quarta-feira, 20 de julho de 2016

O Hebraico Moderno - Fundamentos Históricos

O Hebraico Moderno - Fundamentos Históricos
Por:  Rifka Berezin (Prefácio)
O rápido desenvolvimento do hebraico como língua falada, bem como o incremento dos estudos hebraicos no Brasil, tornaram indispensável a elaboração de um dicionário que facilitasse o acesso do leitor de fala portuguesa a esse idioma de três mil anos de existência.
O hebraico foi a língua de comunicação do povo judeu desde 1200 a.C. (conquista de Canaã após o Êxodo do Egito) até 134 d.C. (revolta de Bar Kokhba contra os romanos).
O uso corrente da língua hebraica foi interrompido pela dispersão do povo judeu, quando este passou a viver em diversos países e a falar diferentes idiomas; o povo já levava consigo, entretanto, a tradição de sua brilhante criação: a Bíblia.
Durante 1700 anos a língua esteve no exílio, assim como o povo judeu e, dessa forma, ela não pôde ter uma vida plena e um desenvolvimento normal. Ao longo de todo esse tempo, entretanto, o hebraico continuou sendo a língua em que se orava e na qual a Bíblia era lida nos cerimoniais públicos. Os deveres religiosos fizeram com que praticamente todo judeu soubesse ler e escrever hebraico, o que permitiu à língua manter a sua força e vitalidade; disso dá testemunho o florescimento de uma extensa produção literária hebraica na diáspora.
A partir do ano 200 a.C, aproximadamente, os judeus passaram a dedicar-se aos estudos da Lei Oral, tendo-se iniciado a vasta literatura talmúdica em Israel e na Babilônia, assim como a elaboração dos livros da Tossefta e do Midrasch. Essa literatura foi escrita parte em hebraico e parte em aramaico, uma espécie de segunda língua dos judeus.
O hebraico desses escritos recebe a denominação de hebraico mischnaico ou a Língua dos Sábios. Esta contém cerca de 14000 vocábulos que não se encontram na Bíblia, e utiliza parte do léxico bíblico, que possui apenas 8000 vocábulos. A linguagem da Mischná incorpora ainda muitas palavras aramaicas e sua gramática apresenta diversos aspectos que a aproximam desse idioma. Sua estrutura é mais simples e seu estilo é menos poético e elaborado que o estilo da Bíblia. Essa literatura constitui o segundo estrato ou período histórico da língua hebraica (200 a.C. a 600 d.C).
Os escritores judeus tinham, portanto, à disposição dois modelos dentre os quais podiam optar: o hebraico tradicional bíblico e o hebraico mischnaico, e ao longo da Idade Média judaica (600 d.C. a 1700) o povo judeu produziu uma vasta literatura nos diferentes países da diáspora: Norte da África, Espanha, Itália, França e Alemanha. É o momento das Escolas de Tradução, dos estudos da Gramática, do desenvolvimento da Filosofia, da Exegese bíblica e das Ciências. Nos seus escritos, principalmente na Filosofia, os judeus utilizaram também o árabe, mas, nos textos em hebraico davam continuidade à linguagem da Mischná e dos Midraschim. No que se refere à poesia, entretanto, deu-se preferência à nobreza da língua do primeiro período: o hebraico bíblico. É a fase da poesia litúrgica, o Piyut.
No final do século XVIII teve início o movimento iluminista judaico, a Haskalá, que se prolongou pelo século XIX. A literatura dos iluministas judeus caracterizou-se, no seu aspecto formal, pela adoção dos gêneros literários europeus da época; do ponto de vista conceituai, contudo, houve novo retorno às fontes bíblicas. A Haskalá, além de lançar os alicerces do sionismo através de seus temas bíblicos, que despertaram o anseio por uma existência livre na antiga terra, também preparou o terreno para o renascimento do hebraico como linguagem de comunicação oral. Os escritores da época optaram por ater-se estritamente ao vocabulário e à gramática do texto bíblico.
