quinta-feira, 21 de julho de 2016

O que é a célula

O que é a célula
Por: Camille Delio
Um homem é constituído por 60 milhões de células. Cada uma delas é um conjunto de organismos tão complexos quanto o homem. Somente com a descoberta do microscópio eletrônico é que se conseguiu estudar a fundo a vida e ação das células. Elas realizam em um minuto, operações que na natureza necessitariam de séculos. Ainda não se sabe muita coisa das células. A membrana que isola uma da outra, ou a força que as une, permanece como enigmas. Neste artigo mostramos uma curiosa aventura da ciência.
Seria preciso ver sobre uma teia o nascimento de um pessegueiro e o seu crescimento, filmados milímetro por milímetro, à razão de alguns segundos por dia, para acreditar. Centenas de breves sequências, montadas em continuação, oferecem um espetáculo terrível: diante de nossos olhos, os ramos se torcem e se alongam, as folhas se desdobram, os brotos intumescem e explodem, as flores se abrem como mãos — como se tudo fosse movido por uma força inexorável, orientada em uma única direção, e extraordinariamente presente: cinco anos de vida concentrados, ao máximo, em um curta-metragem que deixa no coração uma angústia vaga, porque não sabíamos que "aquilo" era uma árvore: "aquilo" são milhares de pequenas unidades de vida, milhares de células que se erguem no ar, de maneira invisível, e constroem uma árvore de incrível pujança. "Aquilo" são, também, os 60 milhões de milhões de milhões de células que formam um homem. É a extraordinária energia fabricada e gasta a cada instante para alimentá-lo, protegê-lo, assegurar-lhe a descendência e manter a integridade de seu patrimônio hereditário. "Aquilo" é, enfim, a fusão de uma célula masculina com uma célula feminina e o prodigioso processo que presidirá a esses 60 milhões de células.
O filme dos nove meses de vida de um embrião humano não foi realizado, mas as fotos e os modelos mergulham-nos no sonho, no deslumbramento, livres de qualquer inquietação que não seja apenas imensa curiosidade. Assim, paradoxalmente, uma criança em formação seria menos surpreendente do que uma árvore que cresce diante de 1 nossos olhos, em meia hora.
A exploração da célula começou em 1665, quando Robert Hoocke, físico inglês, pôs em funcionamento um microscópio óptico bastante poderoso para revelar, na cortiça, pequenos alvéolos, aos quais deu o nome de células. Graças ao microscópio eletrônico, essa pesquisa continua, hoje, em escala molecular.

Não existe vida sem a célula
Entre essas duas descobertas, a distância entre dois mundos e a aproximação de um planeta com relevo, com canais, com correntes desconhecidas, apresentando todas as formas, todos os tamanhos, desde o quarto de mícron até o centímetro, desde a bactéria até a gema de ovo, adaptado a todas essas funções, mas sempre composto dos mesmos elementos essenciais — carbono, hidrogênio, oxigênio, azoto, fósforo — organizados em formações invariáveis: um núcleo, uma membrana, um citoplasma. Invariáveis, porém não imutáveis. De fato, quem diz célula diz vida, diz mobilidade. Não pode existir vida sem célula, não pode existir vida sem movimento. Quer a célula livre, quer a célula agregada a outras células para formar um tecido, ela se move e palpita continuamente. Livre, nada ou rasteja. Impelido por um flagelo, espécie de pequeno chicote, um espermatozoide abre seu caminho na água.
Deformada por uma corrente interna, comparável à lagarta de um tanque de guerra, apoiada sobre os prolongamentos que ela própria emite, uma ameba se propulsiona, em um movimento cujo mecanismo continua envolto em mistério. Em verdade, quer este deslocamento se opere por meio de cílios, de pseudópodos (falsos pés), de véus ondulantes ou, ainda, de "rugas" na superfície da membrana, o processo dessa locomoção é desconhecido. Ignora-se quem orienta e dirige, no embrião, a migração das células iniciais em direção aos pontos predeterminados que as esperam. Ignora-se quem guia uma bactéria ou um parasita no sentido do tecido ou órgão específico que deve atacar. Contact guidance, orientação por contato, disse alguém; ou ainda, por inibição ou repulsão, diante dos fatores do meio, tomaria a célula, por si mesma, certas direções. Contrações rítmicas do fluido, ou citoplasma, que enche a célula, acrescentou alguém. Entretanto, esse ritmo caracteriza igualmente as células imóveis e não basta para explicar a propulsão das primeiras.
A primeira ideia que se fez da célula foi a de um líquido em movimento, retido por uma membrana delgada, elástica e resistente, capaz de contrair-se, mas também de escoar-se, ao mínimo rompimento. No centro um núcleo que gira devagar sobre si mesmo, em lento movimento pendular. Estranha era a existência de correntes e contracorrentes, aparentemente desorganizadas, às quais se acrescentava uma variedade infinita de pulsações, movimentos em vaivém, em jato, ou ainda, movimentos brownianos, que remexiam uma população inteira de organismos mal definidos. A origem desta extraordinária circulação foi, por muito tempo, atribuída a um impulso vindo de fora. Na realidade, ela nasce no próprio interior da célula e deve resultar de um conjunto de fatores mal conhecidos. A um dado momento, certa quantidade de energia se transformaria em energia mecânica e daí o impulso.
Na escala macromolecular, as torções das cadeias, a incessante modificação das proteínas manteriam o movimento. Inúmeros fatores físicos e químicos participam do fenômeno, certas drogas, como a morfina, podem acelerá-lo e mesmo provocar uma verdadeira agitação na célula.

