sexta-feira, 17 de junho de 2016

O autor e a morte de Che Guevara

O autor e a morte de Che Guevara
Comarapa, segunda-feira 9 de outubro de 1967
Comarapa é uma pequena cidade rural situada aproximadamente a cem quilômetros de Vallegrande. Era lá que eu trabalhava como "médico provincial". No Brasil a função corresponde a "médico sanitarista", cumprindo uma determinação legal do Estado boliviano, que estabelece a necessidade deste requisito para obter a carteira profissional, correspondente ao C.R.M. do Brasil.
Desempenhava também uma segunda atividade como correspondente de guerra do matutino cochabambino Prensa Libre.
Às 8 horas de segunda-feira 8 de outubro de 1967, rece-uma informação privilegiada do membro do Exército i vinha me fornecendo não só informações confidenciais, como também entregando documentos secretos e radiogramas intercamabiados entre as diferentes unidades do Exército. Eis aqui dita informação:
"O 'avó' morreu, seus restos devem chegar hoje a Vallegrande". "avó'' era o Che em nosso código de comunicação.
No primeiro instante recebi a informação com muito ceticismo, já que desde 15 de março de 1965, data da última aparição de Che em público, divulgaram a sua morte mais de 20 vezes.
Desde então circularam muitas versões sobre ele, mas nenhuma confirmada. Entre os fatos divulgados pela imprensa mundial estavam as notícias de que Guevara fora visto internado em um sanatório e que ele havia sido prisioneiro em cinco países diferentes, fora as mortes anunciadas.
Os serviços de informação eram muito contraditórios tanto em relação à suposta morte de Ernesto como quanto aos lugares onde ele estava ou poderia estar. Segundo diversos meios de segurança do continente, Guevara fora visto ora na Argentina, no Peru, no Brasil, no Uruguai, no Paraguai ora na Venezuela.
9h30
Uma rádio da sede do governo em La Paz confirmou a informação de que havia recebido do meu informante.
"Três guerreiros mortos, dois feridos — um deles poderia ser Che Guevara — dos soldados mortos quatro feridos. Este é o resultado de um novo choque ocorrido ontem na região de La Higuera, ao sul de Villegrande".
 A partir das 10 horas, minuto a minuto os teletipos internacionais informavam o que estava ocorrendo na Bolívia com respeito a Che.

11 horas: Minha viagem a Vallegrande

Depois de deixar em ordem minhas atividades de médico em Comarapa, preparei minha viagem  numa motocicleta.

Minha chegada ao aeroporto

Cheguei a Vallegrande às 16 horas. Na cidade a notícia da morte de Che Guevara e a confirmação de que o corpo chegaria a qualquer momento se difundiram como rastro de pólvora. As autoridades decretaram feriado local. Quase toda a população foi para o aeroporto. Vallegrande vivia seu dia de glória.
Quando avistei o aeroporto um oceano humano ocupava suas imediações. Todos se empurravam na tentativa de conseguir furar os cordões de isolamento ou pelo menos ficar na primeira fila para ver melhor.
O local onde os aviões desciam estava localizado aproximadamente a dois quilômetros do centro da cidade. Não tinha infraestrutura. A torre de controle era precária, a pista, de terra. Vi ao fundo aviões AT6, utilizados durante a Segunda Guerra Mundial. Perto do centro das atenções estava posicionada a VIII Divisão do Exército, com caminhões, tanques de guerra e todo o tipo de armamento.
Minha ansiedade ia aumentando paulatinamente. Estava desesperado para ver Che, morto ou ferido. Verificava a todo instante minha câmera. Chequei se estava com filme, se eu tinha outro à mão para repor, etc.
De repente o barulho de uma aeronave. Todos olhamos para o céu e vimos um helicóptero se aproximando.
No aeroporto estávamos em 14 jornalistas: três europeus — um belga, dois ingleses, dos quais um era jornalista e o outro produtor de televisão —, seis brasileiros, um norte-americano e quatro bolivianos. Os brasileiros eram os jornalistas José Stachini, do O Estado de São Paulo, Walter Gianello e Helle Alves, do Diários Associados, o fotógrafo António Moura e dois cinegrafistas da TV Tupi de São Paulo. Os bolivianos eram José Luis Alcazar, de Presencia, Gustavo Sanchez Salazar de El diário, Erwin Von Boek, de Los Tiempos e, eu, de Prensa Libre.
Um feito inesperado permitiu aos jornalistas brasileiros do OESP e do Diários Associados presenciarem esse fato histórico. Eles chegaram a Santa Cruz de Ia Sierra no dia 25 de setembro. Pretendiam seguir viagem no mesmo dia a Camiri para cobrir o julgamento de Regis Debray, mas não conseguiram porque precisavam de um visto especial concedido pelo Poder Executivo e pelo Estado Maior das Forças Armadas. Como no dia 26 aconteceu um combate perto de Vallegrande, onde morreram três guerrilheiros, decidiram permanecer na cidade por mais tempo. Tudo levava a crer que em poucos dias ocorreria a batalha final, já que os guerrilheiros estavam cercados por 1.500 soldados numa área menor de 12 quilômetros quadrados.