Paralelamente à Haskalá, desenvolveu-se a literatura hassídica, cujos relatos, transmitidos oralmente pelos Rabis, em ídiche, foram mais tarde transcritos pelos discípulos em hebraico. Neste caso, a linguagem utilizada foi o hebraico mischnaico, que se mostrou mais próximo da fala popular.
A linguagem da Haskalá, que se prendia estritamente à linguagem bíblica, ia-se mostrando defasada e insuficiente para expressar o pensamento moderno na discussão político-social e, principalmente, no campo da ficção narrativa. Como os escritores ligados à Haskalá, ao lado dos ideais nacionalistas de retorno a Sião, acalentavam também o ideal de transformar o velho hebraico num veículo contemporâneo de comunicação oral, foi natural que procurassem aproveitar o patrimônio vocabular de todas as épocas literárias anteriores, tentando adaptá-lo às novas necessidades.
Foi o escritor Mendele Mokher Sefarim (Schalom Yaakov Abramovitch, 1835-1917) o iniciador da literatura hebraica moderna, quem primeiro desenvolveu essa tarefa na Rússia. Sua principal preocupação consistiu em criar uma linguagem que pudesse expressar a literatura hebraica de sua época, assim como o pensamento do homem moderno. Dedicado à pesquisa do vocabulário hebraico de todos os períodos literários, formulou uma síntese, chegando a utilizar simultaneamente o léxico dos diferentes estratos históricos da língua numa mesma obra e, por vezes, numa mesma oração. Mendele lançou as bases de um estilo novo na literatura hebraica moderna.
Seu texto utiliza material linguístico da Bíblia, do Talmude, das orações litúrgicas, da literatura filosófica medieval e da literatura rabínica. Com Mendele Mokher Sefarim teve verdadeiramente início o processo de ampliação da língua hebraica, criando-se as bases para o seu uso em todos os ramos da ciência, da poética e do pensamento. A partir desse trabalho e da criação de novos vocábulos pelos demais membros da Haskalá, estavam estabelecidas as condições capazes de propiciar o renascimento da fala hebraica.
No início da imigração dos pioneiros sionistas para a Terra de Israel, a partir de 1881, o hebraico se reativa como língua falada a serviço da comunicação oral. Para esse renascimento muito contribuiu Eliezer ben Yehuda (1858-1922), considerado o pioneiro da fala hebraica na era moderna. Ben Yehuda mostrou ser possível empregar o hebraico em todos os setores da vida prática, se usado com persistência e coerência. Além de criar um grande número de vocábulos, logo adotados pelos falantes do hebraico na Terra de Israel, ele elaborou o seu Grande Dicionário, de dezesseis volumes, no qual introduziu o vocabulário hebraico de todos os períodos históricos, acrescido dos termos inovados pêlos iluministas e por ele mesmo.
Os grandes propulsores da divulgação do hebraico falado na Terra de Israel foram os professores, que lutaram para empregar o hebraico como língua oficial do ensino de todas as disciplinas nas escolas locais, contribuindo, dessa forma, para torná-lo o instrumento natural da comunicação.
É fato notável que o hebraico, tendo permanecido por tantos séculos praticamente como língua de comunicação escrita, conseguisse novamente ressurgir como língua falada, o que não é usual, pois o desenvolvimento linguístico move-se na direção oposta, isto é, línguas previamente usadas na comunicação oral transformaram-se em idiomas literários ou em veículos para a comunicação escrita. Por outro lado, o próprio processo de desenvolvimento da língua hebraica foi diferente: tendo sido inicialmente uma língua de comunicação popular na antiguidade, deixou de ser falada após a diáspora, fato esse que impediu que a língua sofresse mudanças. Além disso, o repositório básico do hebraico antigo é a Bíblia e, devido à natureza peculiar e religiosa das Escrituras Sagradas, o léxico bíblico manteve-se imutável quanto à sua forma.