Os mitocôndrios são centrais de energia
A chegada do microscópio eletrônico a este tumulto deve ter sido, guardadas as devidas proporções, semelhante ao que seria a alunissagem do primeiro foguete. Com o microscópio eletrônico, o movimento para, a infraestrutura e a trama da célula aparecem. Para compreender a comoção resultante, é preciso ser míope, ir uma vez ao cinema sem óculos e assistir, no dia seguinte, à projeção das imagens do filme, com óculos; ou ainda, imaginar que reconhecemos, do alto do Empire State Building, a central elétrica de Marcoule, através de um binóculo aperfeiçoado. As centrais de energia da célula, os mitocôndrios, não passavam, ontem, de minúsculos bastonetes, carreados pelos movimentos da água, do mesmo modo que uma multidão de outros elementos indistintos, destinados, ao que parece, a frear esses movimentos da água. Tais bastonetes ou mitocôndrios têm, em realidade, o aspecto de bexigas, de pequenos vermes curtos ou de naves espaciais extremamente flexíveis, cuja dupla membrana se dobra e redobra no interior de um estranho labirinto, podendo inflar-se ou desinflar-se conforme o meio que a cerca.
No interior das dobras dessa pequena cápsula efetuam-se reações, que levarão à produção maciça de energia e ao seu depósito em reserva — produção de energia, cada vez que uma partícula alimentar for "queimada" no organismo; estocagem de energia, cada vez que uma molécula da ATP (ácido adenil-trifosfórico) for fabricada. Nesse meio tempo, um trabalho gigantesco se realiza na cadeia em cujo curso os elétrons arrancados, das partículas orgânicas liberam sua energia, saltando de molécula em molécula para reunir-se ao oxigênio, ativá-lo e transformá-lo em gás carbônico e em água. Esta maratona se desenvolve ao longo de circuitos, de cadeias preestabelecidas, de tal modo que a energia bruta seja imediatamente conservada sob forma de ATP.
O fluxo de eletricidade varia de acordo com a atividade do organismo, e pode assumir proporções fantásticas, „ quando pensamos que um único mitocôndrio contém 15 mil cadeias e uma única célula, de 5 a 40 mil mitocôndrios,- um corpo humano, 10 milhões de células. Além disso, se compararmos o rendimento de uma locomotiva com o de um mitocôndrio, o resultado será impressionante — um mitocôndrio transforma 50% de matéria-prima em energia, enquanto que uma locomotiva dificilmente alcança a taxa de 8%.

