A psicologia comparada e a questão da alma
A nossa lei
do pitecômetro encontra a mais viva resistência num domínio da fisiologia
nervosa, no tocante à origem da alma. A maravilhosa "alma do homem"
seria, segundo se afirma, uma "substância" completamente especial, e
muitos são os que consideram como impossível que se tenha desenvolvido
historicamente a partir da "alma símia". Mas, durante estes últimos
dez anos, as notáveis descobertas da anatomia comparada revelaram-nos que a
histologia como a anatomia macroscópica do cérebro são as mesmas, tanto no
homem como no resto dos antropoides. As escassas diferenças de volume e de
forma das diferentes partes do cérebro são menores que as diferenças
correspondentes que existem entre os antropoides e os catirrinos inferiores,
sobretudo os cinocéfalos.
Em segundo
lugar, a ontogenia comparada
ensina-nos que a estrutura extremamente complicada do cérebro humano provém de
uma mesma forma simples, como acontece nos demais vertebrados, quer dizer, de
cinco vesículas, situadas umas atrás das outras, no embrião. A simplicidade
dessa disposição embrionária, — a forma particular do cérebro nos primatas — é
a mesma no homem e nos antropoides.
Em terceiro
lugar, a fisiologia comparada
mostra-nos, tanto pela observação como pela experiência, que todas as funções
cerebrais — tanto a consciência e o que se chama de faculdades superiores, como
as simples ações reflexas — têm por condição, no homem, os mesmos fenômenos
físicos e químicos no sistema nervoso dos mamíferos restantes.
Enfim, em
quarto lugar, sabemos que, por intermédio da patologia comparada, as perturbações denominadas "enfermidades
do espírito" têm por causa modificações físicas de zonas determinadas do
cérebro, tanto no homem como nos mamíferos mais próximos deste.
Um exame
crítico imparcial confirma, igualmente, aqui a lei de Huxley: as diferenças
psicológicas entre o homem e os antropoides são menores do que as que existem
entre estes e os símios inferiores. Este fator psicológico corresponde
exatamente às investigações anatômicas, que nos permitiram conhecer as
diferenças de estrutura do córtex cerebral — esse "órgão da alma" —, cuja
importância não se pode negar. A elevada significação desta circunstância
torna-se mais clara quando se consideram as extraordinárias diferenças da vida
psíquica dentro da mesma espécie humana. Vemos no cume um Goethe ou um
Shakespeare, um Darwin e um Lamarck, Spinoza e Aristóteles, e, no mais baixo da
escala, encontramos os weddas e os akkas, os australianos e os drávidas, os
bosquímanos e os patagões. A vida psíquica apresenta diferenças infinitamente
maiores, quando se compara aqueles espíritos
geniais e esses
representantes degradados da humanidade, do que entre estes e os antropoides.
Se hoje a
"alma humana" é considerada por muitos como um "ser"
especial, é porque torna-se argumento decisivo contra a "maldita"
teoria da origem do homem no símio; ela explica-se, por um lado,
pelo estado ainda rudimentar do
que se chama "psicologia"
e, por outro,
pela crença tão
difundida da "imortalidade
da alma". Essa "ciência", que se fundamenta em manuais e
cátedras acadêmicas, sob o nome de psicologia, não é uma verdadeira ciência
empírica do espírito, uma fisiologia do órgão da alma. É uma metafísica absolutamente fantástica,
formada por uma introspecção impossível de classificar, com comparações
desprovidas de espírito crítico, observações mal compreendidas e experiências
incompletas, erros especulativos e dogmas religiosos.
A maioria
dos chamados "psicólogos" não conhece sequer a estrutura íntima do
cérebro, nem dos órgãos dos sentidos — tão úteis, maravilhosos e complicados —
os únicos que permitem a atividade psíquica, tanto no homem como nos outros
animais. A maior parte deles ainda não tem conhecimentos sobre os dados significativos da
psicologia experimental moderna
e da psiquiatria, ou ignora-os
intencionalmente; não sabe mesmo a localização dos diferentes meios de
atividade do espírito e sua dependência da constituição normal de certas zonas
cerebrais.