Se todas as línguas cultas recebem influência de suas obras clássicas, no caso do hebraico renovado, a influência da linguagem bíblica foi especialmente intensa. Isto ocorreu, ora, devido à influência da beleza poética da Bíblia e, ora, pelo fato de os textos sagrados permanecerem na memória coletiva da sociedade que inovou o hebraico, já que todos os homens judeus conheciam o Pentateuco e trechos dos Profetas que eram lidos nas sinagogas ao longo da vida judaica na diáspora.
Foi, pois, natural a introdução maciça do vocabulário bíblico no idioma renovado.
Nos nossos trabalhos e investigações sobre as origens históricas do hebraico moderno pudemos comprovar o uso mais frequente do vocabulário bíblico no hebraico renovado em relação aos outros estratos da língua . A pesquisa consistiu numa amostragem de 200000 palavras correntes, selecionadas em jornais e periódicos israelenses, investigadas quanto à origem histórica das mesmas. Verificamos que 61% das palavras de maior frequência presentes nesta amostragem são de origem bíblica e as demais estão distribuídas da seguinte forma: palavras da literatura talmúdica 16%, da literatura medieval 6%, léxico inovado 15%, e estrangeirismos 2%.
Quanto ao léxico hebraico inovado encontramos que 56% dos vocábulos foram cunhados a partir de radicais bíblicos. Esses resultados confirmam de modo inequívoco a importante presença da Bíblia no hebraico moderno e o caráter da unidade da língua hebraica.
O hebraico bíblico forneceu ao hebraico renascido o tronco, o alicerce, e supriu o vocabulário básico das diversas áreas da vida, relatadas nas Escrituras. Estabeleceu também o núcleo formal dos sistemas e das formas gramaticais: a estrutura do substantivo, as conjugações da maioria das construções verbais (Binyanim), bem como os tempos verbais.
O segundo período da literatura hebraica clássica, o período talmúdico ou mischnaico, contribuiu especialmente no que diz respeito à organização da estrutura sintática do hebraico moderno, já que o estilo do texto bíblico, altamente poético, dificilmente poderia ser utilizado na linguagem corrente e coloquial. Esse segundo período também contribuiu com o seu vocabulário hebraico e, ainda, com as expressões aramaicas, largamente utilizadas na norma culta e nas obras literárias do hebraico moderno.
O hebraico da Idade Média judaica deu sua contribuição à língua renovada em vários campos, principalmente no vocabulário específico e na terminologia referente à Filosofia, às Ciências Naturais, à Medicina e em especial à Matemática e Astronomia.
O hebraico moderno não é, portanto, o resultado de uma evolução natural e orgânica da língua como usualmente ocorre: seus diferentes estratos produzidos nos diversos períodos históricos e literários contribuíram para a organização de um sistema sincrônico, em que coexistem lado a lado elementos linguísticos de todas as fases anteriores, indistintamente, sem haver nem mesmo a eliminação de formas arcaicas.
Em 1890 foi fundado na Terra de Israel o Comitê da Língua Hebraica, que se dedicou a um trabalho organizado de renovação e ampliação da língua, criando novos vocábulos, incorporados pelos falantes do hebraico daquele tempo. Foi esse Comitê, dirigido por Ben Yehuda, que decidiu pela adoção da pronúncia sefaradita do hebraico, sob a argumentação de que essa pronúncia seria mais bela, mais suave e a que melhor lembrava a fala oriental e, talvez, a fala dos hebreus antigos.
A Academia de Língua Hebraica, sucessora do Comitê, é hoje uma instituição oficial de Jerusalém e suas decisões, em matéria de terminologia, grafia, pronúncia e transliteração, são adotadas pelas entidades educacionais e científicas. Os vocábulos, por ela cunhados ou aprovados, fazem parte dos dicionários e dos livros de textos escolares e passam a integrar o patrimônio linguístico do hebraico moderno.
A ordem de prioridade das fontes pesquisadas para a formação de novos vocábulos foi, em primeiro lugar a Bíblia, depois o Talmude e, em seguida, a vasta literatura da Idade Média. Só em último caso recorreu-se a palavras ou radicais de outras línguas semíticas, de preferência o aramaico e em seguida o árabe. O recurso a línguas ocidentais deu-se apenas em casos de extrema dificuldade, aplicando-se a técnica da hebraização dos radicais.
