Os limites da ciência?
A ciência é
o único instrumento seguro que possuímos para compreender o mundo. Ela não tem
limites. Podemos não saber alguma coisa agora, mas saberemos no futuro. É só
uma questão de tempo. Essa visão, encontrada ao longo dos escritos de Dawkins,
recebe ênfase adicional em Deus, um
delírio ao oferecer vigorosa defesa do âmbito universal e da elegância
conceituai das ciências naturais.
Não se trata
de uma ideia original de Dawkins, que aqui tanto reflete quanto amplia uma
formulação redutiva da realidade, encontrada em escritores mais antigos, como
Francis Crick. A questão é simples: não há "lacunas" em que Deus
possa se esconder. A ciência explicará tudo, incluindo por que algumas pessoas
ainda acreditam numa ideia tão ridícula como Deus. No entanto, é uma formulação
que não pode ser sustentada, seja como representante da comunidade científica
seja como asserção exata auto-evidente, sem considerar como aquela comunidade a
trata.
Para evitar
mal-entendidos, deixemos muito claro que sugerir que a ciência pode ter limites
não constitui, de maneira alguma, crítica ou difamação ao método científico.
Dawkins, devo dizer com pesar, tende a descrever qualquer um que levante
questões sobre o escopo das ciências como um idiota que odeia a ciência. Cabe,
aqui, porém, uma questão legítima. Toda ferramenta intelectual que possuímos
precisa ser calibrada — em outras palavras, ser examinada para identificar as
condições sob as quais é confiável.
A pergunta
"a ciência tem limites?" não é indevida, e uma resposta positiva não
representaria recair em algum tipo de superstição. Trata-se simplesmente de uma
demanda legítima para calibrar a precisão intelectual.
Para
explorar tal questão, consideremos uma declaração feita por Dawkins em sua primeira
obra O gene egoísta:
|Os genes] apinham-se em colónias imensas,
em segurança dentro de robôs desajeitados gigantescos, murados do mundo
exterior, comunicando-se com ele por meio de vias indiretas e tortuosas,
manipulando-o por controle remo-lo. Eles estão em mim e em você. Eles nos
criaram, corpo c mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência.
Vemos aqui
uma interpretação marcante e sugestiva de um conceito científico básico. Mas
seriam tais declarações, marcadamente interpretativas, de fato científicas?
Para avaliar o problema, consideremos a seguinte
paráfrase desse parágrafo pelo célebre fisiologista e biólogo de sistemas Denis
Noble, de Oxford. As informações sobre fatos empíricos comprovados foram
preservadas; o que é interpretativo foi alterado, dessa vez fazendo uma
interpretação um pouco diferente:
[Os genes] estão presos em imensas colônias,
trancados dentro de seres altamente inteligentes, modelados pelo mundo
exterior, comunicando-se com ele por meio de processos complexos, através dos
quais aparecem funções, cegamente, como num passe de mágica. Eles estão em você
e em mim: somos o sistema que permite que o código deles seja lido, e sua
preservação é totalmente dependente da alegria que experimentamos ao nos reproduzir.
Somos a razão última para a existência deles.
Dawkins e
Noble veem as coisas de modos completamente distintos. (Recomendo a leitura,
cuidadosa e sem pressa, de ambas as declarações para avaliar a diferença.) Os
dois não podem estar certos. Ambos incluem, sutilmente, juízos e declarações
metafísicas numa série de julgamentos de valores bastante diferentes. No
entanto, suas declarações são "empiricamente equivalentes". Em outras
palavras, os dois autores se apoiam em uma boa base de observações e evidências
experimentais. Então qual está certo? Qual é o mais científico? Como podemos
decidir a quem preferir no âmbito científico? Conforme Noble observa — e
Dawkins concorda —, "parece que ninguém seria capaz de pensar numa
experiência que revelasse uma diferença empírica entre eles".
