sábado, 16 de julho de 2016

O Modernismo Brasileiro

Época do Modernismo
(1922-1945)
SUMÁRIO: Introdução. A Semana de Arte Moderna e os movimentos literários do decênio de 1920. Perspectiva da literatura modernista: poesia, romance e conto.

INTRODUÇÃO
A revolução realizada pela geração realista, de 1868, alterou-nos profundamente a conjuntura política e social (basta considerar a Abolição e a República), dando--nos à vida e ao espírito uma feição muito diferente da que caracterizara a época do Romantismo. E a nova ordem política, social e espiritual imposta pelos realistas triunfou, definitivamente, como vimos, nos acontecimentos de 1888, 1889 e 1891. Ao nos aproximarmos, entretanto, do século XX, cada dia se acentuou mais a discordância entre essa ordem (traduzida em instituições políticas, jurídicas e sociais) e o espírito de uma geração nova, a geração da época do Simbolismo, intransigentemente antirrealista, antimaterialista, antipositivista. Mas se a última década do século XIX e as duas primeiras deste século se caracterizaram por manifestações várias, e em vários setores de nossa vida, de um "mal-estar e de uma insatisfação crescentes" ante a inadequação do conteúdo da vida nacional ao seu continente político, é preciso ver que a época do Simbolismo não chegou a realizar a revolução que idealizou, ou melhor, não chegou a realizar uma revolução tão profunda quanto exigia a vida brasileira. Tal revolução, profunda e prementemente exigida para a solução dos novos problemas político-sociais, impostos pela nossa evolução cultural, realizou-a, finalmente, a geração da época do Modernismo.
Se bem virmos, os anos que decorrem dê 1910 a 1920, enquadram, "a latere" do Simbolismo (espiritualista, aristocrático, esteticista, paradoxalmente afrancesado e nacionalista), a gênese do Modernismo: então, acontecimentos de vária ordem, como o movimento geral das ideias na Europa e a 1ª Grande Guerra (com suas desilusões políticas, sociais e morais) vão-nos impondo um espírito, uma mentalidade e um sentido ativo, completamente novos perante os problemas gerais da cultura e os problemas imediatos da vida brasileira. Uma nova geração, integrada não apenas por jovens, aqui e ali a se insinuarem na vida mental do País, mas também por homens, já então da velha guarda, mas abertos ao progresso das ideias, vai-se definindo e acaba por se impor, revolucionariamente, depois de 1920.
A década 1920-1930 é a mais dramática de nossa história contemporânea. Os movimentos armados de 1922, 1924 e 1930 acabam por destruir a conjuntura política, administrativa e social da Primeira República e por negar totalmente a Constituição de 1891. Os novos figurinos políticos europeus e as necessidades nacionais, impostos à consciência de jovens "líderes" políticos, definem, ao lado do partido revolucionário democrático, anti-oligárquico (a Aliança Liberal), os partidos de Esquerda, com seu "Cavaleiro da Esperança", e de Direita, com o seu "Esperado". No setor econômico, a crise do café (1929) é o ponto de chegada da diluição da política econômica e financeira da Primeira República. No setor espiritual e artístico, a negação, por vezes violenta, irreverente e anárquica, do ideário e da estética até então dominante; e, a par da aceitação das aliciantes sugestões do Modernismo europeu, temos ainda a busca ansiosa e confiante da realidade nacional, com vistas na autenticidade e na originalidade do espírito e da arte brasileira.
A década de 20 é, assim, a fase explosiva do que se pode denominar a nossa revolução moderna. De 1930 a 1940 (para nos fixarmos em limites extremos), entra a revolução no processo de equilíbrio; de um lado definem-se várias atitudes políticas: o Constitucionalismo paulista, afirmado na revolução de 1932, com seu efêmero triunfo, quando é verdade que só por poucos anos logra reconduzir o País à legalidade parlamentar e constitucional; o Integralismo, cujas raízes nacionais estão no movimento Verde-amarelo (1924), chefiado por Plínio Salgado e fortemente sugestionado pelos figurinos italiano e alemão, lança seu manifesto em 1933; o Comunismo, em formação desde a revolução russa, chefiado por Luís Carlos Prestes, tem, para o desenvolvimento de sua força política e revolucionária, um ambiente social propício, pois que o triunfo da revolução de 1930 criara em todos sincero anseio de salvar da miséria e do abandono o proletariado e as populações rurais; seu assalto ao poder, em 1935, embora malogrado, define-lhe a força revolucionária. Finalmente, nesse conjunto de forças políticas, morais e espirituais, vivamente expressas pela produção literária da época, sobretudo pelo romance e pelo teatro, as circunstâncias dão prevalência aos homens que mais diretamente atuaram na Revolução de 1930. Postos no poder desde 10 de outubro, aproveitando habilmente sugestões de todas as tendências, entre si em conflitos irreconciliáveis, e talvez mais próximos das aspirações e das necessidades gerais — acabam por impor, em 1937, apesar da oposição dos constitucionalistas de 32, dos integralistas e dos comunistas, seu ideário político, consubstanciado no Estado Novo, com sua respectiva Carta Constitucional, dominante até 1945, quando se reimplanta o regime da legalidade democrática.
No que respeita à cultura espiritual e particularmente à literatura, observa-se semelhante processo de evolução de sua linha revolucionária: a partir da Semana de Arte Moderna, de 1922, franca e inquietamente se afirmam tendências novas: de um lado o Modernismo, de influência europeia, com sua insatisfação espiritual e estética traduzida em muitos "ismos"; de outro lado, o nacionalismo, xenófobo, intransigente diante das influências estrangeiras inevitáveis com a importação da doutrina modernista; um nacionalismo que busca, por um lado, os elementos culturais criados pela "penetração", pela "marcha para o Oeste" (Movimento Verde-amarelo, 1924, de que nasceram os movimentos Integralista e da Bandeira); por outro lado, um nacionalismo que busca a essência da realidade "brasileira" na cultura provinciana da faixa litoreana, com suas tradições coloniais (Movimento do Pau-brasil, 1924) ; finalmente, um nacionalismo mais exigente de pureza nativa, anti-europeu, anti-lusista e anticolonialista, que busca seus temas no Brasil pré-cabralino, no Brasil da "civilização" indígena (Movimento Antropofágico, 1928).
