O
método de estudo
da sociologia segundo Durkheim
Ao procurar
conhecer a vida social, uma das preocupações de Durkheim era avaliar qual
método permitiria fazê-lo de maneira científica, superando as deficiências do
senso comum. Sua conclusão foi de que, em busca da objetividade, ele deveria
assemelhar-se ao adotado pelas ciências naturais, mas nem por isso ser o seu
decalque, porque os fatos que a Sociologia examina pertencem ao reino social,
têm peculiaridades que os distinguem dos fenômenos da natureza. Tal método
deveria ser estritamente sociológico. Os cientistas sociais investigariam
possíveis relações de causa e efeito e regularidades com vistas à descoberta de
leis e mesmo de "regras de ação para o futuro", observando fenômenos
rigorosamente definidos.
Primeiro, há que estudar a sociedade no seu
aspecto exterior. Considerada sob esta perspectiva, ela surge como que
constituída por uma massa de população, de uma certa densidade, disposta de
determinada maneira num território, dispersa nos campos ou concentrada nas
cidades, etc.: ocupa um território mais ou menos extenso, situado de
determinada maneira em relação aos mares e aos territórios dos povos vizinhos,
mais ou menos atravessado por cursos de água e por diferentes vias de
comunicação que estabelecem contato, mais ou menos íntimo, entre os habitantes.
Este território, as suas dimensões, a sua configuração e a composição da
população que se movimenta na sua superfície são naturalmente fatores
importantes na vida social; é o seu substrato e, assim como no indivíduo a vida
psíquica varia consoante a composição anatômica do cérebro que lhe está na
base, assim os fenômenos coletivos variam segundo a constituição do substrato
social.
Durkheim
estabelece regras para que os sociólogos procedam à observação dos fatos
sociais. A primeira delas e a mais fundamental é considerá-los como coisas, e
seus corolários são: afastar sistematicamente as prenoções; definir previamente
as coisas de que trata por meio de caracteres exteriores que lhes são comuns;
considerá-las independentemente de suas manifestações individuais, da maneira
mais objetiva possível. Analisar os fatos sociais como "coisas" é
toma-los como uma realidade externa que, se bem desconhecida, vinha sendo
tomada até então como se o investigador se movesse "entre coisas
imediatamente transparentes ao espírito, tão grande é a facilidade com que o
vemos resolver questões obscuras". Com isso, o pesquisador não fazia mais
do que expressar suas prenoções, as quais acabam tornando-se "como que um
véu interposto entre as coisas e nós". Tais proposições acarretaram
acaloradas discussões na época, obrigando Durkheim a escrever um longo prefácio
à segunda edição de seu livro As Regras
do Método Sociológico, para esclarecer e reafirmar sua posição inicial.
A coisa se opõe à ideia (...). É coisa todo
objeto.do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural (...)
tudo o que o espírito não pode chegar a compreender senão sob a condição de
sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação, passando
progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis
para os menos visíveis e profundos.
A coisa pode
ser reconhecida
pelo sintoma de não poder ser modificada por
intermédio de um simples decreto da vontade. Não que seja refratária a qualquer
modificação. Mas não é suficiente exercer a vontade para produzir uma mudança,
é preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso, devido à resistência
que nos opõe e que, outrossim, nem sempre pode ser vencida.
Assim como
um cientista deve ter diante dos fatos uma atitude mental — partir do princípio
de que desconhece completamente o que são — o sociólogo deve considerar que se
acha diante de coisas ignoradas, porque "as representações que podem ser
formuladas no decorrer da vida, tendo sido efetuadas sem método nem crítica,
estão destituídas de valor científico e devem ser afastadas". Mas o senso
comum pode ser depurado e se
os homens não esperaram o advento da ciência
social para formularem ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado e a
própria sociedade; pois não podiam passar sem elas em sua existência. Ora, é
sobretudo na Sociologia que as prenoções, para retomar a expressão de Bacon,
estão em estado de dominar os espíritos e de se substituir às coisas. Com
efeito, as coisas sociais só se realizam através dos homens; são um produto da
atividade humana. Não parecem, pois, constituir outra coisa senão a realização
de ideias, inatas ou não, que trazemos em nós; não passam da aplicação dessas
ideias às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre
si. A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da
sociedade aparecem assim como um simples desenvolvimento das ideias que
formulamos a respeito da sociedade, do Estado, da justiça, etc. Por
conseguinte, tais fatos e outros análogos parecem não ter realidade senão nas
ideias e pelas ideias; e como estas parecem o germe dos fatos, elas é que se
tornam, então, a matéria peculiar à Sociologia.
A
dificuldade que o sociólogo enfrenta para libertar-se das falsas evidências, formadas
fora do campo da ciência, deve-se a que influi sobre ele seu sentimento, sua
paixão pelos objetos morais que examina. Mas, mesmo que tenha preferências,
quando investiga, o sábio
se desinteressa pelas consequências
práticas. Ele diz o que é; verifica o que são as coisas e fica nessa
verificação. Não se preocupa em saber se as verdades que descubra são
agradáveis ou desconcertantes, se convém às relações que estabeleça fiquem como
foram descobertas, ou se valeria a pena que fossem outras. Seu papel é o de
exprimir a realidade, não o de julgá-la.
Por isso é
que uma das bases da objetividade de uma ciência da sociedade teria que ser,
necessariamente, a disposição do cientista social a colocar-se "num estado
de espírito semelhante ao dos físicos, químicos e fisiologistas quando se
aventuram numa região ainda inexplorada de seu domínio científico"
assumindo, desse modo, sua ignorância, livrando-se de suas prenoções ou noções
vulgares (que já haviam sido combatidas por Bacon) e adotando, enfim, a prática
cartesiana da dúvida metódica. Essa atitude leva apenas à convicção de que
no estado
atual dos nossos conhecimentos, não sabemos com certeza o que são Estado, soberania, liberdade política,
democracia, socialismo, comunismo, etc. e o método estatuiria a interdição do
uso destes conceitos enquanto não estivessem cientificamente constituídos. E
todavia os termos que os exprimem figuram sem cessar nas discussões dos
sociólogos. São empregados correntemente e com segurança, como se
correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas, quando não despertam em
nós senão misturas indistintas de impressões vagas, de preconceitos e de
paixões.
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Fonte:
Um Toque de Clássicos: Durkheim, Marx e Weber, por: Tânia Quintaneiro, Maria Lígia de Oliveira Barbosa e Márcia Gardênia de Oliveira. Editora UFMG. Belo Horizonte, págs. 24-27.
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