Por que razão escreveu Dawkins aquilo que
escreveu
Espantei-me muitas vezes com o tom inspirado de
Dawkins; dir-se-ia que se trata de um pregador. Afinal, o darwinismo não passa
de uma teoria científica, entre outras, pensava eu anteriormente; terá, como
todas as outras, um desenvolvimento que certamente a conduzirá para bem longe
das intuições iniciais de Darwin...
Esquecia-me de que ela tem, na realidade, uma coloração
particular, aliás assinalada por vários autores (ver adiante, p. 276: «é o
darwinismo uma crença?»). Com efeito, são muitos os que pensam que, se os seus
defensores são tão ardentes, estão tão dispostos a esmagar com sarcasmos a
menor contradição, é porque a teoria darwinista se transformou numa espécie de
religião ou, mais exactamente, numa fase da luta, lastimável mas ininterrupta,
entre o materialismo e o espiritualismo; considero-a lastimável por causa da
ambiguidade das palavras «matéria» e «espírito», sobretudo num momento em que a
nova filosofia, resultante da física quântica, traz à luz determinadas
concepções da filosofia biológica desesperadamente ultrapassadas. Já o nosso
autor está cheio da verdadeira fé e pensa que só uma pessoa que seja realmente
pecadora e tola pode não ser darwinista... «Não ser darwinista? É
extremamente difícil um espírito moderno não reagir a esta ideia com uma
gargalhada» (página 332 da conclusão da obra de Dawkins, The Selfish
Gene, 1976).
Ora, Dawkins acaba justamente de publicar (1996), numa
revista científica de grande difusão, um artigo inaudito, ainda que toda a
gente conheça a impetuosidade da personagem.
Começa muito bem, recordando as razões profundas de
Darwin, que em grande parte o inspiraram a escrever A Origem das Espécies: a
sua incapacidade de imaginar que um Deus bondoso tivesse criado as terríveis
barbaridades da Natureza. Por exemplo, os icnêumones que colocam no interior
das lagartas uma larva que as devorará vivas, coisa que é, à primeira vista, de
uma crueldade bárbara... «Mas veremos que a Natureza não é cruel; é
simplesmente indiferente e impiedosa. Esta lição é profundamente cruel para o
homem. Não conseguimos aceitar que a Natureza... seja simplesmente indiferente
ao sofrimento e não tenha um objectivo.»
Depois de uma conversa bastante ociosa, bem à maneira
de Dawkins, põe-se uma questão que visivelmente lhe interessa, como a qualquer
pessoa razoável: «Se o lobo e a gazela se devem a um único criador, a que brinca
(Deus)?» Questão metafísica essencial a que, no entanto, Dawkins escapa através
de um curto-circuito; porque a sua religião (sem metáforas) é a selecção.
A selecção natural é animada pelo DNA (se Darwin é
deus, o DNA é o seu profeta), que não tem outra finalidade, senão a de se
reproduzir idêntico a si mesmo. Não esqueçamos que Dawkins é autor de uma obra,
O gene egoísta, que exprime aproximadamente a mesma conclusão: nada
conta verdadeiramente, a não ser o gene, de que todos os organismos não são mais
do que o suporte efémero (digamos que isto é, no mínimo, uma enorme
simplificação!)
Evoca ele, por exemplo, as extraordinárias exibições
das aves, que não se destinam a alegrar o coração dos homens, mas a impor um
DNA.
«Não se trata de uma receita de felicidade: no momento
em que é transmitido, pouco importa ao DNA que a sua transmissão se faça em
detrimento de alguém ou de alguma coisa. Os genes não se preocupam com o
sofrimento, porque não se preocupam com coisa alguma.» «O universo que
observamos tem exactamente as características que podemos esperar encontrar
nele se pensarmos que nenhuma ideia, nenhum objectivo, nenhum mal ou bem
presidiu à sua concepção, nada mais do que uma indiferença sem compaixão.»
Diabo! Que conclusões tão radicais! Não esqueçamos que
o problema é bem conhecido e preocupou os filósofos durante milhares de anos;
de repente, o profeta Dawkins compreendeu tudo? O leitor não deve preocupar-se!
É certo que existe um grande, um imenso problema, mas a) ninguém, nem
mesmo Dawkins, tem a solução e b) é um problema muito mais complicado do
que Dawkins pensa ou finge pensar:
a) Efectivamente,
o problema ultrapassa o nosso entendimento, porque nós não compreendemos grande
coisa acerca da vida que nos rodeia. Os axiomas darwinistas são indemonstráveis,
como me esforçarei por provar ao longo das páginas que se seguem, são mesmo
indemonstráveis por definição (Fisher);
b) Ele é
mais complicado do que Dawkins pensa, porque o mal e o sofrimento não dominam o
Universo de forma exclusiva. Também encontramos nele beleza deslumbrante,
mecanismos orgânicos sublimes, que são uma alegria para o espírito no modesto
limite em que conseguimos decifrá-los; antes de serem devoradas, as gazelas
usufruem certamente da força da juventude e conhecem o período dos amores e dos
jogos. Aliás, Dawkins supõe que elas vivem angustiadas, o que prova que não
conhece bem o comportamento animal; a verdade é que, pouco tempo depois de ter
escapado ao leopardo, o rebanho de antílopes se põe a pastar pacificamente,
como se nada fosse... A angústia animal não se assemelha à angústia humana;
faltam-lhe, felizmente, a previsão e a reflexão.
E chegamos ao problema com que os filósofos se debatem
há mais de três mil anos. O Universo não é atroz nem delicioso: é as duas
coisas ao mesmo tempo. Não é possível sair disto com uma pirueta
darwinista.
Poderemos ao menos pensar numa resposta! Não, mas
talvez possamos entrever uma táctica perante o desconhecido, que se
calhar só é incognoscível por causa da nossa ignorância: praticar a suspensão
do juízo, como os estóicos; somos demasiadamente ignorantes, a ciência é
demasiadamente jovem, a biologia praticamente só agora começou.
E, sobretudo, abstermo-nos cuidadosamente de declarações
fracturantes e desesperantes à Ia Dawkins. Podíamos mesmo dizer «à Ia
Monod», porque Jacques Monod não se privava de fazer declarações
semelhantes.
A obra termina com uma frase assombrosa, que espantará
qualquer cientista normalmente constituído (página 368 e última): «Desde que
postulemos uma série suficientemente extensa de intermediários infinitesimais
diferenciados, estaremos em condições de fazer derivar tudo de tudo, sem
invocar incompatibilidades astronómicas.»
Realmente, fazer derivar tudo de tudo! Alguém imagina
um físico a escrever uma coisa parecida com esta? Dawkins esquece, aqui, que é
um homem de ciência. Fazer derivar tudo de tudo? Não será isso aquilo a que se
chama andar em círculos?
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Fonte:
O Darwinismo ou o Fim de um Mito, por: Rémy Chauvin. Instituto Piaget. Lisboa, 1997, págs. 23-25.
Fonte:
O Darwinismo ou o Fim de um Mito, por: Rémy Chauvin. Instituto Piaget. Lisboa, 1997, págs. 23-25.
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