Passada a fase das buscas inquietas de uma direção espiritual e literária moderna, na década de 30 o Modernismo à europeia, embora repelido pela xenofobia, incorpora à nossa arte e à nossa literatura suas conquistas positivas; as soluções nacionalistas se confundem numa ideia predominante: realizar uma cultura, uma arte e uma literatura que expressem a realidade brasileira. São assim da década de 30 as principais realizações de nossa geração convencionalmente denominada modernista.
Pouco depois de 1940, essa geração, que incontestavelmente levou a efeito uma profunda revolução política, mental e artística, aproxima-se do termo de sua atuação direta e exclusiva nos acontecimentos; chega à fase recordatória, à consciência de uma obra acabada ou já definida, e assiste, em geral complacente e cordialmente, à chegada de uma nova geração (1945), que vem diligenciando por negar exageros do passado imediato, definir-lhe os autênticos valores e representar seu papel na evolução da cultura brasileira.

A SEMANA DE ARTE MODERNA E OS MOVIMENTOS LITERÁRIOS DO DECÊNIO DE 1920
De alguns anos para cá generalizou-se a ideia de que o ponto de partida de nossa literatura contemporânea é a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922. Mas se a ideia se generalizou, nem por isso tem sido unanimemente aceita: para uns, a célebre eclosão modernista, nacionalista e o seu tanto anárquica, não passou de movimento local, de curto raio de influência; para outros, a Semana Modernista,, entre o muito que agitou de ideias e o que logrou realizar, deixou saldo negativo superior ao positivo ; e esse positivo é inferior ao que no romance, no conto, na poesia, no teatro, no ensaísmo crítico e na historiografia realizou-se, nestes trinta anos, fora do grupo paulista de 22.
É certo que as quizílias, inevitáveis entre grupos literários em conflitos de espírito regional ou de idade, têm colocado mal o problema do significado histórico da Semana de Arte Moderna. De passagem diga-se que os mais diretos colaboradores da explosão modernista têm sido os mais serenos apreciadores das proporções e do alcance do movimento. A rigor a Semana de Arte Moderna não foi, nem poderia ser, o fator de toda a evolução e de todas as tendências de nossa literatura contemporânea; mas foi, inegavelmente, dentre as primeiras, a mais expressiva e impressiva manifestação pública de nosso Modernismo; ou, se assim não quiserem, porque a palavra Modernismo envolve uma definida atitude estética e moral, de nossa contemporaneidade literária e cultural. Basta ver, em abono desta tese, a obra posteriormente realizada pelos elementos da ruidosa Semana; e ainda o poder sugestivo da ideia central do movimento, ideia que em alguns anos teve o poder de galvanizar, noutros centros de cultura, grandes e pequenos, aspirações semelhantes de revolução cultural e espiritual; e ainda, e principalmente, em abono do significado histórico da célebre Semana, considere-se que o mais importante de seus anseios e de suas realizações, vistos hoje em perspectiva serena, constituíram uma legítima revolução — legítima pela oportunidade e pelos impulsos, muito mais profundos e tradicionais do que possam parecer à primeira vista.
Superada, há muito, a fase caótica dessa inquieta revolução (1922-1928), relegada a plano inferior seu anarquismo anedótico, definidas as atitudes e as participações pessoais, pode-se chegar a esta síntese de seu sentido evolutivo:
De 1912 a 1915 (neste passo me apoio no excelente estudo de Mário da Silva Brito, citado na Bibliografia), Oswald de Andrade, em São Paulo, procura criar, através da imprensa e com sua ação pessoal, a consciência da renovação modernista europeia; em 1913, Lasar Segall realiza em São Paulo a primeira exposição, de pintura expressionista, não logrando ainda influir na opinião pública; em 1914, o mesmo ocorre com a primeira exposição, também em São Paulo, de Anita Malfatti, influenciada pelo impressionismo alemão; em 1914, O Estado de São Paulo publica, no Brasil, b primeiro artigo sobre o Futurismo, do Prof. Ernesto Bertarelli, As Lições do Futurismo; em 1915, no Bio, Luís de Montalvor, português, e Ronald de Carvalho, idealizam a revista Orfeu, revista luso-brasileira, de espírito nitidamente modernista; em 1916, Alberto de Oliveira, na Academia Brasileira de Letras, afirma a consciência das novas tendências do espírito e da arte, inclusive do Futurismo; em dezembro de 1917, Anita Malfatti, recém-chegada dos Estados-Uni-dos, realiza sua segunda exposição, em São Paulo; agora já francamente modernista, Anita ó injusta e severamente criticada por Monteiro Lobato (Paranoia ou Mistificação?), que representa o conservadorismo; nessa altura só Oswald de Andrade e Mário de Andrade defendem e apoiam o espírito renovador da jovem pintora; ainda em 1917 vários poetas novos começam a impor-se: Mário de Andrade, Há Uma Gota de Sangue em Cada Poema; Manuel Bandeira, A Cinza das Horas; Menotti Del Picchia, Moisés, Jucá Mulato; Guilherme de Almeida, Nós; Murilo Araújo, Carrilhões; ainda em 1917, as primeiras manifestações das influências da revolução russa: greve operária em São Paulo; pronunciamentos de simpatia pela nova ideologia e início de sua propaganda; em 1918, no Rio, Andrade Murici, no ensaio crítico Alguns Poetas Novos, chama a atenção do público para a renovação que se operava na poesia brasileira; em 1920, em São Paulo, "descobre-se" o sentido renovador da obra que Brecheret iniciava; em fins de 1921 realiza-se na Livraria de Jacinto Silva, onde se reunia habitualmente um grupo de jovens escritores e artistas, (Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti) uma exposição de quadros de Di Cavalcanti. Nessa mostra de arte assentou--se a ideia da Semana de Arte Moderna.