17 horas: Chega Che

Quando os patins do helicóptero já estavam por tocar o chão, fomos impedidos de nos aproximar pelos soldados. Estávamos sendo monitorados e cercados por um grupo enorme de policiais militares que diziam: "Jornalistas não". Irritado com essa frase disse: "Se não nos deixam aproximar e ver o cadáver, é porque tudo não passa de um embuste, deve ser um sósia de Che".
Aproximou-se em seguida um major do Exército para abrandar nossa ira: "Por favor tenham paciência, depois que a perícia fizer a identificação do corpo, vocês..." Enquanto explicava, escapei, empreendi uma veloz corrida e cheguei junto aos pés do helicóptero.
Vi uma figura humana que tinha um conjunto de cordas prendendo seu corpo a uma rede e aos pés do helicóptero. Não consegui ver o rosto ou a vestimenta. Era somente um vulto que pude divisar, porque dois oficiais de forma abusiva e sem pronunciar nenhuma palavra me seguraram pelos braços e me retiraram à força levando-me a uns dez metros do lugar. Mas quando isso ocorreu, meu dedo indicador já havia acionado mais de uma vez o disparador de minha câmera fotográfica.

Rumo ao hospital, 17h25

Até esse momento havia passado 15 minutos entre aterrissar, desamarrar e dirigir o estranho e grotesco esquife até a ambulância. O veículo seguiu para o Hospital "Nuetro Senor de Malta". Trata-se de um local pequeno com cerca de dez camas de internação, com poucos equipamentos e um centro cirúrgico obsoleto. Tem dois setores: um combinado de quatro quartos, onde funciona a administração e outro bloco de um só andar, onde estão os consultórios e as salas de internação. Em volta há uma grande área verde.

Lavanderia, 17h35

Uma multidão de homens e mulheres aglomerou-se na entrada do hospital. Quando a ambulância chegou, os soldados tiveram dificuldade para abrir o portão do hospital. Depois que conseguiu entrar o veículo foi para frente de um quarto isolado no meio do pátio. Era a lavanderia do hospital, lugar que serviria de sarcófago a Che.
Os militares cercaram o hospital formando um rigoroso cordão de isolamento. Não permitiam a entrada de nenhum curioso. No local estavam presentes, Che, militares, médicos e 12 "soldados da informação".
Num dado momento a multidão conseguiu romper o cerco policial e invadiu o pátio e os arredores da lavanderia.
À entrada deste singular necrotério, eu e os outros 11 jornalistas tivemos praticamente de lutar com os soldados, para podermos cumprir a missão de documentar os acontecimentos. Todos trabalhávamos ora empurrados pela multidão ora pelos militares. Várias vezes fomos expulsos.
Nesse momento chegaram vários generais, entre eles Alfredo Ovando Cândia e David La Fuente. Estavam ali para comprovar com os próprios olhos que tinham a sua frente o mais cobiçado troféu de guerra para mostrar ao mundo.

