terça-feira, 5 de julho de 2016

Eurico, o poeta, cavaleiro, amante

Eurico, o poeta, cavaleiro, amante
Por: Samira Youssef Campedelli
Eurico, o presbítero — mas também poeta, cavaleiro negro, amante obstinado, homem rude e, simultaneamente sensível, afeito às intempéries, dominado por devoradora paixão, celibatário por imposição sacerdotal, porém palpitante às recordações da amada — é o personagem paradoxal desta obra. E esta obra — "a priori" sem definição pelo próprio Autor — ê também um romance histórico, apesar de ser um romance de amor, apesar de ser um romance de cavalaria, podendo ser classificada, por outro lado, como um vasto manifesto (contra a estrutura da Igreja Católica, contra a forma como a Península Ibérica foi assolada, etc.).
Para a personagem central convergem pelo menos duas das grandes pautas do Romantismo: o inconformismo e o mito do amor eterno. Assim, emergem em Eurico as contradições do modo de ser romântico: de um lado, o homem que se refugia no sacerdócio para mitigar o grande amor perdido, mas que se tortura o tempo todo por este mesmo amor; de outro lado, o guerreiro inveterado, que, impulsivamente, se refugia na camuflagem do cavaleiro negro para defender a raça, a terra, a pátria. E, na guerra, o desconhecido cavaleiro negro ou mata, ou morre. Daí, a interessante colocação deste personagem ambivalente (multivalente?), que prega princípios cristãos, enquanto presbítero de Carteia, e que pratica princípios bárbaros, enquanto elemento do confuso exército visigótico.
Presbítero?
Presbítero como evasão, como forma de se salvaguardar de um mundo incompatível com seus sentimentos amorosos.
Guerreiro, sim, como autoafirmação: como um protesto que precisasse ser demonstrado em ações.
E, de fato, ações não faltam neste romance bastante enquadrado na literatura que se convencionou chamar de "medievalista".
Esta estaria da História revela a preocupação constante do narrador em dar informações correias, em se fazer explícito o tempo todo, citando fontes, fazendo ele mesmo inúmeras notas de rodapé, denotando, sem dúvida, o cabal conhecimento da época enfocada.
O romance que ora se apresenta, entretanto, tão rico de fatos, quase que sufoca a razão do título. O ingresso de Eurico no presbitério se deveu a uma desilusão amorosa e esta nos vai sendo revelada a conta-gotas: ou seja, Hermengarda, a responsável pelo amor frustrado, tem pouca (pouquíssima) participação nas ações. No entanto, a doce figura da jovenzinha indefesa, pura e ingênua, subjugada pelo pai dominador, é o pivô da estaria: não fora ela, Eurico não seria presbítero, nem cavaleiro negro, nem poeta.
Hermengarda, por quem Eurico morre, paira na obra como a jorca-motriz, sub-repticiamente.
Enlouquecida, no fim, após saber irreversível o processo do sacerdócio de Eurico, Hermengarda é tipicamente a personagem feminina do Romantismo: submissa, pura, pálida e bela. Afinal, os cânticos do poeta Eurico não são inspirados por ela?
No afã, pois, de construir um romance onde não faltassem dados verossímeis, onde a informação histórica estivesse ao pé da letra, onde tudo pudesse ser confirmado, caso o leitor desejasse, o narrador peca pelo excesso desta parte. A estaria de amor, tão enquadrada dentro da estética romântica, ficou esvaída.
O que se sobressai, portanto, no romance?
Sobressai-se a luta entre godos e árabes, o domínio da península, as tramas todas de traição e de fidelidade à causa gótica.
Neste aspecto, sem dúvida, o romance é impecável.


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Fonte:
Eurico, o Presbítero, por: Alexandre Herculano. Editora Ática, 8ª Edição. São Paulo, 1991, págs. 5-6.

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