Em fevereiro de 1922 realiza-se a célebre Semana. Tem de pronto o apoio moral, muito significativo, de duas expressivas figuras da aristocracia paulista: D. Olívia Guedes Penteado e Paulo Prado. Tem a colaboração direta de Graça Aranha, que com o prestígio de uma obra literária de valor, de membro da Academia Brasileira de Letras e de sua cultura europeia, vem do Rio emprestar aos moços um apoio também muito significativo. Tem, finalmente, a Semana, de Arte Moderna, a colaboração direta e entusiástica da gente nova, idealista e revolucionária: Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Cândido Mota Filho, Plínio Salgado, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Renato de Almeida, Manuel Bandeira, Rubens Borba de Morais, João Fernando de Almeida Prado, René Tholier (escritores); Vila-Lobos, Ernâni Braga e Guiomar Novais (musicistas); Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Brecheret (artistas plásticos).
Em 13 de fevereiro abre-se o Teatro Municipal para a esperada Semana: três recitais, 13 — 15 — 17, com conferências, concerto, declamação, coreografia e exposição de artes plásticas e de arquitetura. No que respeita ao público, a Semana tem, como se sabe, muito mais a virtude de escandalizar e irritar, que de sugerir ideias e consciencializar a necessidade de uma revolução, nos quadros da cultura espiritual brasileira, condizente com o sentido novo da vida e da cultura na Europa. No que respeita a escritores, críticos e artistas novos, muitos ainda em potência, a Semana tem a inegável virtude de os encorajar para uma revolução renovadora da cultura brasileira.
Os germes revolucionários da Semana Modernista de São Paulo, dado o clima moral e espiritual dominante, sugerem, nos anos seguintes, até 1928, quando começam a perder a vitalidade, movimentos semelhantes, ainda em São Paulo, e noutros Estados, cada um, evidentemente, com seus determinantes próprios e com seu peculiar significado histórico.
Como em todos os movimentos culturais, e particularmente estéticos, neste, a -"ânsia de criação" ó bem superior à capacidade de realização: os primeiros anos do decênio de 20 são mesmo caracterizados pelo desequilíbrio entre o desejo de inovar e a capacidade de renovar. E como em todas as revoluções há nesta, de pronto, a obsessão de negar o passado imediato, e em certos aspectos todo o nosso passado literário e cultural; mas também, como em todas as revoluções, não é possível negar e anular o que estava integrado, o que era substancial, no patrimônio moral, espiritual e histórico. Por isso é fácil ver, num balanço, entre o que se pretende na década revolucionária de 20 e o que se realiza, então e nas décadas seguintes, — que o saldo expressa mais uma evolução, é verdade que acelerada em seu processo, que propriamente uma revolução, anti-histórica, em divórcio com o passado.
Até o ponto em que nos é possível ver os elementos de um fato histórico, sempre infinitamente complexo, podemos apontar, nos movimentos modernistas de 1922 a 1928, os seguintes ingredientes morais, espirituais e estéticos: anarquismo, modernismo, nacionalismo e regionalismo.
ANARQUISMO — Vem da eclosão do Futurismo europeu, em 1909, a convicção de que o anarquismo, como negação absoluta e intransigente do passado, como destruição do "statu quo", como afirmação corajosa de novidades, como escândalo irritante e revoltante — é a mola mestra na propulsão e projeção de todas as revoluções. Em nenhuma revolução cultural essa convicção se arraigou tanto nos espíritos como na revolução futurista de 1909. E esse anarquismo dominou os espíritos, e marcou expressivamente a atitude dos revolucionários da Semana de Arte Moderna, de 1922. Pondo-se de lado o aspecto anedótico desse anarquismo, já bastante explorado e suficientemente confessado pelos autores, o que importa é encontrar-lhe a justificativa ética e cultural e — por que não dizer? — suas eficazes consequências.
No anarquismo dos moços de 22 estão implícitos, e por vezes explícitos, juízos de valor sobre a realidade cultural brasileira presente e passada: é geral a ideia de que nossa literatura estava eivada de influências estrangeiras, sobretudo francesas; resultava da obsessão do acabamento estilístico, e, com raras exceções, estava alheia aos sentidos mais profundos da vida nacional; ideia geral era também que nossa estrutura social e política, resultava, outro tanto, de imitação, sendo, por isso, contrária às mais vivas e prementes necessidades nacionais; e o mesmo poder-se-ia dizer de nossos conceitos de valor estético e de valor humano, sem atualidade e sem raízes profundas na cultura nacional. Contra esse "status quo", e contra um indiferentismo cômodo, era necessário lutar; não, em princípio, com as armas ideológicas de uma revolução — porque as ideias não venceriam a massa inerte do indiferentismo cômodo e do comodismo indiferente, e naturalmente reacionário — mas lutar com as armas do anarquismo chocante, revoltante.
Dos componentes da geração de 22 nem todos, entretanto, apoiam a atitude anárquica (expressa em obras e em atos de histrionismo, de palhaçada, de cinismo, de "blague") em convicções estéticas, espirituais e morais capazes de realizações autênticas (e esses trinta e sete anos já evidenciaram de sobejo os legítimos e os falsos valores de 22) — mas todos são unânimes em sentir que a explosão revolucionária só se daria com o estopim do anarquismo. E o anarquismo dos moços de 22 pouco a pouco domina o espírito da gente nova de outros Estados e vai assim definindo, ostensivamente, uma revolução que "realizaria" e "revelaria" o Brasil. Até mesmo sobre os reacionários esse alegre e pitoresco anarquismo exerce virtuosa ação: chama-lhes pouco a pouco o espírito à realidade presente e à participação na discussão dos problemas atuais da nacionalidade.
MODERNISMO — Não é este o lugar de recordar as origens europeias da revolução modernista, já nos dois últimos decênios do século passado, nos quadros do Simbolismo, quando se evidenciou franca oposição ao espírito realista, positivista e materialista. O que importa é lembrar que o Modernismo., definido ruidosamente em 1909, em torno de Marinetti, acabou por penetrar em todas as culturas americanas e se acomodar às suas realidades. No Brasil, entre 1910-1920, como disse, espíritos isolados, uns, recém-vindos do estrangeiro, como Anita Malfatti e Lasar Segall, outros daqui, ávidos de novidades espirituais e estéticas (como Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho) — vão corajosamente afirmando a consciência do movimento geral das ideias na Europa. Em 1922, temos a aludida Semana de Arte Moderna., tradução brasileira, até certo ponto, do movimento futurista europeu, de 1909.