Atualmente, após cem anos do início do renascimento do hebraico, o desenvolvimento do idioma não é mais planejado e organizado. Tendo-se tornado a língua oficial de um Estado e de seu povo, adquiriu impulso próprio, passando a desenvolver-se como todas as línguas faladas.
Sua evolução, tanto no que se refere ao vocabulário como à semântica e, num ritmo mais lento, à própria gramática, atende agora às necessidades de uma sociedade que exige constantemente novos termos para identificar novos fenômenos.
O processo de criação de novos termos tem continuado sempre com a utilização do material linguístico já existente nas fontes escritas. A maioria das inovações continua sendo feita de acordo com o caminho clássico: adequando radicais das fontes tradicionais, acrescidos de prefixos e sufixos, ou ainda, combinando várias palavras básicas para criar uma nova. Muitas dessas inovações já têm um cunho popular.
A Academia de Língua Hebraica, através de suas diversas comissões, atua no exame das propostas de novos vocábulos que lhe chegam dos vários setores da sociedade, aprovando-os ou não, e tem ainda ao seu encargo a tarefa de cunhar, ela mesma, novos vocábulos.
Estrangeirismos ou empréstimos também já penetraram em larga escala no hebraico, o que é usual e normal nas línguas modernas. A Academia, entretanto, faz um esforço no sentido de substituir os estrangeirismos por vocábulos inovados. Procura criar termos hebraicos para os estrangeirismos correntes, que, às vezes, são aceitos pelos falantes e, outras, passam a conviver lado a lado com a palavra cunhada para o mesmo conceito.
No que se refere à gramática, geralmente esse sistema se caracteriza por um maior grau de estabilidade, mas, no hebraico falado, nota-se uma tendência a evitar as formas gramaticais irregulares e a incrementar a uniformidade gramatical. Isso ocorre, por exemplo, nos verbos do futuro plural feminino, que diferem do plural masculino, e na conjugação de alguns verbos (como yoschen no lugar do gramaticalmente correio yaschen). Embora essas mudanças sejam correntes na fala popular, a gramática oficial não as incorporou.
A ortografia plena, que utiliza as letras u, o e. i como auxiliares da leitura na escrita sem vogais, também responde ao anseio do povo pela simplificação, mas, oficialmente, coexistem os dois sistemas ortográficos: a escrita defectiva (ketiv hasser), totalmente vocalizada, e a escrita plena (ketiv malê), sem as vogais. Todas as tentativas de simplificação, tanto da gramática como da grafia, sofreram reveses.
Concluindo, o hebraico antigo transformou-se numa língua dinâmica, moderna, corrente e natural. O acréscimo de novos vocábulos, bastante numerosos, não afetou as características básicas da língua. Por outro lado, a par dos vocábulos acrescidos para expressar o novo mundo, já surgiu um rico vocabulário popular, uma gíria amplamente difundida em todas as camadas sociais dos falantes do hebraico.
O surgimento dessa fala popular é o sinal maior de que o processo de renascimento ou renovação da língua hebraica foi bem-sucedido.
O hebraico, língua clássica, altamente poética, que serviu durante dezessete séculos a práticas religiosas, à comunicação escrita e à expressão literária, transformou-se numa língua moderna, com todas as características de língua falada capaz de expressar as necessidades de uma sociedade moderna e dinâmica, dispondo até mesmo de gíria própria, eivada de termos ídiches e árabes.
Foi, pois, concluído o processo de renascimento da língua hebraica e está em curso o processo de desenvolvimento natural do hebraico moderno.
R. B.


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Fonte:
Dicionário Hebraico-Português, por: Rifka Berezin. Edusp (Editora da Universidade de São Paulo - USP). São Paulo, 1995 (Ano Judaico: 5755), págs. 9-14.

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