terça-feira, 5 de julho de 2016

Uma história de sonhos, uma história de ouro

Uma história de sonhos, uma história de ouro
Por: Valéria De Marco (da Universidade de São Paulo)
Há entre nós e Alencar vários heróis, muitos romances, ilusões, histórias de amor nos livros, no cinema e na televisão. É preciso ter em mente que mais de cem anos nos separam e que Alencar é uma figura de muitas faces: jornalista, crítico literário, cronista, teatrólogo, romancista, advogado deputado e ministro da Justiça. As múltiplas atividades se alimentavam de um obsessivo desejo de conhecer a realidade brasileira e de atuar dentro dela e não se pode tomar sua ficção sem considerá-la como parte do debate político e cultural dos tempos do Império, das polemicas acaloradas em busca da construção de uma identidade para a nação que nascia. Um pouco do clima e algumas questões desse debate poderão ser encontrados nos dois textos escritos por Alencar a propósito de Sonhos D'Ouro: "Bênção Paterna" e "Os Sonhos D'Ouro". O primeiro texto se desenvolve como um diálogo entre o autor e seu romance, como preparação para "aquela crítica sisuda". Na conversa pode-se observar não só o projeto da ficção alencariana e a classificação de suas obras como também algumas das questões a eles subjacentes.
Dentre elas, devem ser ressaltadas a da nacionalidade da literatura e a do papel da tradição literária. Quanto à nacionalidade, pelas referências que faz o autor, parece que a crítica da época oscilava entre os extremos de tematizar ou a raça nativa ou a colonizadora, zelando pela absoluta pureza das línguas. Alencar aponta para a necessária vinculação entre literatura e realidade e põe em relevo a constante interação entre o nativo e o estrangeiro: "Não são assim os povos não feitos: estes tendem como criança ao arremedo; copiam tudo, aceitam o bom e o mau, o belo e o ridículo, para formarem o amálgama indigesto, limo de que deve sair mais tarde uma individualidade robusta". A crítica ao caráter estrangeiro das personagens deste romance não tardou è, dois meses depois do livro sair do prelo, Alencar rebate-a em "Os Sonhos D'Ouro", texto que fecha esta edição. Ainda em "Bênção Paterna", tendo colocado os problemas da nacionalidade e da solidez da literatura, Alencar tece algumas considerações a respeito do seu papel de autor na História como contribuição para a formação de um lastro que possibilitaria a vinda dos grandes escritores: "Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo".
A história de Sonhos D'Ouro começa em um verão tropical, sob o sol ardente da Tijuca onde se encontram Ricardo e Guida. Ele, um jovem bacharel provinciano, com interesses e dotes artísticos, está no Rio trabalhando honestamente para conseguir vinte contos de réis, montante que o levaria à felicidade. Guida é a moça da corte, educada à inglesa, versada em salões e menina mimada, vendo todos os caprichos satisfeitos, por ser filha de Soares, homem que "de simples dono de armarinho, se elevara a milionário", a "banqueiro". A narração do primeiro j encontro das duas personagens l utiliza tantos recursos teatrais que o leitor logo percebe por onde vai a história e seu motor é "esta diferença de condições sociais", apontada por António Cândido, na Formação da Literatura Brasileira, como "uma das molas da ficção de Alencar" A explicitação dessa diferença social entre as personagens cria a possibilidade de lermos, neste romance, episódios de uma história do ouro. Os capítulos VIU e XII trazem algumas maneiras de enriquecimento e de aquisição de títulos de nobreza, ao apresentarem os convivas de Soares, mostrando que as relações existentes à mesa de almoço ou de jogo são tecidas pelo dinheiro. Este aparece também como elemento decisivo na definição do casamento, problema longamente discutido nos capítulos XXV e XXVI. O narrador, no capítulo V, atribui a devastação da natureza ao desejo de lucro.
Frequentemente, esse universo de relações humanas permeado por disputas econômicas serve de apoio a críticas à atividade política, como nas seguintes palavras de Soares, referindo-se ao casamento da filha: "eu sou a coroa, a Guida é o parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-me à sanção ou ao veto".
Na relação entre Guida e Ricardo há dois obstáculos: o ouro e a consciência. Observe-se o caráter metálico das imagens que a ela se referem: o riso "argentino" de Guida é comparado a "um cofre de pérolas e rubis"; "ela era o milhão feito anjo; o ouro convertido em luz, a libra esterlina transformada em estrela", e sonhos d'ouro, a flor que provoca o encontro das personagens, tem a cor do metal. Ricardo defende a dignidade do trabalho, recusando-se a relacionar-se com o mundo pela circulação do dinheiro ou do favor. Isola-se em seu pequeno quarto para preservar a palavra empenhada e a consciência, trabalhando em alguns processos e traduzindo folhetins e Eugénie Grandet. Intencional ou não, é interessante a citação desta obra de Balzac: história de uma riqueza que cresce na medida em que os proprietários se dissolvem, uma trajetória de desumanização.
Talvez por a realidade brasileira não apresentar o mesmo grau de complexidade que a província francesa, talvez por Alencar não conseguir olhá-la com a pupila impiedosa de Balzac, Sonhos D'Ouro impregna-se do romantismo e nos oferece uma história de amor. Ricardo, liberado do compromisso de sua palavra, volta à harmonia natural da Tijuca. A rapidez do desabrochar da flor desata os sentimentos. Com a mesma pressa, Alencar foi ao prelo acrescentar o post-scriptum que, apesar de tantas peripécias douradas, acaba forjando um happy-end para a história de sonhos. Talvez seja esta a que mais cale na memória do leitor.

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Fonte:
Sonhos D'Ouro, por: José de Alencar. Editora Ática. São Paulo, 1981, págs. 5-6.

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