Reduzindo-se o Modernismo à sua essência espiritual e ética, parece que podemos chegar a estes elementos: a) ânsia de consciência da realidade presente, que é existência, que é vida que se vive dramaticamente; mas ânsia de consciência dessa realidade presente, na totalidade de seus elementos essenciais, sobretudo no que diz respeito às necessidades, aos anseios mais profundos e dramáticos da vida, às intuições adivinhadoras; b) prejuízos contra o passadismo reacionário, que, ao exagero, deforma a compreensão da realidade presente, determina uma atitude de cômodo formalismo, de cômoda aplicação de velhas e consagradas fórmulas à solução de todos os problemas da vida, e mais do que isto, arrasta com lentidão o espírito na penetração da realidade vivida, contrariando ou mesmo anulando o desejo de conhecer e solucionar os problemas da existência.
Nos países novos da América, e é bem o caso do Brasil, países que há um século constroem sua nacionalidade, e dramaticamente diligenciam por tomar e expressar uma consciência nacional, Modernismo e nacionalismo se confundem; Modernismo e busca de raízes históricas e culturais que explicassem a vida presente e norteassem a futura, se conciliam naturalmente.
Deste modo, relegados a plano secundário os exageros do Modernismo iconoclasta, o Modernismo do asfalto, da máquina, das chaminés das fábricas, do jazz-band, do cimento-armado, exageros naturais na fase anárquica do movimento, convenhamos em que é o Modernismo que acorda na intelectualidade brasileira a consciência viva, portanto mais nítida e profunda, da realidade nacional, com seus prementes problemas, inexistentes para os espíritos do século XIX e ainda para os tradicionalistas dos primeiros decênios deste século. E é assim que, pelo Modernismo, uma consciência mais viva e dramática, e porque não dizer revolucionária, de nós mesmos, acaba por invadir a literatura de ficção e de pensamento.
NACIONALISMO — É evidente, em nossa literatura contemporânea, como ademais em toda nossa arte contemporânea, a conciliação entre Modernismo e nacionalismo. Mas o nacionalismo não é, em nosso caso, uma atitude nova: domina-nos o espírito, a arte, a política, desde o Romantismo. Chega a ser uma constante na evolução histórica dos povos americanos, e para nós uma constante tão evidente que já se tornou lugar-comum referi-la. Compreendamos, entretanto, que o espírito nacionalista e até mesmo a obsessão nacionalista têm evoluído e se tem alterado bastante do Romantismo a nossos dias: no Romantismo o sentimento nacionalista, apesar de legítimo e oportuno como atitude política, apesar de sincero em suas raízes afetivas, conduziu-nos a errados prejuízos antilusistas e a uma valorização do índio e da paisagem com muitos exageros sentimentais. Ficou-lhe de positivo o ter iniciado o processo de consciencialização da realidade nacional. No Realismo, o sentimento antilusista desapareceu, porque típico da época das lutas pela independência política e cultural, e, contrariamente, o que se sentiu e o que se procurou definir foi o patrimônio comum de cultura das duas civilizações lusíadas. Os realistas puseram sentimento nacionalista 110 empenho de uma revolução social e política em favor do progresso material do Brasil e em favor de sua elevação à categoria dos países civilizados. E mais: no Realismo, a partir de 1868, mais amadurecida a realidade cultural brasileira, avincados alguns de seus traços, já nos foi possível, com os recursos de novas ciências humanas, definição mais compreensiva da realidade brasileira e mais clara consciência nacional. É fácil verificar este progresso nos móveis morais de nossas reformas políticas e sociais do fim do século (Abolição e República), bem como no conteúdo da produção intelectual e artística da mesma época.
Mas o Realismo, em que pese ao que proporcionou de fatos à consciência da realidade nacional, ainda enfermou, como o Romantismo, do "pecado original", isto é, da sua marca estrangeira: é o que se sente, na época do Simbolismo e com intransigência se denuncia e se combate a partir da Semana de Arte Moderna. É o que leva os moços de 22 a gritarem: "Nacionalizar a, nação; abrasileirar o Brasil". Nacionalizar a nação na sua ordem política, social e moral; abrasileirar o Brasilna sua expressão artística. E outra coisa não se procura fazer, a partir dos anos de 1920 e 1930, não apenas no campo da cultura espiritual e artística, mas também em política e em reformas sociais. E ainda hoje é convicção de muitos brasileiros, que o regime político que vigorou de 1930 a 1945, escoimado de aderências ocasionais de pormenores de figurinos políticos estrangeiros, procurou ser autêntica expressão das necessidades e das aspirações políticas nacionais.
Na época do Modernismo, nacionalismo veio a ser busca da realidade nacional, mas realidade nacional como expressão brasileira do patrimônio cultural lusíada evoluindo num meio étnico e ecológico "sui-generis"; veio a ser reconhecimento e valorização das peculiaridades dos centros regionais, como veremos adiante; consequentemente, conciliação dos dois elementos fundamentais de nossa história cultural: "região" e "tradição"; busca de mitos capazes de operar a unidade moral da nacionalidade: o bandeirismo e a marcha para o Oeste; a cultura luso-brasileira; o brasileiro, homem cordial; Brasil, país do futuro; o verde-amarelismo; o pau-brasil; o Brasil antropofágico.
Hoje estamos convencidos de que o "brasileirismo" dos anos de 20 a 30 praticou exageros na valorização de temas locais de insignificante expressão nacional, humana e estética; praticou exageros inoculados de anarquismo, que conduziram a experiências estéticas, já na década de 30 reconhecidas como extravagâncias. Descontados esses exageros, ainda muita significação resta ao nosso nacionalismo moderno: a ele ficamos a dever um espírito, uma literatura, uma arte plástica e uma música cujo conteúdo e a expressão se mostram como conquistas positivas, mesmo para um exigente critério de valor.