Em um minuto, transformações que na natureza, exigiriam séculos
A chave desse desempenho reside na sua grande riqueza de enzimas, isto é, de substâncias proteicas capazes de provocar a união de moléculas, de acelerar as reações e de promover, na própria célula, em um minuto, as transformações que demandariam milhares de anos para produzir-se. Mais ainda, capazes de criar nela um laboratório sem igual, onde se combinam, a temperaturas muito brandas, certas operações misteriosas, que a química de síntese jamais conseguiu reproduzir, apesar das temperaturas extraordinariamente elevadas de que dispõe. Tais catalisadores não estariam dispersos, ao acaso, no mitocôndrio, mas enfileirados em batalhões, nas cristas do labirinto interno. Ignora-se, entretanto, quais os pontos em que esses batalhões seriam mobilizados, para entrar em ação. O curioso é que, para ser ativo, um mitocôndrio não tem necessidade de ser inteiro. De fato, depois da fragmentação, persiste a ação das enzimas, o que viria depor a favor de sua fixação nas "cristas".
Qual a origem exata desses reservatórios de energia? Eles existem, em número fixo, desde o nascimento da célula, mas ignora-se a que correspondem as mutações que se comprovam no decurso da espermatogênese. Os ribossomos são usinas aperfeiçoadas, onde se efetua a síntese das proteínas.
Como se dá a transferência de energia? Como descarregam eles o seu ATP no interior da célula? Vemo-los às vezes empalidecer, mudar de forma, ou ainda reunir-se em torno do núcleo, cujo nucléolo lança, então, um fino prolongamento. Este prolongamento alcança o mitocôndrio. Será através dele que a troca de "carburante" se dá? Somos tentados a supor que sim.
Outros "reservatórios", os lisossomos, minúsculas vesículas carregadas de enzimas destruidoras, cuja explosão provoca imediatamente a desagregação (a lise) da matéria viva. Apelidados, por isso, "maleta de suicídio", parecem estar ali para levar as células envelhecidas a uma morte rápida, a menos que sejam — quando não explodem — os "estômagos" em miniatura da célula, capazes de auxiliar na digestão de certos corpúsculos. Talvez desempenhem ambos os papéis ao mesmo tempo, talvez sejam, ainda, meros pedaços de citoplasma estragado, postos de lado de qualquer maneira e isolados por uma membrana. Enzimas destruidoras e alteração andam juntas, o que justificaria esta hipótese, mas ignora-se onde são fabricadas essas enzimas e sob que influências as gavetas que as encerram bruscamente se abrem.
Ao lado das usinas de destruição, usinas de construção circulam continuamente em torno do núcleo. Ao contrário das cápsulas-suicídio, os ribossomos constroem proteínas. Todo crescimento, toda regeneração celular, todo desenvolvimento embrionário, toda matéria viva implica na noção de proteína, ou, em outras palavras, de uma estrutura plástica em perpétua modificação, de um edifício gigantesco, formado de moléculas enormes, contorcidas sobre si mesmas, amontoadas ou dobradas, capazes de desdobrar-se, de crescer mais, de reunir-se untas às outras, até o infinito. Originariamente, 20 tipos de material extremamente simples, os aminoácidos, que prendem, reúnem e ajustam as usinas de montagem da célula, os milhares de grãozinhos, chamados ribossomos em virtude da alta porcentagem de ácido ribonucleico ou ARN que neles se encontra.
O trabalho parece ser feito em equipe. De fato, estas usinas de proteínas não flutuam livremente, mas prendem-se à tênue rede de canais que sulca a célula e cerca o núcleo. Imprecisa em sua silhueta, esta fina rede constituiria o sistema circulatório da célula, assegurando as trocas com o exterior e a eliminação dos detritos.
Portadora dos ribossomos, ela transportaria as proteínas destinadas a serem exportadas para o aparelho menos conhecido da célula — o aparelho de Golgi, descpberto há 67 anos nas células nervosas de uma coruja. Sua forma sugere o ano 2000, sua tarefa é um enigma. Entretanto, quando se rompe, seus pedaços revelam uma espantosa concentração de proteínas. Recolherá ele estas últimas, nas bolsas achatadas que o compõem, expedindo-as em seguida, de acordo com a demanda, devidamente embaladas e protegidas? Isto não passa de hipótese.

