Modernismo Brasileiro
Inquietações modernistas
Enquanto
ocorria no Brasil um acentuado desenvolvimento industrial e urbano, com
profundas modificações na vida social do país, em decorrência principalmente da
Primeira Guerra Mundial, o mesmo não acontecia no campo artístico. A nossa
literatura permanecia ainda presa aos velhos modelos acadêmicos, basicamente
parnasiana na linguagem, refletindo nas primeiras décadas do século XX a
postura do século anterior.
Houve, no
entanto, alguns escritores nesse período, como por exemplo Euclides da Cunha,
Monteiro Lobato e Lima Barreto, que, embora presos ainda à linguagem
tradicional, manifestaram uma consciência crítica da realidade brasileira,
revelando uma visão mais aguda de nossos problemas sociais.
Enquanto na
Europa, e sobretudo na França, ocorria uma onda de renovação artística e
cultural, no Brasil essa inquietação manifestava-se timidamente em alguns
grupos isolados do Rio de Janeiro e de São Paulo, na época os principais
centros culturais do país.
Em 1912 o
jovem escritor Oswald de Andrade, na Europa, toma conhecimento das ideias
futuristas que mais tarde seriam divulgadas em São Paulo. Nesse mesmo tempo
Manuel Bandeira, outro novo poeta, entra em contato na Suíça com a literatura
pós-simbolista. Em 1915 um brasileiro, Ronald de Carvalho, toma parte na fundação
da revista Orpheu, que assinala o
início da vanguarda futurista em Portugal. Funda-se em 1916 a Revista do Brasil, marcada por uma linha
nacionalista.
Pouco a
pouco começam a se formar grupos de escritores e artistas que, embora não
tivessem ainda uma consciência clara e definida do que queriam, sentiam que a
nossa arte devia abandonar os velhos e gastos padrões e buscar novos caminhos.
Vendo na
Academia Brasileira de Letras uma espécie de representação oficial do
tradicionalismo literário estéril e pomposo, os jovens escritores passaram a
atacá-la, reivindicando o direito de explorar novos temas e de elaborar uma
nova linguagem literária.
A exposição de Anita Malfatti
Um fato
importante pela polemica que provocou foi a exposição de pintura moderna feita
por Anita Malfatti nos meses de dezembro de 1917 e janeiro de 1918, em São
Paulo.
Voltando de
uma viagem feita à Europa e aos Estados Unidos, onde entrara em contato com a
arte moderna, Anita Malfatti, incentivada por alguns amigos, resolveu fazer uma
exposição de suas últimas obras.
No acanhado
meio artístico paulistano a exposição provocou comentários variados, tanto a
favor como contra. Entretanto, o que realmente desencadeou a polemica, em torno
não só da pintora mas principalmente da questão da validade da nova arte, foi
um artigo escrito por Monteiro Lobato, na época crítico do jornal O Estado de S. Paulo, na seção Artes e
Artistas e que ficou conhecido pelo título de "Paranoia ou
mistificação?".
Apesar da
lucidez com que debatia certos problemas brasileiros e das intenções
renovadoras que possuía, Monteiro Lobato, nessa questão de pintura moderna,
mostrou-se totalmente passadista, criticando violentamente a nova arte,
chegando a ridicularizá-la.
Para você
ter uma ideia da violência dessa crítica considere este trecho:
"Há
duas espécies de artista. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em
consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e
adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos
grandes mestres. (...) A outra espécie é formada pelos que veem anormalmente a
natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica
de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São
produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos
de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um
instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas
do esquecimento. Embora eles se deem como novos, precursores duma arte a vir,
nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia
e com a mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados,
documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos
manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera,
produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora
deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por
americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo
mistificação pura."
E em outro
trecho, falando a respeito da arte moderna em geral:
"Sejamos
sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e 'tutti quanti' não passam de outros
tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura onde não havia até
agora penetrado."
Essa crítica
precipitada de Monteiro Lobato provocou ressentimentos em Anita Malfatti, mas
ao mesmo tempo despertou uma atitude de simpatia com relação a ela de um grupo
de artistas jovens, resultando manifestações de repúdio às concepções
tradicionais de arte.
Oswald de
Andrade, por exemplo, escreveu no Jornal
do Comércio em 11/01/1918:
"Possuidora
de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a
apaixonada eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a vibrante artista não
temeu levantar com os seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as
mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da
nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de
originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito
fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de
pintura."
Dentre os
que prestigiaram Anita Malfatti estavam, além de Oswald de Andrade, Mário de
Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida e Ribeiro Couto, que junto com
outros artistas organizariam alguns anos mais tarde, em 1922, a Semana de Arte
Moderna.
Divulgação das novas ideias
O ano de
1917 marca também o início da amizade entre Oswald de Andrade e Mário de
Andrade, que tanto dinamismo daria ao movimento modernista.
São
publicados nesse ano alguns livros que, embora não totalmente revolucionários
quanto ao estilo, já trazem algumas inovações e provocam comentários. É o caso
de A cinza das horas, de Manuel
Bandeira, e Nós, de Guilherme de
Almeida, além da estreia de Mário de Andrade, com o pseudônimo de Mário Sobral,
publicando Há uma gota de sangue em cada
poema.
