quinta-feira, 21 de julho de 2016

Nossa Televisão está com defeito (1967)

Nossa Televisão está com defeito
 Sentados no chão da sala, os dois meninos assistem ao filme de mocinho. São seis e meia da tarde. Eles chegaram há pouco da escola e ainda vestem uniforme. As lancheiras e os cadernos descansam sobre uma poltrona. Na cozinha, preparando o jantar, a mãe está atenta aos sons que vêm da sala: dentro de alguns minutos começa a primeira novela.
O pai também chegou, faz cinco minutos. Está tomando banho e se demorar muito é possível que jante sozinho, com o que já se acostumou, assim como se acostumou com outras coisas: as crianças param mais em casa, a mulher não faz muita questão de visitar as amigas, e ele precisa ter sempre alguma coisinha para fazer depois do jantar, pois em dia de semana o chamado horário nobre da televisão dedica metade do tempo às novelas e aos anúncios. Até dois anos atrás, antes de comprar o televisor, eles costumavam jantar juntos, sem pressa, conversando — a mulher sobre os filhos, os filhos sobre a escola. Algumas vezes iam visitar os parentes, outras vezes iam ao cinema. Hoje isto acontece raramente, aos sábados ou domingos. A televisão mudou os hábitos da família brasileira.
A televisão — o maior instrumento de comunicação entre os homens. Há apenas 45 anos, atravessar o Atlântico por ar, ligando Portugal ao Brasil, foi uma aventura que dois portugueses — Sacadura Cabral e Gago Coutinho — realizaram em mais de dois meses e sem testemunhas dos riscos que passaram, num hidroavião e fazendo amerissagens forçadas no mar.