O ARN é o mensageiro que leva ordens a pequenas usinas
Sejam quais forem, essas proteínas são fabricadas nos ribossomos, em uma última etapa, que nenhum outro aparelho celular pode realizar. De fato, somente os ribossomos possuem as mesas de montagem necessárias, sob a forma de ARN.
Sobre essa mesa virão despejar-se os aminoácidos, inicialmente ativados, despertados de alguma forma pelos esforços conjugados de uma enzima e de certa quantidade de energia; depois, no citoplasma, um intermediário químico — ou ARN solúvel — deles se encarrega.
Isto se faz em uma ordem determinada, por informação genética obtida do núcleo, transmitida por um enviado especial, o ARN mensageiro, terceira forma do ácido ribonucleico. Sua existência foi pressentida, pela primeira vez, em 1961, pela equipe dos três Prêmios Nobel franceses e confirmada um ano depois, em virtude de dificuldades experimentais apresentadas pela descoberta. Realmente, esse mensageiro morre alguns minutos depois de transmitir a mensagem, e desaparece.
As ordens são formais e o mínimo erro pode desencadear unia catástrofe. Assim, o deslocamento de um único dos 574 aminoácidos da hemoglobina basta para provocar uma verdadeira transformação dos glóbulos vermelhos, que assumem a forma de pequenas foices, tornando-se então responsáveis por uma anemia mortal, que se converte depois em hereditária. O modelo, o esquema inicial deverá ser não apenas perfeito como ainda decalcado e reproduzido de modo igualmente perfeito. Entre esses dois estágios de fabricação, o mensageiro desempenha o papel principal. Sem ele, os dois outros ARN fabricariam proteínas descontroladas, entregues a si mesmas, na mais completa anarquia.
Para que a anarquia não se instale, um centro de controle funciona continuamente: o núcleo. Centro de controle, mas também centro diretor indispensável à vida da célula, indispensável ao seu metabolismo e — atribuição suprema — guardião dos caracteres hereditários: em outras palavras, o cérebro, o coração da célula. Definido de outra maneira, um glóbulo viscoso, limitado por uma membrana, composto de filamentos estranhamente emaranhados, e contendo na própria massa um outro glóbulo ou nucléolo. Estes filamentos representam a mais importante partícula biológica que existe, os cromossomos, portadores da molécula biológica mais importante que existe: o ADN, ou ácido desoxirribonucleico. Recordemos que, sem ele, o mensageiro ARN nada teria a transmitir, ou melhor, não teria qualquer forma de existência. Segregado continuamente pelo núcleo, o ARN é, de fato, modelado pelo ADN, que lhe dá forma, impondo-lhe sua própria arquitetura.
Esta arquitetura é atualmente bem conhecida, sob o nome de esquema de Watson e Cricks: uma escada retorcida sobre si mesma, uma escada gigante, com milhões de degraus — sendo as rampas laterais formadas de um açúcar e de um fosfato — que se sucedem regularmente e formado, cada um deles, da união de duas bases entre si.
O número de pares realizados limita-se a quatro: suas afinidades são de fato imutáveis e, entre as quatro bases iniciais, somente a timina pode reunir-se à adenina de um e de outro lado da escada, a guanina à citosina. A posição dos pares ao longo dos montantes da escada é a chave da mensagem. Em verdade, a ordem de sucessão dos degraus, de cima para baixo, pode variar até o infinito e formar milhares de combinações: 6 milhões de degraus para uma única célula humana, cuja ordem de sucessão é hereditariamente determinada. Em outras palavras, trazemos, em nossas células, ao nascer, milhares de pequenos pergaminhos onde estão inscritas as diretrizes de vida, sob a forma de mensagem miniaturizada, cujo texto seria constituído pela própria cadeia de ADN e cujas letras, símbolos do código, constituídas pelo encadeamento de três bases ao longo da escada.

