O autor e a morte de Che Guevara
Comarapa, segunda-feira 9 de outubro de
1967
Comarapa é uma pequena cidade rural situada aproximadamente a cem quilômetros de Vallegrande. Era lá que eu trabalhava como "médico provincial". No Brasil a função corresponde a "médico sanitarista", cumprindo uma determinação legal do Estado boliviano, que estabelece a necessidade deste requisito para obter a carteira profissional, correspondente ao C.R.M. do Brasil.
Comarapa é uma pequena cidade rural situada aproximadamente a cem quilômetros de Vallegrande. Era lá que eu trabalhava como "médico provincial". No Brasil a função corresponde a "médico sanitarista", cumprindo uma determinação legal do Estado boliviano, que estabelece a necessidade deste requisito para obter a carteira profissional, correspondente ao C.R.M. do Brasil.
Desempenhava
também uma segunda atividade como correspondente de guerra do matutino
cochabambino Prensa Libre.
Às 8 horas
de segunda-feira 8 de outubro de 1967, rece-uma informação privilegiada do
membro do Exército i vinha me fornecendo não só informações confidenciais, como
também entregando documentos secretos e radiogramas intercamabiados entre as
diferentes unidades do Exército. Eis aqui dita informação:
"O
'avó' morreu, seus restos devem chegar hoje a Vallegrande". "avó''
era o Che em nosso código de comunicação.
No primeiro
instante recebi a informação com muito ceticismo, já que desde 15 de março de
1965, data da última aparição de Che em público, divulgaram a sua morte mais de
20 vezes.
Desde então
circularam muitas versões sobre ele, mas nenhuma confirmada. Entre os fatos
divulgados pela imprensa mundial estavam as notícias de que Guevara fora visto
internado em um sanatório e que ele havia sido prisioneiro em cinco países
diferentes, fora as mortes anunciadas.
Os serviços
de informação eram muito contraditórios tanto em relação à suposta morte de
Ernesto como quanto aos lugares onde ele estava ou poderia estar. Segundo
diversos meios de segurança do continente, Guevara fora visto ora na Argentina,
no Peru, no Brasil, no Uruguai, no Paraguai ora na Venezuela.
9h30
Uma rádio da sede do governo em La Paz confirmou a informação de que havia recebido do meu informante.
Uma rádio da sede do governo em La Paz confirmou a informação de que havia recebido do meu informante.
"Três
guerreiros mortos, dois feridos — um deles poderia ser Che Guevara — dos
soldados mortos quatro feridos. Este é o resultado de um novo choque ocorrido
ontem na região de La Higuera, ao sul de Villegrande".
11 horas: Minha viagem a Vallegrande
Depois de deixar em ordem minhas atividades de médico em Comarapa, preparei minha viagem numa motocicleta.
Minha chegada ao aeroporto
Cheguei a Vallegrande às 16 horas. Na cidade a notícia da morte de Che Guevara e a confirmação de que o corpo chegaria a qualquer momento se difundiram como rastro de pólvora. As autoridades decretaram feriado local. Quase toda a população foi para o aeroporto. Vallegrande vivia seu dia de glória.
Quando
avistei o aeroporto um oceano humano ocupava suas imediações. Todos se
empurravam na tentativa de conseguir furar os cordões de isolamento ou pelo
menos ficar na primeira fila para ver melhor.
O local onde
os aviões desciam estava localizado aproximadamente a dois quilômetros do
centro da cidade. Não tinha infraestrutura. A torre de controle era precária, a
pista, de terra. Vi ao fundo aviões AT6, utilizados durante a Segunda Guerra
Mundial. Perto do centro das atenções estava posicionada a VIII Divisão do
Exército, com caminhões, tanques de guerra e todo o tipo de armamento.
Minha
ansiedade ia aumentando paulatinamente. Estava desesperado para ver Che, morto
ou ferido. Verificava a todo instante minha câmera. Chequei se estava com
filme, se eu tinha outro à mão para repor, etc.
De repente o
barulho de uma aeronave. Todos olhamos para o céu e vimos um helicóptero se
aproximando.