Documentário velho no lugar da notícia
Hoje, sentadas em suas salas de visita, milhões de pessoas veem os astronautas saindo de suas cápsulas em pleno espaço. Depois de ligar os continentes, por intermédio de satélites, a televisão põe o cosmo diante do homem. E, acompanhando os avanços da tecnologia, ela se prepara para novos aperfeiçoamentos. Nos Estados Unidos e Europa a transmissão de espetáculos em cores já existe em escala comercial. Mais um pouco, e o homem não dependerá mais de horário para assistir ao seu programa preferido. Um aparelho, recém-inventado e pronto para ser produzido a baixo custo, poderá ser ligado ao televisor e gravar numa fita magnética os programas desejados, enquanto se recebe visitas ou se vai às compras.
No Brasil, porém, estamos longe de bem usar a televisão. No Texas, em fins de 1963, as câmeras estavam presentes quando Lee Oswald era transportado de uma prisão para outra e, assim, milhões de americanos viram-no morrer assassinado por Jack Ruby com um tiro no estômago. No Japão, um líder socialista é esfaqueado por um fanático religioso durante uma convenção política e todo o país assiste ao crime: a TV estava transmitindo. No Brasil, no instante em que o governador deposto de São Paulo regressava ao país, a TV transmitia receitas de bolo e documentários de 20 anos. Margot Fonteyn, uma das maiores bailarinas do mundo, esteve no Brasil, e a tevê recusou-se a pagar 15 mil cruzeiros novos para mostrar sua arte ao público. Chico Buarque e Nara Leão emocionaram o país inteiro com "A Banda", batendo recordes de venda de discos, e tudo quanto a televisão tirou desse sucesso, que ela mesma favorecera, foi um programa que se esvaziou a curto prazo.
Nossa televisão informa mal, diverte menos ainda e é insensível à cultura. Produções inteligentes e boas coberturas são raras. Hoje, a TV passa pela pior crise de seus 17 anos de vida. Um levantamento do sindicato dos artistas estimava em cerca de 700 milhões de cruzeiros velhos o total de salários atrasados em São Paulo, no mês de abril passado. Só a Record estava em dia. No Rio, os cálculos para o mesmo mês iam a um bilhão em atrasados. — No Brasil, tudo está errado desde o começo — diz Walter Clark, diretor-geral da TV Globo, da Guanabara.
E como começou? A televisão transmite as imagens por faixas de ondas-canais — que existem em número limitado. Por isso, estas faixas "pertencem" ao Estado. Na Europa quase toda e nos países do bloco socialista, é o próprio Estado que as utiliza. No resto do mundo, elas são entregues a empresas que as queiram explorar. No Brasil, o governo distribui os canais de graça. Apenas exige, de quem os recebe, o compromisso de explorá-los no interesse público. O Conselho Nacional de Telecomunicações (Contei) encarrega-se de fiscalizar. Com um detalhe: segundo o mesmo Walter Clark, muitos deles foram concedidos "apenas para atender a interesses políticos". Resultado: ha televisão demais no Brasil.
A área metropolitana de Nova Iorque por exemplo, tem um canal para cada 2 milhões e 200 mil habitantes, enquanto a grande São Paulo tem dois canais para o mesmo número de pessoas; e Belo Horizonte, com um milhão de habitantes, já ganhou quatro canais.
Esta distribuição de concessões sem muito critério trouxe problemas. O principal deles é econômico. Nos países em que o Estado explora a TV, os recursos vêm de uma taxa cobrada dos proprietários de aparelhos televisores. Na Itália, onde há cerca de sete milhões de aparelhos, cada um contribui para o 'Estado com 36 cruzeiros novos por ano; na Bélgica, essa taxa é de 34 cruzeiros novos; na Inglaterra, de 26.
No Brasil, porém, quem sustenta a televisão é o indiozinho camarada que faz biscoito ou o esquimó que vende geladeiras: são as milhares de mensagens comerciais que aparecem no vídeo o dia inteiro. Nos Estados Unidos, em 1965, foram empregados mais de 5 trilhões de cruzeiros velhos (2,5 bilhões de dólares) em publicidade na TV. No Brasil, no mesmo ano, as 38 emissoras existentes não faturaram mais que cem bilhões de cruzeiros. Os canais, portanto, são muitos para as verbas de publicidade existentes.
Assim, as emissoras precisam brigar com todas as armas por esse "pouco" dinheiro. Como aos anunciantes interessa atingir o maior número de pessoas, a grande batalha é a da audiência. Ao lado, disso, o preço do tempo vendido aos anunciantes é mantido baixo por uma concorrência feroz. Em São Paulo, uma organização de corretagem chegou a vender o tempo das emissoras a crédito, com descontos de até 50% sobre os preços de tabela, dando ainda de presente a produção dos comerciais necessários. Ainda hoje, um grande anunciaste pode comprar tempo na TV por até um quarto do preço de tabela. E o patrocínio exclusivo de programas praticamente não existe mais.
— Oitenta por cento de nossa receita de publicidade, hoje, vem dos anúncios por intervalo — diz Fernando Severino, diretor-comercial da TV Tupi, de São Paulo.
O anunciante não se arrisca a empregar toda a verba num programa que ele não sabe se alcançará boa audiência. Por isso anuncia nos intervalos. E já que os preços são baixos, as emissoras precisam do maior número possível de anúncios. Cada vez que um artista canta uma música, é necessário um comercial para pagar o tempo gasto. Assim, um programa, para ir ao ar, precisa encontrar no mínimo 14 anunciantes. O canal-7, São Paulo, já chegou até a 19 anunciantes por programa.
Esta emissora paulista, durante uma semana de abril último, colocou no ar 2.482 mensagens comerciais, média de uma mensagem cada dois minutos.
No Rio, acontece a mesma coisa. Apenas a TV Globo mantém algum respeito pela tabela de preços, enquanto as outras vendem o seu tempo com grandes descontos. Os anunciantes perdem com isso. A Frigidaire, há algum tempo, fez um filme de 45 segundos que custou 10 milhões de cruzeiros e agora arrisca-se a vê-lo empurrado no vídeo junto com outras 14 mensagens, a maior parte das vezes de baixo nível técnico, cansativas.
— O que se faz nessa área é um crime contra o anunciante e contra o público — diz o gerente-comercial de uma grande agência de publicidade.
Recentemente, uma portaria do Contei limitou a 15 minutos por hora o máximo de propaganda comercial pela TV. A fiscalização, porém, cabe ao Departamento de Correios e Telégrafos, que no início tentou agir com algum rigor. Pouco tempo depois, o diretor de uma emissora paulista dizia que não poderia obedecer à determinação do Contei, porque as concorrentes não o faziam, e o DCT não fiscaliza "porque não tem verbas para comprar os televisores de que necessita".
Daí, a avalanche de comerciais, tão grande que os publicitários gostam de contar a história do telespectador que chegou ao fim da noite certo de que "para a limpeza dos dentes, o melhor é Alka-Seltzer, que contém o aditivo ICA, com ação detergente e gostinho de uva gelada".