Em recente e
sofisticada crítica acerca da superficialidade filosófica de muitos textos
científicos contemporâneos, particularmente na neurociência, Max Bennett e
Peter Hacker direcionam uma crítica específica contra a perspectiva ingênua —
que Dawkins parece determinado a levar em frente — de que "a ciência
explica tudo".
As teorias
científicas não podem ser tomadas para "explicar o mundo", mas apenas
para explicar os fenômenos observados no mundo. Além disso, argumentam os
autores, as teorias científicas não descrevem e explicam "tudo sobre o
mundo", e nem pretendem fazê-lo — conforme suas propostas. Direito,
economia e sociologia podem ser citadas como exemplos de disciplinas que se
dedicam a fenômenos de domínios específicos, sem que, de modo algum, sejam
consideradas inferiores às ciências naturais ou delas dependentes.
Mais importante
ainda é que existem muitas questões que, pela própria natureza, estão além do
escopo legítimo do método científico, como normalmente entendido. Por exemplo:
há um propósito na natureza? Dawkins desconsidera essa pergunta, por espúria.
Entretanto, para os seres humanos, que perguntam e esperam uma resposta, tal questionamento
dificilmente pode ser considerado ilegítimo.
Bennett e
Hacker afirmam que as ciências naturais não estão em condições de opinar sobre
isso, se seus métodos forem aplicados de fato honestamente. A pergunta não pode
ser rejeitada como ilegítima ou absurda: ela apenas está sendo declarada como
algo além do escopo do método científico. Se puder ser respondida, será em
outras bases.
Essa
observação foi feita repetidamente por sir Peter Medawar, imunologista de
Oxford que ganhou o Premio Nobel de medicina pela descoberta da tolerância
imunológica adquirida. Em importante publicação intitulada The Limits of Science [Os limites da ciência], Medawar explorou a
questão relativa à limitação da ciência pela natureza da realidade. Ele
enfatiza que "a ciência é, incomparavelmente, o empreendimento mais
bem-sucedido em que os seres humanos jamais se engajaram". Então, propõe
uma distinção entre o que chama de questões "transcendentes", de cuja
ocupação é melhor deixar com a religião e a metafísica, e as questões sobre a
organização e a estrutura do universo material.
Com relação
a estas, ele argumenta que não há limites para as possibilidades de
empreendimento científico. Ele, portanto, concorda com Dawkins — mas apenas ao
definir e limitar o domínio dentro do qual as ciências possuem tal competência.
E quanto às
outras questões? E sobre a questão de Deus? E, ainda, se existe um sentido no
universo? Como que antecipando a visão imprudente e simplista sobre as ciências
adotada por Dawkins, Medawar sugere que os cientistas devem ser cautelosos
sobre seus pronunciamentos acerca desses assuntos, para que não percam a
confiança do público devido a exageros presunçosos e dogmáticos. Embora seja um
racionalista assumido, Medawar é claro nesta questão:
A existência, de fato, de limites para a
ciência parece muito provável em razão de haver perguntas que ela não pode
responder, e que nenhum avanço concebível dela a autorizaria a responder. [...]
Tenho em mente questões do tipo:
• Como tudo começou?
• Para que estamos todos aqui?
• Qual o sentido da vida?
O positivismo doutrinário — hoje uma peça de
museu rejeitava esse tipo de perguntas por considerá-las ilegítimas ou
pseudo-perguntas; o tipo de questões simplórias que apenas os charlatães se
consideram capazes de responder.
Talvez Deus, um delírio tenha surpreendido sir
Peter em razão do florescimento tardio daquele mesmo "positivismo
doutrinário", que ele acreditava estar felizmente morto.
---
Fonte:
O Delírio de Dawkins: uma resposta ao fundamentalismo ateísta de Richard Dawkins, por: Alister McGrath e Joanna McGrath. Tradução: Sueli Saraiva. Editora Mundo Cristão. São Paulo, 2007, págs. 50-55.
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