No aeroporto
estávamos em 14 jornalistas: três europeus — um belga, dois ingleses, dos quais
um era jornalista e o outro produtor de televisão —, seis brasileiros, um
norte-americano e quatro bolivianos. Os brasileiros eram os jornalistas José
Stachini, do O Estado de São Paulo, Walter Gianello e Helle Alves, do Diários
Associados, o fotógrafo António Moura e dois cinegrafistas da TV Tupi de São
Paulo. Os bolivianos eram José Luis Alcazar, de Presencia, Gustavo Sanchez
Salazar de El diário, Erwin Von Boek, de Los Tiempos e, eu, de Prensa Libre.
Um feito
inesperado permitiu aos jornalistas brasileiros do OESP e do Diários Associados
presenciarem esse fato histórico. Eles chegaram a Santa Cruz de Ia Sierra no
dia 25 de setembro. Pretendiam seguir viagem no mesmo dia a Camiri para cobrir
o julgamento de Regis Debray, mas não conseguiram porque precisavam de um visto
especial concedido pelo Poder Executivo e pelo Estado Maior das Forças Armadas.
Como no dia 26 aconteceu um combate perto de Vallegrande, onde morreram três
guerrilheiros, decidiram permanecer na cidade por mais tempo. Tudo levava a
crer que em poucos dias ocorreria a batalha final, já que os guerrilheiros
estavam cercados por 1.500 soldados numa área menor de 12 quilômetros
quadrados.
17 horas: Chega Che
Quando os patins do helicóptero já estavam por tocar o chão, fomos impedidos de nos aproximar pelos soldados. Estávamos sendo monitorados e cercados por um grupo enorme de policiais militares que diziam: "Jornalistas não". Irritado com essa frase disse: "Se não nos deixam aproximar e ver o cadáver, é porque tudo não passa de um embuste, deve ser um sósia de Che".
Aproximou-se
em seguida um major do Exército para abrandar nossa ira: "Por favor tenham
paciência, depois que a perícia fizer a identificação do corpo, vocês..."
Enquanto explicava, escapei, empreendi uma veloz corrida e cheguei junto aos
pés do helicóptero.
Vi uma
figura humana que tinha um conjunto de cordas prendendo seu corpo a uma rede e
aos pés do helicóptero. Não consegui ver o rosto ou a vestimenta. Era somente
um vulto que pude divisar, porque dois oficiais de forma abusiva e sem
pronunciar nenhuma palavra me seguraram pelos braços e me retiraram à força
levando-me a uns dez metros do lugar. Mas quando isso ocorreu, meu dedo
indicador já havia acionado mais de uma vez o disparador de minha câmera
fotográfica.
Rumo ao hospital, 17h25
Até esse momento havia passado 15 minutos entre aterrissar, desamarrar e dirigir o estranho e grotesco esquife até a ambulância. O veículo seguiu para o Hospital "Nuetro Senor de Malta". Trata-se de um local pequeno com cerca de dez camas de internação, com poucos equipamentos e um centro cirúrgico obsoleto. Tem dois setores: um combinado de quatro quartos, onde funciona a administração e outro bloco de um só andar, onde estão os consultórios e as salas de internação. Em volta há uma grande área verde.
Lavanderia, 17h35
Uma multidão de homens e mulheres aglomerou-se na entrada do hospital. Quando a ambulância chegou, os soldados tiveram dificuldade para abrir o portão do hospital. Depois que conseguiu entrar o veículo foi para frente de um quarto isolado no meio do pátio. Era a lavanderia do hospital, lugar que serviria de sarcófago a Che.
Os militares
cercaram o hospital formando um rigoroso cordão de isolamento. Não permitiam a
entrada de nenhum curioso. No local estavam presentes, Che, militares, médicos
e 12 "soldados da informação".
Num dado
momento a multidão conseguiu romper o cerco policial e invadiu o pátio e os
arredores da lavanderia.
À entrada
deste singular necrotério, eu e os outros 11 jornalistas tivemos praticamente
de lutar com os soldados, para podermos cumprir a missão de documentar os
acontecimentos. Todos trabalhávamos ora empurrados pela multidão ora pelos
militares. Várias vezes fomos expulsos.
Nesse
momento chegaram vários generais, entre eles Alfredo Ovando Cândia e David La
Fuente. Estavam ali para comprovar com os próprios olhos que tinham a sua
frente o mais cobiçado troféu de guerra para mostrar ao mundo.