"Não faço programa para a classe A"
Sem dinheiro e com o tempo tomado pelos comerciais, a programação raramente supera o nível da mediocridade. É verdade que a televisão se dirige ao grande público, mas esta necessidade raramente é acompanhada por um esforço de melhorar as produções.
-— Não faço televisão para a classe A — diz Alberto Saad, diretor da Rede Excelsior — Faço para os que ficam em casa, por não poderem ir a lugar nenhum.
A audiência no Rio e municípios vizinhos, pesquisada pelo IBOPE, aponta 60% de pessoas que não passaram do curso primário. Contudo, os livros de bolso também se dirigem ao grande público e não deixam de lançar os clássicos da literatura nacional e universal. Mas a televisão continua apresentando novelas de má qualidade. Em seus 17 anos de vida, ela não acumulou recursos nem formou bons profissionais. As exceções são poucas.
Na Itália, o romance Os Noivos, de Manzoni, um dos clássicos da literatura mundial, foi apresentado em oito capítulos e custou um bilhão de cruzeiros. Aqui, 25 capítulos mensais de uma novela custam entre 50 a 60 milhões. E, quando os gastos com a montagem e direitos autorais ficam muito caros, as emissoras esticam a história para diluir o custo inicial em centenas de capítulos. A novela Redenção é um exemplo: exigiu a reprodução de uma cidadezinha de interior nos estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, São Paulo. Ficou caro. Então, a emissora — Excelsior — fez a história render mais alguns meses, incluindo novos personagens que apareciam não se sabe de onde, mudando todo o enredo.
Assim, as novelas saem mais baratas, e por isso ocupam 32% da programação no melhor horário de segunda a sexta em São Paulo; 29% em Belo Horizonte; 22% em Curitiba; 24% nó Rio. O maior salário de ator é de Sérgio Cardoso, em São Paulo: 8 milhões; Carlos Zara, da Excelsior, onde exerce outras funções, ganha 5 milhões; Francisco Cuoco, da mesma emissora, recebe 3,5 milhões; Hélio Souto, 2,5 milhões; Rosamaria Murtinho, 2 milhões; Eva Wilma, 1,5 milhão.
Os musicais também são baratos: cenários pobres, estrutura de programas de rádio que se faziam 20 anos atrás. Praticamente, a única novidade é a câmera, que leva ao espectador o que antes ele só veria se estivesse no auditório. Para garantir a audiência, dois ou três cantores de maior popularidade puxam um elenco barato. Chico e Nara sustentavam "Pra Ver a Banda Passar"; Roberto Carlos, Vanderléa e Erasmo Carlos suportam o "Jovem Guarda"; Elis e Jair carregam "O Fino"; Gilberto Gil, Cláudia e Maria Betânia garantiam "Ensaio Geral".
A monotonia acabou matando os musicais. No primeiro trimestre deste ano eles começaram a perder público. E as emissoras, sem espírito empresarial, nunca tiraram deles rendimento nenhum, a não ser índices de audiência. Roberto Carlos tem oito carros de luxo, imóveis e participação numa série de outros empreendimentos; Jau- Rodrigues comprou imóveis em um bairro valorizado de São Paulo; Ronnie Von e Luís Vieira têm avião. Nada disso foi conseguido apenas com os salários pagos pelas emissoras, mas sim com o que lhes renderam os discos e shows no país inteiro. Durante meses, as próprias emissoras fabricam os ídolos, abrem-lhes o mercado em todos os Estados e depois deixam que a promoção de shows fique com o empresário e a venda de discos com as gravadoras.
No fim do ano passado, o Canal-7 de São Paulo fundou uma empresa de gravação — AU, Artistas Unidos — mas os grandes cantores, que podiam trazer lucros, já estavam todos presos a contratos com outras gravadoras.

O mundo-cão da nossa TV
No vale-tudo pela audiência, alguns produtores exploram as feridas da sociedade. Sílvio Santos foi condenado publicamente pelo O São Paulo, jornal da Arquidiocese paulistana, por ter levado ao seu programa alguns suicidas frustrados, que receberam prêmios para contar com detalhes as experiências que tinham vivido. O mesmo Sílvio Santos promovia um programa, Rainha por una Dia, que mostrava mulheres miseráveis contando seus sofrimentos. Depois, o auditório escolhia, batendo palmas, a história mais triste. E a mulher que a tinha contado se transformava em Rainha por um Dia: vestia um manto, punha uma coroa na cabeça e sentava-se no trono, além de ganhar o prêmio maior. As outras ganhavam prêmios de consolação.
Abelardo Barbosa, Chacrinha, até hoje mantém audiência elevada no Rio, explorando a irreverência e o protesto de um tipo com o qual acabou por confundir-se. Mas não deixa de explorar coisas como o maior nariz, ou a mulher mais gorda, provocando um desfile de deformidades físicas diante das câmeras.
Jacinto Figueiras Júnior, que apresentou no Rio e São Paulo O Homem do Sapato Branco, levou prostitutas, ladrões e homossexuais à televisão, para fazer sensacionalismo. Recentemente, recolheu nas sarjetas de São Paulo alguns marginais, colocou-os diante das câmeras e realizou uma Mesa Redonda dos Mendigos.
Até pouco mais de dois anos, os chamados enlatados batiam recordes de público. Foi o tempo de Richard Chamberlain — o dr. Kildare — e de Vincent Edwards — Ben Casey — que recebiam centenas de cartas por dia, endereçadas às TVs e revistas especializadas.