Em 1920, um
grupo de modernistas "descobre" a arte de um jovem escultor, Victor
Brecheret, passando a elogiá-lo e a divulgar seu nome. Até Monteiro Lobato, que
anos antes tinha sido tão reacionário com relação à pintura moderna, reage
favoravelmente e não poupa elogios ao artista.
As novas ideias
começam a circular rapidamente. Em 24/01/1921, o Correio Paulistano publica um texto de Menotti dei Picchia em que
são expostos os princípios do novo grupo de escritores, e que foram assim
resumidos pelo crítico Mário da Silva Brito:
a) o rompimento
com o passado, ou seja, a repulsa às concepções românticas, parnasianas e
realistas; b) a independência mental brasileira, abandonando-se as sugestões
europeias, mormente as lusitanas e gaulesas; c) uma nova técnica para a
representação da vida em vista de que os processos antigos ou conhecidos não
apreendem mais os problemas contemporâneos; d) outra expressão verbal para a
criação literária, que não é mais a mera transcrição naturalista mas recriação
artística, transposição para o plano da arte das realidades vitais."
Nesse mesmo
ano, Mário de Andrade publica uma série de sete estudos sobre os mais
destacados poetas do Parnasianismo: Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto
de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho.
Esses
estudos, intitulados Mestres do passado,
constituem uma análise crítica e aguda da famosa geração parnasiana, e Mário de
Andrade, ao apontar-lhes os méritos, não hesita em demonstrar suas fragilidades
e vícios literários, concluindo que realmente a hora do Parnasianismo já tinha passado
e que esses poetas não ofereciam mais nenhum interesse e nem poderiam servir de
inspiração para os escritores das novas gerações.
No fim de
1921 intensificaram-se os contatos entre os jovens artistas de São Paulo e do
Rio de Janeiro. O escritor consagrado Graça Aranha, apesar de pertencer à
Academia Brasileira de Letras, resolve aderir às novas ideias e começa a
participar do movimento.
Como se pode
perceber, havia na época uma grande agitação e um clima de debates e
reivindicações. A proximidade das comemorações do Centenário da Independência,
para as quais se preparava todo o país, reforça a ideia lançada pelo pintor Di
Cavalcanti de se organizar uma exposição de arte moderna, que estaria destinada
a ser o marco definitivo do Modernismo no Brasil.
A Semana de Arte Moderna de 1922
Depois da
publicidade na imprensa, tendo sido convidadas figuras destacadas da sociedade,
foram realizados três espetáculos no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias
13, 15 e 17 de fevereiro.
No saguão do
teatro, durante toda a semana, foi instalada uma exposição de artes plásticas
que incluía trabalhos dos artistas Victor Brecheret, Anita Malfatti, Di
Cavalcanti e Vicente Rego Monteiro, entre outros.
No dia 13,
Graça Aranha abriu a Semana com a palestra Emoção
estética na obra de arte, onde propunha a renovação das artes e das letras.
Houve, em seguida, declamações de textos modernos e a execução de uma
composição musical de Villa-Lobos, além de uma conferência de Ronald de
Carvalho sobre a pintura e a escultura modernas no Brasil. O programa dessa noite
encerrou-se com a execução de peças musicais.
A noite de
15 de fevereiro foi a mais agitada. Abriu o espetáculo Menotti dei Picchia com
a palestra Arte moderna, cuja
reivindicação de liberdade e renovação provocou apartes e vaias. Eis alguns
trechos de sua palestra:
"A
nossa estética é de reação. Como tal, é guerreira."
"Queremos
exprimir nossa mais livre espontaneidade dentro da mais espontânea liberdade.
Ser, como somos, sinceros, sem artificialismos, sem contorcionismos, sem
escolas."
"Nada
de postiço, meloso, artificial, arrevesado, precioso: queremos escrever com
sangue — que é humanidade; com eletricidade — que é movimento, expressão
dinâmica do século; violência — que é energia bandeirante."
Alguns
jovens escritores também foram apresentados e declamaram versos modernos, a que
se seguiu uma ruidosa reação do público. A pianista Guiomar Novaes encerrou a
primeira parte, acalmando um pouco a situação.
No
intervalo, perante um público espantado pelas obras de arte expostas no saguão,
Mário de Andrade fez uma palestra sobre artes plásticas. Referindo-se a esse
episódio, vinte anos mais tarde, diria ele: "Como pude fazer uma
conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos
que me caçoavam e ofendiam a valer?..."
A segunda
parte, mais tranquila, constou de execuções de peças musicais.
Na noite de
17 de fevereiro, encerrou-se a Semana com a apresentação de músicas de
Villa-Lobos.
Podemos
dizer que, apesar das críticas e dos obstáculos, a Semana de Arte Moderna de
1922 conseguiu o que pretendia: a divulgação aberta de que existia uma outra
geração de artistas que lutava pela renovação da arte brasileira, rejeitando o
tradicionalismo e as convenções antiquadas, contribuindo para dar um impulso
decisivo à atualização da cultura no Brasil.
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Fonte:
Estudos de Língua e Literatura, Volume 3, por: Douglas Tufano. Editora Moderna, 2ª Edição. São Paulo, 1984, págs. 18-23.
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