Os surpreendentes resultados
obtidos pela anatomia 22
histológica e a ontogenia do cérebro humano, auxiliados pela fisiologia
experimental e pela patologia, encontram-se entre as descobertas mais
importantes do século XIX. É certo que até agora permaneceram num círculo
restrito, fato que se deve, em parte, à resistência passiva da
"psicolástica" reinante e à dificuldade de compreensão da arquitetura
tão complicada do nosso encéfalo. A localização das faculdades superiores, no
córtex cerebral, foi demonstrada, há dez anos, em estudos de Goltz, de Munk, de
Wernickx, de Edinger etc.Recentemente, Paul Flechsig (1894) conseguiu
delimitar, de maneira mais exata, as diversas partes das zonas cerebrais. Ele
demonstrou que na substância cinzenta do cérebro há quatro regiões,
correspondentes aos órgãos dos sentidos, ou quatro esferas de sensibilidade, muito diferentes umas das outras: a
esfera da sensibilidade geral, no lóbulo parietal; a do olfato, no lóbulo
frontal; a da visão, no lóbulo occipital; a audição, no lóbulo temporal. Entre
estes quatro focos sensitivos
encontram-se os quatro grandes focos do
pensamento, ou centros de associação.
São estes os
verdadeiros órgãos da vida psíquica, os instrumentos da atividade do espírito,
que permitem o pensamento e a consciência: à frente, o cérebro frontal, ou centro
frontal de associação; atrás dele, um pouco mais acima, o cérebro parietal de associação; atrás e
abaixo, o cérebro principal, ou grande centro de associação
occipital-temporal (o mais importante de todos); finalmente, mais profunda,
a ínsula de Reil, que constitui o centro
de associação insular ou médio.
Estes quatro focos, de estruturas particulares e bastante complicadas,
diferenciados dos centros sensitivos a eles ligados, constituem os verdadeiros órgãos do pensamento, os únicos
instrumentos reais da nossa vida psíquica.
O maior
obstáculo ao reconhecimento do grande progresso da psicologia natural consiste
no dogma da "imortalidade da alma", ainda arraigado em muitos
espíritos. Esta desgraçada superstição, criada pelos povos bárbaros e
conservada por meio dos mais diversos mitos, havia sido combatida e derrubada
no século VI a.C. pela filosofia naturalista da escola jônica. Ela era até
desconhecida das religiões mosaica e budista. Somente devido às especulações
místicas de Platão, de Cristo e Maomé se desenvolveu de uma maneira
sistemática. Favorecida pela decadência da civilização clássica helénica e pela
difusão da hierarquia papista, durante as trevas da Idade Média, esta crença
dominou, no transcorrer de mil amos, todas as classes ditas intelectuais. E
ainda que alguns filósofos livres-pensadores tenham se esforçado,
frequentemente, por combatê-la sobretudo durante a Reforma, ao demonstrarem a
ausência de fundamento do dogma da imortalidade, a sua refutação científica
definitiva estava reservada à concepção monista da Natureza, que nasceu na
metade do século XVIII.
A lei
universal da conservação da matéria e da energia domina a vida psíquica dos
animais e do homem, tanto quanto os outros fenômenos naturais. Parece-nos,
atualmente, completamente absurdo que se queira fazer uma única exceção em
relação a esta lei suprema da Natureza, a favor da fisiologia nervosa de um só
mamífero, que se desenvolveu, lenta e progressivamente, muitos milhões de anos depois
do aparecimento da vida orgânica, e que tem por antepassados imediatos toda uma
série de primatas terciários.
Como fomos
conduzidos à necessidade de falar do valor universal desta lei da substância,
não podemos também deixar de recordar o apoio que ela recebeu dos notáveis
progressos, por parte da zoologia, nos últimos quarenta anos. Assim como o
darwinismo demonstrou o papel desempenhado pela casualidade mecânica no
desenvolvimento orgânico — a sua conclusão mais importante —, a lei do
pitecômetro provou o interesse geral desta, inclusive no domínio da
antropologia; não só o dogma da imortalidade pessoal da alma é incompatível com
a lei da substância, como acontece o mesmo com os outros dogmas, intimamente
ligados a esse: o da liberdade da vontade humana, e o da existência de um deus
pessoal, semelhante ao homem, que criou, conserva e rege o universo.
Grande
número de filósofos contemporâneos pensa que estes três dogmas centrais —
fundamentos principais da concepção mística e dualista do universo — não se
deixaram comover pêlos recentes progressos das ciências naturais. Ainda, a este
propósito, a fé se antepõe à filosofia crítica de Emmanuel Kant, esquecendo que
os fundamentos a priori desta eram
puramente dogmáticos, o que tem muita importância. As místicas e brumosas
figuras destes três fantasmas centrais desvanecem-se, ante o esplêndido raio de
sol da substância da proposição do pitecômetro, que se expande sobre o enigma
do universo.
---
Fonte:
A Origem do Homem, por: Ernst Haeckel. Global Editora. São Paulo, 1989, págs. 21-24.
Nenhum comentário:
Postar um comentário