REGIONALISMO — O Brasil "país de passado pequeno e de território desmesuradamente grande", como acertadamente disse Fidelino de Figueiredo, foi ocupado e colonizado por processo que lhe garantiu, em meio a todas as vicissitudes históricas, milagrosa unidade político-administrativa, mas processo que também lhe deu um mapa cultural de caráter acentuadamente ganglionar : desde o século XVI se definem e se acentuam, em caracteres diferenciadores, nossos centros regionais de cultura: o Amazonas, o Norte, o Nordeste açucareiro, a Bahia, Minas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul. Todos os fatores de ordem material (geográficos, étnicos, econômicos) contribuíram para a formação de tais gânglios; indefiníveis forças raciais e morais, a língua e uma constante política unificadora conseguiram, em quatro séculos, dar à nação, em que pese às suas acentuadas diferenciações regionais, uma inegável estrutura orgânica.
Tão peculiar configuração geo-cultural explica suficientemente a razão por que no Brasil, nacionalismo se traduz em regionalismo. Assim o foi no Romantismo, principalmente, com os romances de Alencar, de Bernardo Guimarães, de Franklin Távora; no Realismo, com o romance carioca de Machado de Assis; com o romance do Norte, de Aluísio Azevedo, Domingos Olímpio, Inglês de Sousa, Assim o foi no Simbolismo, com os chamados romancistas regionalistas. E finalmente assim tem sido desde a eclosão modernista de 22. Mas aqui há uma diferença a estabelecer: nunca, como modernamente, o regionalismo tem sido tão valorizado. É que a par da consciência que se firma, com o Modernismo, de que só as legítimas peculiaridades de nossa realidade paisagística e cultural lograriam produzir uma literatura brasileira original, — chegamos à conclusão (acertada ou não; isto agora não importa) de que esse autêntico nacional estava nos meios regionais, sobretudo naqueles meios em que se vinha formando, há séculos, um complexo cultural genuinamente luso--brasileiro.
O movimento modernista, na sua primeira fase, isto é, de 1922 a 1928, insuflou, aqui e ali, movimentos de cultura regional, e destes saiu o mais original e o mais vivo de nossa literatura desta época.

PERSPECTIVA DA LITERATURA MODERNISTA
Desde a década de 30 que se vem tentando uma visão histórica da literatura realizada pela geração do Modernismo. Hoje, quando os principais escritores, que direta ou indiretamente participaram da revolução modernista, já realizaram uma obra definida, e quando alguns trabalhos parcelares já estão publicados, (ver Bibliografia) é possível uma visão perspectiva dos 20 ou 25 anos da época do Modernismo, e um julgamento de seus escritores.     

POESIA
Na medida em que é possível reduzir a individualidade literária de nossos poetas modernos e atitudes e tendências gerais, não é difícil ver, nesta época, três direções poéticas: aventura revolucionária, nacionalismo e aspiração dos valores universais da, arte.

Aventura revolucionária
Alguns dos jovens revolucionários da Semana Modernista de 22, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Ribeiro Couto, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira, eram, quando da eclosão do movimento, poetas iniciados confiadamente na estética simbolista, ou mais precisamente, na poética aliciante de Olavo Bilac, de Alberto de Oliveira, de Guerra Junqueiro, de António Nobre, de Eugênio de Castro e de Júlio Dantas. Contudo, a revolução modernista vem a ser para todos um credo estético e uma atitude espiritual a aceitar e a impor apaixonadamente. E assim o fazem, logrando influência sobre gerações mais novas, até pelo menos 1945, quando, ao magistério dos mestres da Semana Modernista, reagem intransigentemente os chamados Novíssimos: (Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Ledo Ivo, etc.). O que se deseja, a partir de 22, dentro desta tendência revolucionária, é libertar a inspiração poética de todo e qualquer constrangimento, de ordem linguística, poemática, e até mesmo de ordem estética e moral; alcançar a máxima fidelidade da forma à emoção, alcançar um simultaneísmo entre o estado lírico e a expressão; achar formas expressivas realmente novas, capazes de dar novo rumo à poesia, à poética e à língua; finalmente, encontrar o homem moderno, nas relações do mais íntimo de sua emoção e de seu espírito com a realidade da vida contemporânea; (Mário de Andrade, Pauliceia Desvairada, 1922; Oswald de Andrade, Primeiro Caderno do Aluno de Poesias Oswald de Andrade, 1927; Manuel Bandeira, Poesias, 1929 e Libertinagem, 1930). Nesta tendência nada de novo em face da estética do Modernismo europeu. O novo, o diferente, está na solução pessoal que dá, cada um, à moderna estética e aos temas que a realidade da vida brasileira lhes sugeria. Se de um lado, nesta tendência, são inevitáveis extravagâncias e mesmo mistificações, é inegável que a aventura e as experiências poéticas deste grupo logram alterar profundamente, na forma e no conteúdo, a poesia brasileira. Incontestável mérito, que já se vai apurando cuidadosamente.
Mas não é só: esta tendência chega a produzir autênticos valores. Deixando de lado poetas como Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Ribeiro Couto, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima, que se definiram melhor noutras tendências, e Mário de Andrade, um dos mentores do movimento e sem dúvida dos melhores valores da cultura moderna, com o tempo atraído pela investigação folclórica e pela crítica de arte, — definem-se como altos valores dentro desta tendência, Manuel Bandeira (Poesias Completas, 1948), e Carlos Drummond de Andrade (Poesia Até Agora, 1947), poetas cuja poesia nos revela achados expressivos de autêntico valor estético. O mundo destes poetas é o cotidiano, aparentemente apoético, e ainda as idiossincrasias perante a vida moderna, reminiscências da infância, a realidade do subconsciente, e a fugacidade da expressão lírica das coisas.

Nacionalismo
A obsessão nacionalista e o culto do regionalismo levam muitos poetas, praticamente todos que direta ou indiretamente aderiram ao ideário da Semana Modernista, à dignificação literária do folclore nacional e à definição de nossos mitos históricos: Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, Ascenso Ferreira. Raul Bopp, Augusto Meyer, etc.