O núcleo evita que se instale a anarquia
É esse código, essa mensagem, que o ARN mensageiro transmite integralmente e que o ARN solúvel do citoplasma recebe integralmente, para que lhe seja possível colocar os aminoácidos na ordem desejada e descarregá-los, na mesma ordem, sobre o ARN dos ribossomos. Um símbolo do código corresponde a um aminoácido particular; diversos símbolos, a uma dada proteína. Existem tantos padrões, tantos modelos de confecção quantas proteínas, notavelmente organizadas, classificadas no núcleo, ao longo dos cromossomos. De fato, a desordem seria total sem uma organização rigorosa. São os cromossomos, particularmente visíveis no momento da divisão da célula, sob a forma de molas duplas, irregularmente distendidas, protegidas por uma bainha e ligeiramente recurvadas em V, "os elementos ordenadores". Cada cromossomo traz, na ponta do V, uma espécie de pequena polia; na extremidade de um dos dois ramos, oscila um satélite, na ponta de uma haste fina, ou talo; finalmente, na própria mola se acham dispostos os genes, sob a forma de grãozinhos, cuja espécie varia de acordo com as espiras. Assim, as regiões muito espiraladas seriam responsáveis pela síntese das proteínas, enquanto que as regiões frouxas e sem espirais seriam as partes nobres do cromossomo, os suportes da hereditariedade. Em verdade, ignora-se ainda qual é a estrutura exata da mola ou cromonema. Haverá um cromonema ou vários cromonemas?
Em outras palavras: serão as imensas cadeias de ADN que o compõem orientadas paralelamente ao eixo do cromossomo ou perpendicularmente a ele? Formariam então, segundo a recente teoria do sábio norte-americano, J. H. Taylor, pequenos bastões paralelos, que trepariam, em espiral, ao longo desse eixo. Ò cromonema seria único e encurvado sobre si mesmo, em pontos determinados, para formar os nós, os novelos, os cromômeros ou genes. A imagem é atraente: um único fio, elegantemente amarrado em regiões preferenciais, sem que o nó nunca seja o mesmo, sem que o acaso jamais interfira. Metros de ADN redobrados em 1.250 grãos por cromossomo humano, em porções de matéria aparentemente infinitesimais, cuja atividade é prenhe de consequências: não será absurdo dizer que nossa vida está presa por um fio. Por um fio e, sem dúvida presa também ao sistema regulador que ele encerra, pois a síntese das proteínas não é apenas regulada em qualidade, mas ainda em quantidade; é isto o que acabam de demonstrar os professores Monod, Lwoff e Jacob. Existe, de fato, um equilíbrio constante entre as proteínas fabricadas e os materiais básicos necessários; bastará impedir as enzimas, que presidem todas as reações de síntese, de agir, para bloquear imediatamente a produção. Esse bloqueio é realizado pelo sistema regulador recentemente descoberto. O gene de estrutura, isto é, a molécula capaz de impor a fabricação de uma proteína ou de uma enzima dada, dependerá, em verdade, de três outros genes: um gene operador, que ordenaria aos genes de estrutura que agissem; um repressor, capaz de bloquear essas ordens, de impedi-las, sob o efeito de um terceiro gene, chamado regulador, que entraria bruscamente em ação, desde que uma taxa máxima de proteínas aparecesse. Como um verdadeiro termostato, a interferência do gene regulador provocaria, da parte da célula, a construção imediata do repressor, que desempenharia então o papel de um interruptor elétrico, em face do gene operador.
Resultaria daí uma produção controlada de enzimas e, portanto, de proteínas, um mecanismo de auto-regulagem notável, se pensarmos no estado de permanente desequilíbrio que ameaça a célula.
Desequilíbrio, uma vez que construções e destruições se sucedem sem descanso, pois tudo não passa de instantes e mobilidade, transformações e mudanças, no seio da própria estrutura. Como observa Henri Firket: "A célula, cuja forma parece ter certa permanência, não a tem mais firme que a chama de um bico de gás ou um rio que corre. Seus contornos são estáveis, suas moléculas continuamente substituídas por outras, idênticas ..." Como conseguiu ela, entretanto, atingir, no curso da evolução, o estado de perfeição, de domínio e de equilíbrio que a caracteriza? Quais são os mecanismos que presidem a essa regulagem minuciosa e espontânea? Que são eles e como funcionam? Não desenharia essa regulagem, por sua vez, uma outra imagem da célula, um contorno interno, do qual o sistema regulador, descoberto pelos três sábios franceses, seria, talvez, apenas um dos reflexos?

A membrana que isola as células é o elemento mais misterioso
Os contornos externos da célula são, em compensação, bem visíveis ao microscópio comum, sob a forma de fina película, aparentemente uniforme. O microscópio eletrônico põe em dúvida, porém, a sua existência real. Conjunto heterogêneo, crivada de poros, de crateras e vales, variando no tempo e no espaço, cercada de moléculas de água, a membrana constitui, atualmente, uma das formações mais misteriosas e mais fantásticas que existem. Graças a ela, a célula pode deslocar-se e, ainda, nutrir-se e "apanhar" diretamente os alimentos de que necessita. Bastará uma deformação interna ou externa, uma envaginação ou um tentáculo, para que a célula possa envolver a presa ou o líquido cobiçado. Como ela reconhece os elementos que a cercam? Através de que meios "sabe" um glóbulo branco reconhecer o corpo estranho que deverá digerir, fazendo a discriminação entre os elementos da sua raça e os outros? A que substâncias químicas, constituintes da estrutura de sua membrana, se liga esta capacidade de discriminação, que é a própria base de todos os processos imunológicos? Seria de extremo interesse descobrir isto.
Esta estrutura está curiosamente associada à presença da água que "liga" entre si as três camadas de moléculas superpostas na superfície da célula: duas fileiras proteicas, entre as quais uma cadeia dupla de lipídeos se alinha em paliçada, de tal modo que o todo forma espécies de pilares, capazes de afastar-se ou aproximar-se uns dos outros, de abrir-se ou fechar-se. Estará ali a explicação das variações de permeabilidade da membrana, cujas causas continuam desconhecidas? Ignora-se, mas todas as trocas com o meio ambiente dependem da seleção que se opera à entrada da célula, permitindo a passagem de certas substâncias ou proibindo-lhes a saída, conforme a ocasião.