Para onde vai essa TV em crise?
Outros filmes disputavam com os dois médicos românticos os índices de audiência: Os Intocáveis, 77 Snnset Strip (policiais), Bonanza e O Fugitivo (aventuras). Estes dois últimos ainda continuam no ar, mas os episódios são constan-temente repetidos e já não agradam tanto.
Hoje, para a maioria dos homens, o futebol é tudo quanto a TV pode oferecer. Mesmo assim, com a proibição das transmissões diretas, o interesse não é muito grande. Os vídeo-tapes são exibidos depois dos espetáculos e muitas vezes entram pela madrugada.

Solução: a rede nacional
Assim se arrasta a televisão no Brasil, hoje. Para tirá-la da crise em que se afunda, seus dirigentes sonham com uma solução: organizá-la em redes de cobertura nacional, "É o caminho natural para vencer nossas dificuldades", diz Fernando Severino, da TV Tupi de São Paulo.
— A Excelsior caminha para a formação de uma rede racionalmente estruturada — diz Alberto Saad.
Walter Clark também sustenta a necessidade das redes nacionais, mesmo considerando que a TV Globo só tem três emissoras — Rio, São Paulo e Bauru. Nos escritórios de comando das outras emissoras, porém, já se informa com segurança que a TV Globo assumiu o controle financeiro da TV Guajajaras, de Belém, e prepara-se para funcionar também em Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e Salvador.
Primeiros passos concretos para a formação das redes nacionais: a criação do Telecentro, nas Associadas, com roteiro de custos por toda a cadeia; instalação da Teleproduções Globo; e a Central de Produções Excelsior. À TV Record de São Paulo, que ainda se mantém equilibrada, abre-se o caminho dos convênios com outras emissoras. E as demais, se estiverem em má situação, serão absorvidas. Ou morrerão.  O funcionamento em rede criará um mercado obrigatório para as centrais de produção.
— O Telecentro das Associadas, no Rio, tem uma verba de 600 milhões e produz 30 shows mensais — diz Fernando Severino.
Apesar disso, em quase todos os Estados, as TVs Associadas ainda continuam comprando programas de outras emissoras, gastando entre 100 e 150 milhões de cruzeiros por mês. Em Belo Horizonte, o canal 4 apresentou a novela "O Sheik de Agadir", comprada à TV Globo do Rio; além de "o Fino"-e o "Corte-Rayol Show", da Record de São Paulo. Mas já se sabe que as Associadas vão parar de comprar programas dos outros.

Muitas dificuldades pela frente
As dificuldades são muitas para se chegar à organização em redes. Para começar, nem sequer se sabe com segurança quantos televisores há. Recentemente o IBOPE informava ao Contei que o Brasil tinha quatro milhões de aparelhos. Mas, pouco antes disso, uma revista especializada em economia dizia que havia apenas dois milhões e 200 mil. Agora, o Contei pediu ao IBGE um levantamento geral.
As pesquisas de audiência também falham. Só o IBOPE se encarrega disso regularmente, assim mesmo limitando-se ao Rio e São Paulo. Em outras cidades, as pesquisas são feitas apenas a pedido de anunciantes, agências de publicidade ou emissoras. Na Guanabara, o IBOPE extrai os índices de audiência computando os municípios vizinhos de Nilópolis, Caxias, Nova Iguaçu, Mesquita e Niterói — com cerca de 900 mil residências, em que há aparelhos de televisão. Mas em São Paulo a pesquisa ficou só no perímetro urbano, sem os municípios vizinhos que formam a Grande São Paulo, acusando apenas 700 mil aparelhos. Deste modo, os índices não podem ser uniformes: Chacrinha, por exemplo, que tem maior público nas camadas populares, sempre comandou a audiência no Rio, mas em São Paulo, onde certamente também é bem recebido, nunca chegou a posições destacadas nas pesquisas.
As redes precisarão vencer ainda dificuldades legais. Por determinação do governo, uma só organização não pode ter mais de cinco emissoras em todo o país. O prazo da lei para se regularizarem é curto, as dívidas precisam ser pagas, os programas caem cada vez mais. Os homens de televisão conhecem todos estes obstáculos. Sabem que anúncios bem mais caros — e, portanto, em menor quantidade — aumentariam o faturamento das estações, possibilitando melhorar o nível geral da programação, Para isso, entretanto é imprescindível que se reduza o número de canais pois a verba dos anunciantes é fixa. Com mais dinheiro, nossa TV poderá até enfrentar a responsabilidade que tem com o país, criando programas verdadeiramente educacionais. São esses os problemas. Resta ver, agora, se os homens da televisão vão saber enfrentá-los.


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Fonte:
Revista Realidade. Ano II, Nº 15 - Junho de 1967. Editora Abril. São Paulo, págs. 142-147.

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