O que se deseja, dentro desta tendência, sobretudo a partir de 1924, ano em que em São Paulo Oswald de Andrade lança o Manifesto do Pau-brasil e Menotti Del Picchia, o Manifesto Verde-amarelo, é encontrar um ternário poético (ou, mais ambiciosamente, um ternário artístico) exclusivamente brasileiro; ternário (era a suposição unânime, contra a opinião de Graça Aranha) que só se encontraria no processo da formação étnica e histórica do Brasil e nas suas tradições populares. E mais: deseja-se encontrar uma expressão poética que pela língua e pela contextura poemática, de caráter popular e tradicional, reagisse contra o esteticismo aristocrático dos parnasianos, contra o esoterismo dos simbolistas e dos modernistas influenciados pelas modas vindas da Europa, e assim pudesse ter, a moderna poesia brasileira, ressonância no grande público, na alma popular, pois que esse grande público, esse povo, é que constituía, na opinião do grupo, a força moral do País, não uma minoria aristocrática, europeizada e fora da realidade profunda da vida nacional.
Das tendências de nossa moderna poesia é, durante muitos anos, a de maior força sugestiva sobre os poetas e sobre o público. Verdade é que os entusiasmos por esta tendência passaram, e muitos dos seus principais cultores, como Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima, acabam por realizar uma poesia inspirada nos eternos temas líricos. Fiéis quase que exclusivamente a esta tendência foram Raul Bopp, Ascenso Ferreira e Augusto Meyer.
Passados, depois de 1940, os entusiasmos pelo pitoresco nacionalista e folclórico, que tem seu paralelo na música, nas artes plásticas e na arquitetura, não podemos deixar de reconhecer, a par de alguns de seus defeitos, como seja a valorização de temas locais ou particulares de limitado significado humano e estético, alguns de seus méritos: acordou a consciência da unidade histórica e cultural da pátria nova; avivou na consciência nacional muitos mitos históricos e culturais (o indianismo, a tradição lusíada, o caldeamento étnico, o bandeirismo, a luta do homem com as forças telúricas, o caboclismo, a cultura afro-brasileira, etc.) ; e pôs em evidência valores estéticos da "terra e gente do Brasil". É o que se pode ver em Meu (1925) e Raça (1925), de Guilherme de Almeida; Martim Gererê (1928), de Cassiano Ricardo; em República dos Estados Unidos do Brasil (1928), de Menotti Del Picchia; em Noroeste e Outros Poemas do Brasil (1933), de Ribeiro Couto; em Cobra Norato (1931), de Raul Bopp; Clã de Jabuti, (1927) e Remate de Males (1930), de Mário de Andrade.

Aspiração dos valores universais da arte
Em 1928, quando chegava a seu fim o período de mais aguda agitação modernista, levantam-se no Rio as vozes da reação contra duas das principais tendências do ideário estético e espiritual da Semana de Arte Moderna: Augusto Frederico Schmidt, com O Canto do Brasileiro... (1928) afirma decididamente: "Não quero mais o Brasil, não quero mais geografia, nem pitoresco"; e, circunstancialmente em torno da revista Festa, um grupo, que se declara projeção do Simbolismo, claramente defende uma orientação espiritualista; seu intérprete é Tasso da Silveira (Definição do Modernismo Brasileiro, 1931).
Contra a poesia inspirada no progresso técnico do mundo moderno, no "prosaico" cotidiano, e contra a poesia "verde-amarelista", do "pau-brasil" ou "antropofágica", suscetíveis de perder de pronto o significado, pelo que podiam exagerar de inspiração no circunstancial, o que deseja esta reação é uma poesia também moderna, mas moderna como voz lírica do homem de hoje; moderna, no conteúdo e na forma, mas como evolução natural de séculos de poesia. Uma poesia moderna que encontre nos dramas profundos do homem atual, mesmo na realidade brasileira, um perene humano, e portanto um perene artístico.
Exclusivamente dentro desta tendência as mais altas altitudes foram alcançadas por Augusto Frederico Schmidt (Rio, 1906. Canto do Brasileiro..., 1928; Canto do Liberto..., 1929; Navio Perdido, 1929; Pássaro Cego, 1930; Poesias Escolhidas, 1946; O Galo Branco, 1948) — poeta comovido pelas angústias do homem moderno, personagem da tragédia da vida, e inquieto, ansioso, dominado de presságios diante do mistério da realidade transcendente. Murilo Mendes (Minas, 1901. Poemas, 1930; A Poesia em Pânico, 1938; O Visionário, 1941; As Metamorfoses, 1944; Mundo Enigma, 1945; Poesia Liberdade, 1947) — complexo, denso, procura na realidade o essencial, o intemporal e o inespacial, e no transcendente católico e no espiritualismo amoroso encontra a solução de seu anseio do eterno. Cecília Meireles (Rio, 1901. Nunca Mais e Poema dos Poemas, 1923; Viagem, 1939; Vaga Música, 1942; Mar Absoluto, 1945; Retraio Natural, 1949) — sem favor a melhor de nossas modernas poetisas, quer pelos recursos expressivos, em constante busca da perfeição, quer sobretudo pela emoção impressionantemente comunicativa. O amor e a natureza são os acentos mais -vivos de sua poesia.
Sem se filiarem ao grupo espiritualista, alguns dos melhores poetas da Semana Modernista, como Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo (O Sangue das Horas, 1943; Um Dia Depois do Outro, 1947) e Ribeiro Couto (Cancioneiro do Ausente, 1943), passada a fase dos manifestos modernistas e nacionalistas (1922-1928) pouco a pouco se libertam do circunstancial efêmero, e buscam uma poesia mais fiel às suas individualidades líricas e de mais ampla e duradoura ressonância. Guilherme de Almeida (Poesia Vária, 1947) veio a ser entre estes, e dentro de nossa literatura contemporânea, uma das mais completas organizações líricas, sobretudo como poeta lírico-amoroso e dos grandes momentos de vibração da alma nacional.