Ecce homo
Uma multidão de homens e mulheres espremiam-se na entrada do hospital para ver Che. Tive que me abrir caminho praticamente a cotoveladas. Consegui entrar com grande dificuldade naquele odeão.
Meu olhar
ficou cravado no sentido do homem que estava estendido no tanque da lavanderia.
Um suor frio percorreu-me, pelo corpo, aprisionei as lágrimas que tentavam
vencer a barreira de minhas pálpebras, e não as deixei sair. Tive vontade de
chorar ao ver aquele corpo magro, vestido pobremente, parecia um esmoleiro;
mas, não era, era "Um HOMEM".
Che usava
uma jaqueta verde de couro sem botões e estava com o peito seminu. Tinha uma
calça velha manchada de sangue, e como sapatos, uma chanca grosseira simulando
abarcas rústicas. Mas, de repente descobri que não havia mais vontade de
lacrimejar, muito pelo contrário, fui invadido paradoxalmente por uma sensação
de alegria e um sorriso de satisfação se desenhou em meu rosto. Ao deter de
novo minha vista no cadáver de Che, observei um semblante de felicidade. Os
olhos de Che estavam abertos, com a vista fixa no horizonte. O olhar sereno, ao
mesmo tempo desafiante e tranquilo, com olhos que lembravam os vencedores das
grandes batalhas ao mirar de cima da montanha os vencidos da planície.
Tinha as
protubeverâncias frontais destacadas com as sobrancelhas revelando sua
personalidade severa e austera. Os lábios finos e delicados ainda revelavam a
sensualidade que certamente transmitia em vida. A boca estava entreaberta
mostrando dentes perfeitos e sorriso sardônico. O semblante era de paz,
revelava que morreu com a certeza de ter cumprido seu dever histórico ao passo
pela vida.
Os mocassins
simples, de fabricação caseira que removi mostraram uns farrapos esburacados
simulando umas meias; e, quando tirei tais meias fiquei mudo, como estátua
petrificada. Os pés de Che tinham múltiplos ferimentos em ambas as solas. Este
HOMEM tinha caminhado semidescalço durante 28 dias no meio dos espinhos de La
Higuera. Quando olhei no chão batido da lavanderia, vi um guerrilheiro com
botas seminovas. Somente um homem da categoria de Che poderia ter andado com
esses envoltórios e não ordenar ou pedir a seu soldado que lhe desse suas
botas.
Seus
músculos ainda fortes e rijos, tinham um aspecto herculiano.
Uma testa
larga, que se afinava em direção ao queixo. Era um rosto lindo, grácil e
esbelto. Os cabelos castanhos, abundantes, não exageradamente longos, um pouco
encrespados lambendo tímida e delicadamente seu fino pescoço. Um bigode escasso
e discreto unido nas suas extremidades com uma barba rala e curta. Era o
"Cristo" pintado por Michelangelo e por Rembrandt.
Seu olhar
denotava ora um olhar de desprezo a todos os militares, ora um olhar de
satisfação.
Era uma
visão ou uma miragem para mim? Ou uma ilusão de ótica estampada na minha
retina?
Não eram só
minhas fontes que latejavam. Ás pálpebras, o corpo todo foi sacudido e latia ao
uníssono com meu coração "palpitante":
lub.dup...lub.dup... Quem estava diante de mim era "Jesus Cristo"
Ecce-homo.
A imagem a
minha frente me fez lembrar os tempos de estudante quando estendidos nas "camas
de pedra" do necrotério, mendigos serviam-nos como coelhos da índia nas
práticas de anatomia.
O rosto
atrevido de Che e cheio de vida agora era o rosto de um homem morto?... Não!..
.Estava nascendo, passando da lenda ao mito, ia rumo ao "Panteão da
história". Ad immortalitatem.
---
Fonte:
"Vida, Morte e Ressurreição do Che", por: Reginaldo Ustariz Arze: "A primeira pessoa no mundo a denunciar no dia 10 de outubro de 1967 que: "O Che foi morto à queima-roupa". Editora Brasbol. São Paulo, 2004, págs. 259-266.
Fonte:
"Vida, Morte e Ressurreição do Che", por: Reginaldo Ustariz Arze: "A primeira pessoa no mundo a denunciar no dia 10 de outubro de 1967 que: "O Che foi morto à queima-roupa". Editora Brasbol. São Paulo, 2004, págs. 259-266.
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