A força que une as células é um mistério
Esta mesma estrutura explicaria a passagem de certas substâncias para dentro da célula. Assim, os anestésicos, solúveis em gordura, atravessariam naturalmente a camada de lipídeos e as substâncias solúveis na água penetrariam, ao contrário, graças à água retida nas fileiras de proteínas. A palavra "entrabilidade" substitui, frequentemente, a palavra permeabilidade. À ideia de uma membrana passiva, sujeita a fenômenos de simples difusão ou de osmose, acrescenta-se a ideia de um transporte ativo, talvez com dispêndio de energia. As macromoléculas da superfície celular mudam constantemente de orientação. Será uma adaptação automática, em função da vizinhança ou, ao contrário, a expressão de um rearranjo voluntário, de certa maneira "pensado" pela célula, com a finalidade de melhor utilizar essa mesma vizinhança? Aqui se colocaria, se quiséssemos ir mais longe, o problema da liberdade celular.
É preciso não esquecer, entretanto, que uma célula raramente é livre e que ela vive mais frequentemente em populações, em estreita relação com as outras células e em estado de estabilidade aparente.
Que forças as unem? Que afinidades? Através de que cimento aderem elas, umas às outras? Ligações químicas, forças de coesão, cargas elétricas? Ignora-se exatamente, mas as células se engrenam estreitamente, acavalam-se, livres e no entanto, ligadas, unidas por pontes fibrilares, minúsculas faixas de calafetação, ou ainda curiosas engrenagens ou mosomas, verdadeiros dispositivos de solidariedade, capazes de manter mecanicamente os maciços celulares. Outro fenômeno, outra ligação de natureza infinitamente mais sutil parece consolidar essa reunião: a presença constante, entre as células, de um "espaço em branco", recentemente revelado pelo microscópio eletrônico. Sua composição é desconhecida, seu papel exato indeterminado. Será ele um espaço, uma camada acolchoada, destinada a permitir que as células escorreguem umas sobre as outras? Será ele a zona neutra onde se efetuam as trocas ou o "pool" indispensáveis para assegurar as ligações com o meio interior? Todas as questões são permitidas. Deixemos que Maeterlink responda a respeito deste assunto:
"Aliás, se examinarmos as coisas de mais perto, veremos que, embora fechados em nosso corpo, nossos 60 trilhões de células estão relativamente tão espalhadas quanto milhares de abelhas, de térmitas ou de formigas, fora de sua casa. As distâncias entre esses pares de células são proporcionais ao tamanho delas, ou pelo menos, ao tamanho dos elétrons que constituem a sua alma; e estas distâncias devem ser comparativamente tão grandes quanto as que separam os astros no céu, pois o infinitamente pequeno equivale ao infinitamente grande..."
Que será feito, então, desse espaço em branco, quando se desagregar um maciço celular? A experiência é há muito tempo conhecida. Basta fazer passar uma esponja viva através de um tecido fino de seda, para que suas células se separem, e conservá-las em suspensão para ver a sua reagregação. Ou melhor, células misturadas de órgãos embrionários e desagregadas por técnicas mais modernas reagregam-se para formar, em seguida, os órgãos de onde se originaram inicialmente. Em outras palavras: esta reassociação é ordenada, orientada de maneira seletiva, tanto assim que uma t célula hepática jamais virá a juntar-se a uma célula renal. Tudo parece trabalho de moléculas e é de fato de moléculas que se trata, quando se considera a vida no interior da própria célula. Desintegrada, o número de seus átomos permanece o mesmo, mas suas combinações se destroem. Ora, da ordem dessas combinações depende a organização profunda da vida celular em "compartimentos", cada um com um papel determinado. Parece reinar ali uma disciplina férrea, que controla a integração das diferentes funções e impede que se instale o caos. Através de que misterioso controle se mantém a harmonia? Não temos, para tudo, uma resposta que vá além do sonho: nós também lhe cederemos, agora, a vez.


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Fonte:
Planeta, nº 19. Editora Três. São Paulo, março de 1974, págs. 8-15.

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