ROMANCE E CONTO
Foram os gêneros que mais ampla e profundamente penetraram na realidade nacional. Já por volta de 1915 Monteiro Lobato, espírito moderno, mais tarde irreconciliável com os modernistas de 22, com experiência pessoal da miséria do homem rural paulista, impõe, com chocante sinceridade, uma concepção da terra e do homem a ela vinculado (Urupês, 1918) muito diferente da que nos oferecera o idealismo e o esteticismo dos escritores sertanistas do século XIX e ainda do começo do século XX. O Jeca Tatu, com sua esperteza de rato, a viver na miséria de sua "tapera", resistente a toda sorte de progresso — chama-nos para uma trágica realidade rural, realidade cada dia mais viva em nosso espírito, nestas últimas décadas, porque tema dominante da literatura, das artes plásticas e do ensaísmo sociológico.
Com a eclosão modernista de 22, decididamente caminha-se para um romance e um conto modernos; modernos pela técnica, pela expressão e pela temática : em São Paulo, os moços modernistas ensaiam os motivos da vida presente, no grande centro urbano paulista, "sui-generis" pelo espírito nobiliárquico de uma pequena aristocracia dominante, pela mistura racial e pelo acentuado dinamismo econômico então já evidente (Oswald de Andrade, Os Condenados, 1922; Memórias Sentimentais de João Miramar, 1924; Mário de Andrade, Primeiro Andar, (contos) 1926; Amar, Verbo Intransitivo, 1927; Menotti Del Picchia, A Mulher que Pecou, 1922; António de Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, 1927; Laranja da China, 1928; Plínio Salgado, O Estrangeiro, 1926).
No Nordeste renova-se completamente o tradicional romance regional (José Américo, A Bagaceira, 1928; Raquel de Queirós, O Quinze, 1930), e a renovação surpreende e choca pela originalidade, e ao mesmo tempo pela crueza dos temas sociais e humanos, levantados como franco apelo a uma necessária revolução social, política e econômica que salvasse da miséria e do abandono nosso homem rural. Mais do que o romance da vida urbana, teve este romance regionalista moderno, pela entusiástica aceitação que logrou, o condão de determinar ou iniciar fecunda corrente romancística, ainda hoje dominante.
Iniciada a necessária renovação, já no decênio de 30, o romance e o conto modernos afirmam-se na opinião pública nacional e mesmo estrangeira, por algumas características de inegável valor histórico e estético.
Não é possível, evidentemente, estabelecer fronteira rígida entre a prosa de ficção, das primeiras décadas do século (onde há valores inegáveis, como Coelho Neto, Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Lima Barreto, Afrânio Peixoto) e o que denominamos a moderna prosa de ficção: o clima revolucionário da década de 20, (com suas expressões espirituais, literárias e políticas) acaba incontestavelmente por determinar uma renovação formal e temática do romance e do conto; mas não se pode negar que alguns aspectos dessa renovação já vinham sendo ensaiados desde o começo do século, quando acordava a consciência de que não havíamos ainda realizado uma literatura propriamente brasileira (V. o inquérito promovido por João do Rio ou Paulo Barreto, O Momento Literário (1910). Não pensemos, portanto, numa fronteira rígida, o que, ademais, não existe em história literária; pensemos em pontos extremos e contrastes marcantes, e de pronto se nos definem nas características essenciais do romance e do conto modernos, que têm seu início entre 1920-1930.
Penetração cada dia mais corajosa e profunda na realidade brasileira, mas penetração em forma de simpatia, de comparticipação com a vida, e não em atitude crítica, como ocorreu no Realismo. O que se deseja, e se consegue, é viver e expressar natural e sinceramente essa realidade.
Penetrando na realidade cultural brasileira pomos em evidência duas áreas dessa realidade: a regional, com sua vida rural e provinciana, e a urbana; daí dois tipos dominantes de romance, nesta época: o romance regional e provinciano, com José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Érico Veríssimo (do Tempo e o Vento), para só falar dos principais; e o romance urbano, com sua fauna burguesa e operária: Otávio de Faria, Érico Veríssimo com a série de romances sobre Porto Alegre, José Geraldo Vieira, Marques Rebelo, Ciro dos Anjos, para falar também só dos principais.
Se o alcance da penetração não tem sido o mesmo em todos os escritores modernos, por motivos particulares a cada um, a verdade é que essa penetração tem ido muito mais a fundo que no romance passado; e de modo geral alcança já uma realidade que transcende a complexidade do mundo estritamente psicológico dos indivíduos — refiro-me à realidade cultural, è atmosfera existencial. Os realistas descobriram o meio ecológico, mas perseguiram um protagonista, que é, quase sempre, o tema de seus romances e contos. Agora começa-se a descobrir uma realidade fugidia, complexa e mais dramática que o homem em si — a cultura e sua evolução material e humana: tema predileto dos romancistas e do público brasileiro modernos. É o caso da obra de Lins do Rego, figura das mais significativas desta época (Paraíba, 1901 — Rio, 1957 — Ciclo da cana-de-açúcar: Menino de Engenho, 1932; Doidinho, 1933; Banguê, 1934; Moleque Ricardo, 1935; A Usina, 1936; Pureza,, 1937; Os Cangaceiros, 1952-53) ; de Jorge Amado (Bahia, 1912 — Ciclo do cacau: Pais do Carnaval, 1932; Cacau, 1933; Suor, 1934; Jubiabá, 1935; Mar Morto, 1936; Capitães da Areia, 1937; 'Terras do Sem Fim,, 1942; São Jorge dos Ilhéus, 1944 ; Seara, vermelha, 1946); de Érico Veríssimo (Rio Grande do Sul, 1905 — Clarissa, 1933; Caminhos Cruzados, 1935; Música ao Longe, 1935; Olhai os Lírios do Campo, 1938; O Resto é Silêncio, 1943; O Tempo e o Vento: I — O Continente, 1951; II — O Retrato, 1952). Lins do Rego com o romance das transformações econômicas e sociais do Nordeste canavieiro; Jorge Amado, com o romance da Bahia, sobretudo do negro e do mestiço, a sofrerem as transformações e a modernização da vida numa cidade enraizada em velhas tradições, e a sofrerem a ganância capitalista nas plantações de fumo e de cacau; Érico Veríssimo, com o romance do Rio Grande do Sul, que culmina