sábado, 18 de junho de 2016

Por que razão escreveu Dawkins aquilo que escreveu

Por que razão escreveu Dawkins aquilo que escreveu
Espantei-me muitas vezes com o tom inspirado de Dawkins; dir-se-ia que se trata de um pregador. Afinal, o darwinismo não passa de uma teoria científica, entre outras, pensava eu anterior­mente; terá, como todas as outras, um desenvolvimento que certamente a conduzirá para bem longe das intuições iniciais de Darwin...
Esquecia-me de que ela tem, na realidade, uma coloração par­ticular, aliás assinalada por vários autores (ver adiante, p. 276: «é o darwinismo uma crença?»). Com efeito, são muitos os que pensam que, se os seus defensores são tão ardentes, estão tão dis­postos a esmagar com sarcasmos a menor contradição, é porque a teoria darwinista se transformou numa espécie de religião ou, mais exactamente, numa fase da luta, lastimável mas ininterrupta, entre o materialismo e o espiritualismo; considero-a lastimável por causa da ambiguidade das palavras «matéria» e «espírito», sobretudo num momento em que a nova filosofia, resultante da física quântica, traz à luz determinadas concepções da filosofia biológica desesperadamente ultrapassadas. Já o nosso autor está cheio da verdadeira fé e pensa que só uma pessoa que seja real­mente pecadora e tola pode não ser darwinista... «Não ser darwinista? É extremamente difícil um espírito moderno não reagir a esta ideia com uma gargalhada» (página 332 da conclusão da obra de Dawkins, The Selfish Gene, 1976).
Ora, Dawkins acaba justamente de publicar (1996), numa re­vista científica de grande difusão, um artigo inaudito, ainda que toda a gente conheça a impetuosidade da personagem.
Começa muito bem, recordando as razões profundas de Darwin, que em grande parte o inspiraram a escrever A Origem das Espécies: a sua incapacidade de imaginar que um Deus bon­doso tivesse criado as terríveis barbaridades da Natureza. Por exemplo, os icnêumones que colocam no interior das lagartas uma larva que as devorará vivas, coisa que é, à primeira vista, de uma crueldade bárbara... «Mas veremos que a Natureza não é cruel; é simplesmente indiferente e impiedosa. Esta lição é pro­fundamente cruel para o homem. Não conseguimos aceitar que a Natureza... seja simplesmente indiferente ao sofrimento e não tenha um objectivo.»
Depois de uma conversa bastante ociosa, bem à maneira de Dawkins, põe-se uma questão que visivelmente lhe interessa, como a qualquer pessoa razoável: «Se o lobo e a gazela se devem a um único criador, a que brinca (Deus)?» Questão metafísica essencial a que, no entanto, Dawkins escapa através de um curto-circuito; porque a sua religião (sem metáforas) é a selecção.
A selecção natural é animada pelo DNA (se Darwin é deus, o DNA é o seu profeta), que não tem outra finalidade, senão a de se reproduzir idêntico a si mesmo. Não esqueçamos que Dawkins é autor de uma obra, O gene egoísta, que exprime apro­ximadamente a mesma conclusão: nada conta verdadeiramente, a não ser o gene, de que todos os organismos não são mais do que o suporte efémero (digamos que isto é, no mínimo, uma enorme simplificação!)
Evoca ele, por exemplo, as extraordinárias exibições das aves, que não se destinam a alegrar o coração dos homens, mas a im­por um DNA.
«Não se trata de uma receita de felicidade: no momento em que é transmitido, pouco importa ao DNA que a sua transmissão se faça em detrimento de alguém ou de alguma coisa. Os genes não se preocupam com o sofrimento, porque não se preocupam com coisa alguma.» «O universo que observamos tem exactamente as características que podemos esperar encontrar nele se pensar­mos que nenhuma ideia, nenhum objectivo, nenhum mal ou bem presidiu à sua concepção, nada mais do que uma indiferença sem compaixão.»
Diabo! Que conclusões tão radicais! Não esqueçamos que o problema é bem conhecido e preocupou os filósofos durante mi­lhares de anos; de repente, o profeta Dawkins compreendeu tudo? O leitor não deve preocupar-se! É certo que existe um grande, um imenso problema, mas a) ninguém, nem mesmo Dawkins, tem a solução e b) é um problema muito mais complicado do que Dawkins pensa ou finge pensar:
a) Efectivamente, o problema ultrapassa o nosso entendimento, porque nós não compreendemos grande coisa acerca da vida que nos rodeia. Os axiomas darwinistas são indemonstráveis, como me esforçarei por provar ao longo das páginas que se seguem, são mesmo indemonstráveis por definição (Fisher);
b) Ele é mais complicado do que Dawkins pensa, porque o mal e o sofrimento não dominam o Universo de forma exclusiva. Tam­bém encontramos nele beleza deslumbrante, mecanismos orgânicos sublimes, que são uma alegria para o espírito no modesto limite em que conseguimos decifrá-los; antes de serem devoradas, as gazelas usufruem certamente da força da juventude e conhecem o período dos amores e dos jogos. Aliás, Dawkins supõe que elas vivem angustiadas, o que prova que não conhece bem o compor­tamento animal; a verdade é que, pouco tempo depois de ter esca­pado ao leopardo, o rebanho de antílopes se põe a pastar pacifica­mente, como se nada fosse... A angústia animal não se assemelha à angústia humana; faltam-lhe, felizmente, a previsão e a reflexão.
E chegamos ao problema com que os filósofos se debatem há mais de três mil anos. O Universo não é atroz nem delicioso: é as duas coisas ao mesmo tempo. Não é possível sair disto com uma pirueta darwinista.
Poderemos ao menos pensar numa resposta! Não, mas talvez possamos entrever uma táctica perante o desconhecido, que se calhar só é incognoscível por causa da nossa ignorância: praticar a suspensão do juízo, como os estóicos; somos demasiadamente ignorantes, a ciência é demasiadamente jovem, a biologia prati­camente só agora começou.
E, sobretudo, abstermo-nos cuidadosamente de declarações fracturantes e desesperantes à Ia Dawkins. Podíamos mesmo di­zer «à Ia Monod», porque Jacques Monod não se privava de fazer declarações semelhantes.
A obra termina com uma frase assombrosa, que espantará qualquer cientista normalmente constituído (página 368 e última): «Desde que postulemos uma série suficientemente extensa de intermediários infinitesimais diferenciados, estaremos em condições de fazer derivar tudo de tudo, sem invocar incompatibilidades astronómicas.»
Realmente, fazer derivar tudo de tudo! Alguém imagina um físico a escrever uma coisa parecida com esta? Dawkins esquece, aqui, que é um homem de ciência. Fazer derivar tudo de tudo? Não será isso aquilo a que se chama andar em círculos?
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Fonte:
O Darwinismo ou o Fim de um Mito, por: Rémy Chauvin. Instituto Piaget. Lisboa, 1997, págs. 23-25.

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