Ecce homo

Uma multidão de homens e mulheres espremiam-se na entrada do hospital para ver Che. Tive que me abrir caminho praticamente a cotoveladas. Consegui entrar com grande dificuldade naquele odeão.
Meu olhar ficou cravado no sentido do homem que estava estendido no tanque da lavanderia. Um suor frio percorreu-me, pelo corpo, aprisionei as lágrimas que tentavam vencer a barreira de minhas pálpebras, e não as deixei sair. Tive vontade de chorar ao ver aquele corpo magro, vestido pobremente, parecia um esmoleiro; mas, não era, era "Um HOMEM".
Che usava uma jaqueta verde de couro sem botões e estava com o peito seminu. Tinha uma calça velha manchada de sangue, e como sapatos, uma chanca grosseira simulando abarcas rústicas. Mas, de repente descobri que não havia mais vontade de lacrimejar, muito pelo contrário, fui invadido paradoxalmente por uma sensação de alegria e um sorriso de satisfação se desenhou em meu rosto. Ao deter de novo minha vista no cadáver de Che, observei um semblante de felicidade. Os olhos de Che estavam abertos, com a vista fixa no horizonte. O olhar sereno, ao mesmo tempo desafiante e tranquilo, com olhos que lembravam os vencedores das grandes batalhas ao mirar de cima da montanha os vencidos da planície.
Tinha as protubeverâncias frontais destacadas com as sobrancelhas revelando sua personalidade severa e austera. Os lábios finos e delicados ainda revelavam a sensualidade que certamente transmitia em vida. A boca estava entreaberta mostrando dentes perfeitos e sorriso sardônico. O semblante era de paz, revelava que morreu com a certeza de ter cumprido seu dever histórico ao passo pela vida.
Os mocassins simples, de fabricação caseira que removi mostraram uns farrapos esburacados simulando umas meias; e, quando tirei tais meias fiquei mudo, como estátua petrificada. Os pés de Che tinham múltiplos ferimentos em ambas as solas. Este HOMEM tinha caminhado semidescalço durante 28 dias no meio dos espinhos de La Higuera. Quando olhei no chão batido da lavanderia, vi um guerrilheiro com botas seminovas. Somente um homem da categoria de Che poderia ter andado com esses envoltórios e não ordenar ou pedir a seu soldado que lhe desse suas botas.
Seus músculos ainda fortes e rijos, tinham um aspecto herculiano.
Uma testa larga, que se afinava em direção ao queixo. Era um rosto lindo, grácil e esbelto. Os cabelos castanhos, abundantes, não exageradamente longos, um pouco encrespados lambendo tímida e delicadamente seu fino pescoço. Um bigode escasso e discreto unido nas suas extremidades com uma barba rala e curta. Era o "Cristo" pintado por Michelangelo e por Rembrandt.
Seu olhar denotava ora um olhar de desprezo a todos os militares, ora um olhar de satisfação.
Era uma visão ou uma miragem para mim? Ou uma ilusão de ótica estampada na minha retina?
Não eram só minhas fontes que latejavam. Ás pálpebras, o corpo todo foi sacudido e latia ao uníssono com meu coração "palpitante": lub.dup...lub.dup... Quem estava diante de mim era "Jesus Cristo" Ecce-homo.
A imagem a minha frente me fez lembrar os tempos de estudante quando estendidos nas "camas de pedra" do necrotério, mendigos serviam-nos como coelhos da índia nas práticas de anatomia.
O rosto atrevido de Che e cheio de vida agora era o rosto de um homem morto?... Não!.. .Estava nascendo, passando da lenda ao mito, ia rumo ao "Panteão da história". Ad immortalitatem.

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Fonte:
"Vida, Morte e Ressurreição do Che", por: Reginaldo Ustariz Arze: "A primeira pessoa no mundo a denunciar no dia 10 de outubro de 1967 que: "O Che foi morto à queima-roupa". Editora Brasbol. São Paulo, 2004, págs. 259-266.

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