse apelo a outrem). Se, finalmente, o poeta se refere a fatos já
passados ou ainda por ocorrer ou se ele, enfim, conta uma estória qualquer,
diremos que seu lirismo se concentra numa narrativa. O poeta lírico
pode, portanto, falar de si mesmo, falar com alguém ou falar de alguém. Para
que seja considerado lírico é fundamental que sua subjetividade
emocional se revele naquilo que ele está dizendo. Digamos, por exemplo,
que você teve um grande amigo, que veio a falecer inesperadamente. Você escreve
um poema sobre esse camarada. Você começa falando dele, à medida que as
palavras, os versos, as rimas, as figuras vão apontando a emoção de você, que
está escrevendo sobre ele. Digamos, por exemplo, este começo:
Ah, era sempre a mesma
pessoa
A mesma presença sem
sombra
No mundo que mudava de
manhã...
Seu silêncio era
forte, bom, bem nascido.
Note que até aí não houve narração, pois não houve mudança de tempo verbal. É apenas uma lírica descritiva, que salta para o narrativo à medida que você começa a jogar com tempos verbais diferentes, que coloquem seu amigo em situações diversas:
Um dia ele me disse
que só tinha medo da tarde
Porque a tarde não
tinha rosto nem peso...
Amou várias vezes Mas
nele o amor era acidental,
Navalhada sem vestígio...
Seu corpo grande
deslizava manso e leve
(Ficou furioso — mas
calado — o dia que a turma
o chamou de Pé-Boi...
Ele nem sabia o que era... Depois riu...)
Finalmente, você pode jogar com o elemento dramático,
introduzindo um diálogo que tenha a capacidade de sustentar o mesmo clima
emocional dos fragmentos anteriores. Esse diálogo pode dar-se entre seu amigo e
outra pessoa. Pode também manifestar uma conversa sua com ele. Neste caso, o diálogo
é hipotético, já que o interlocutor não pode responder:
Pê-Boi... Ainda ontem
eu relia na memória uma
porção de coisas tuas
E não pude chorar.
Fiz força, mas não
pude chorar
(certamente essa tua
alma de lata devia andar por
perto pra me impedir
qualquer evasão sentimental).
5 — O estudo de um texto literário pode dividir-se em dois planos. O primeiro deles consiste no trabalho de compreender o que o autor diz. Para tanto, utilizamos nossos conhecimentos gramaticais e linguísticos. A segunda tarefa consiste em interpretar o texto de acordo com nosso ponto-de-vista particular em relação a ele. Assim, podemos utilizar nossos conhecimentos de psicologia, história, mitologia, moral, etc. Um mesmo poema pode aceitar diversas interpretações distintas e igualmente possíveis. O quesito fundamental é que a compreensão seja basicamente a mesma. Se dois leitores tiverem compreensão contrária de um texto, um dos dois estará equivocado. Portanto, a compreensão é objetiva: todos precisam chegar a uma única compreensão, uma vez que o texto diz basicamente alguma coisa. É claro que alguém pode compreender mais profundamente um texto, e ser admirado por sua capacidade de penetração. Mas não poderá inventar o que o autor não disse. Ele poderá, também, valorizar, discordar do autor ou mostrar as influências a que esteve submetido. Porém, isso não é compreender, é interpretar. A compreensão é obrigatória. A interpretação é livre. Repetimos: é importante compreender bem, para interpretar bem. Por brilhante que seja, uma interpretação (= julgamento, valorização, comparação, etc.) sempre se anula, quando houver algum erro na compreensão. Vamos a um exemplo muito claro, tirado de um poemeto de Sousândrade, poeta romântico. É apenas uma estrofe com oito versos de cinco sílabas. Repararemos principalmente nos elementos gramaticais que organizam o significado básico do poema.
Ouvindo (1861)
Ouvindo a voz bela,
Da estrela os fulgores
Diriam, tremiam
Nos seios do céu:
Seduzem aos sábios
Os lábios que as flores
De um canto de encanto
Lhes dão, qual o teu.
Passemos, pois, aos dados gramaticais que abrem a
compreensão. Teremos, inicialmente, de saber a quem ou a que se referem os
verbos. Portanto, determinaremos o sujeito dos verbos; se necessário, chamaremos
a atenção sobre outros termos oracionais. Assim,
Ouvindo a voz bela,
já levanta o problema de saber: quem ouve? o que
exatamente está sendo ouvido? de quem é a voz que se ouve? O verbo ouvindo não
marca nem plural, nem singular. Isso dificulta a determinação do sujeito, que é
fulgores. Podemos representar a forma sintática da seguinte maneira:
"Os fulgores da estrela, ouvindo a voz bela, diriam, tremiam".
Assim, fulgores também é sujeito dos verbos dizer e tremer. "Nos
seios do céu" é um adjunto adverbial de lugar. Teremos, portanto, a
seguinte compreensão: Ao ouvir uma voz muito bela (provavelmente de
mulher), até os brilhos estelares se admirariam, lá em cima, no firmamento. E
que foi que disseram?
Seduzem aos sábios
Os lábios que as flores
De um canto de encanto
Lhes dão, qual o teu.
O sujeito de seduzem é lábios; dão é predicado de flores: as flores dão seu encanto a eles, os sábios (= lhes), que são seduzidos pelos lábios das flores. Temos, pois, a sequência: os sábios são seduzidos pelos lábios das flores, que se oferecem a eles. Tais lábios saem de um "canto de encanto". No caso, a palavra canto pode significar tanto "lugar, recanto" como "canção, cântico".
Essa ambiguidade não atrapalha o essencial do poema. Ao
contrário, valoriza, pois as duas significações
"jogam" alternativamente a imaginação do leitor. Afinal, qual o
sentido da última frase (qual o teu)? Certamente é uma comparação com o
encantamento de alguém que está diante do poeta, provavelmente a mulher
mimoseada pela poesia. Essa última indicação da mulher galanteada representa o
elemento dramático atenuado. É em função dela que o poeta expande seu lirismo
sensual, materializado nas estrelas, nos fulgores, no canto, nas flores, que são
imagens, descrições. Em poesia, as imagens visuais são chamadas fanopéias.
---Fonte:Antologia da Literatura Brasileira: Volume I, por: A. Medina Rodrigues, Dácio A. de Castro e Ivan P. Teixeira. Marco Editorial. São Paulo, 1979, págs. 3-6
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