com o Tempo e o Vento. É ainda o caso de obras de menor repercussão na grande massa de leitores, mas de idêntico valor: Otávio de Faria (Tragédia Burguesa), Oswald de Andrade (Marco Zero), Graciliano Ramos (o romance da vida provinciana de Alagoas), Raquel de Queirós (o romance da vida rural cearense). Este romance moderno é muito mais um romance existencial que individual; não tem um único protagonista: todas as personagens são protagonistas. As forças determinantes do drama coletivo (e há em todos mais drama coletivo que individual) são as forças profundas, dificilmente definíveis, da etnia em gênese, da história política, econômica e social em evolução, convulsa e independente da vontade dos indivíduos. Por vezes, nesse "Gestalt" dinâmico, algumas forças se sobrepõem, individualizando um drama humano regional, estigmatizando uma área cultural: a seca e o cangaço no Nordeste; a crise da velha economia canavieira, empírica, patriarcal e latifundiária, em Pernambuco e na Paraíba; a aventura do cacau no sul da Bahia; o traumatismo da vida moderna, nos grandes centros urbanos, Rio e São Paulo; as lutas de fronteiras e a vida estancieira no Rio Grande do Sul. Sente-se, constantemente, na moderna prosa de ficção, que o homem, ao invés de conduzir sua vida, de impor sua vontade, é a vítima das forças surdas do destino de sua história e de seu meio ecológico e social — e como vítima sofre toda a tragédia da vida. Deste modo o principal do romance e do conto modernos se desenvolve num clima de determinismos catastróficos, de que as personagens por vezes têm vaga consciência, e que os leva a um abandono conformado, profundamente depressivo para o leitor (é o caso de Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos), ou a uma luta desesperada e inglória, por vozes intensamente emocionante (é o caso de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo). O drama mais intenso da moderna prosa de ficção não é assim o que se trava pelos conflitos de caracteres (como no Romantismo) ou no mundo da consciência (como no Realismo) — o palco desse drama é bem mais vasto, e a sua mecânica, bem mais complexa. A penetração, profunda e em simpatia, no complexo da cultura brasileira, sobre enriquecer o conteúdo do " romance e do conto modernos, traz-lhes consequências muito importantes do ponto de vista literário e histórico: a) o achado de uma expressão linguística mais brasileira, mais fiel à oralidade natural; verdade é que algumas vezes essa expressão traz o exagero desse tom popular, vivo, pitoresco, mas de limitados recursos estéticos; e outras vezes o exagero do hermetismo regionalista; mas. não pensando nos exageros, reconhecemos que é essa expressão viva, natural, "ingênua", que dá, à moderna prosa de ficção, força comunicativa com um grande público, e sobretudo originalidade; originalidade e novidade que têm atraído muito leitores estrangeiros e chegou a influenciar alguns escritores portugueses; b) o achado de uma técnica nova, ou melhor, de processos romancísticos muito diversos dos que dominaram até o começo do século XX; mas compreendamos que esses novos processos não foram determinados por um preceituário de "escola", senão impostos naturalmente pela concepção nova da realidade: Érico Veríssimo, para pôr em evidência a unidade da complexa e longa história da civilização gaúcha (O Tempo e o Vento) teve de montar três planos romancísticos, em princípio surpreendentes pela novidade, mas muito naturais; Jorge Amado, José Lins do Rego, e o mesmo Érico Veríssimo, vendo mais o conjunto dos acontecimentos que os protagonistas, acompanham a duração vital desse conjunto que arrasta umas personagens, e deixa outras definitivamente para trás, chocando o leitor desprevenido, habituado ao romance oitocentista, onde um grupo dramático, intencionalmente reunido, marcha em linhas convergentes para o desenlace. Mais preocupados com a lógica da vida, que com a lógica do espírito imposta tradicionalmente aos dramas, os modernos ficcionistas deixam ter relevo o que natural e realmente tem, e daí um romance e um conto aparentemente desequilibrados em sua orgânica, sobretudo para quem pensa na técnica narrativa do século XIX, sobretudo do Realismo.
Finalmente, considere-se o interesse de nossos modernos romancistas e contistas em atuar vivamente nas consciências, no sentido de as levar à compreensão dos problemas da realidade brasileira. Tal intenção, que faz de todos os modernos, escritores de ação, contamina a moderna prosa de ficção de ideologias políticas e revolucionárias, como é o caso dos romances integralistas de Plínio Salgado (O Esperado, O Cavaleiro de Itararé), os romances de ação católica, de Otávio de Faria (Mundos Mortos, O Lodo das Ruas), dos romances de esquerda de Jorge Amado (Seara Vermelha...) e de tantos outros. Por vezes o espírito revolucionário e político emana espontaneamente do drama, como se verifica nos romances de Érico Veríssimo, de Lins do Rego, de Otávio de Faria e de alguns de Jorge Amado; outras vezes o proselitismo político se impõe e prejudica flagrantemente a obra, enquanto obra de arte.
A par de um romance dominante no gosto do público e no interesse do leitor estrangeiro; que é o romance que penetrou cada dia mais na realidade cultural brasileira, desenvolveu-se, na época do Modernismo, o romance e o conto de intenções exclusivamente psicológicas (Lúcio Cardoso, A Luz no Subsolo, 1936; Mãos Vazias, 1938; Anfiteatro, 1946) e de motivos humanos universais (José Geraldo Vieira, A Mulher que Fugiu de Sodoma, 1931; Território Humano, 1936; A Quadragésima Porta, 1944; A Túnica e os Dados, 1947). É inegável o valor dessa ficção introspectiva e universalista, pelo que nos conduz adentro de um homem traumatizado pelo que convencionamos chamar a civilização moderna; mas a verdade é que os arbítrios da moda ou do gosto ainda preferem o romance e o conto mais tipicamente brasileiros.


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Fonte:
História da Literatura Brasileira: Séculos XVI-XX, por:  Antônio Soares Amora. Editora Saraiva, 3ª Edição. São Paulo, 1960, págs. 179-208.

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