Júlio Dinis: Biografia
Em 12 de
Setembro de 1871, escrevia Sousa Viterbo no Jornal
do Porto: O país e as boas letras acabam de perder um dos seus mais
estimáveis talentos, Joaquim Guilherme Gomes Coelho expirou esta madrugada à
uma hora. [...] Foi nas colunas do nosso jornal que o autor d'As Pupilas do Senhor Reitor principiou a
sua brilhante carreira literária. Era com a maior avidez que os nossos leitores
seguiam os folhetins do Jornal do Porto,
quando esses folhetins publicavam as pérolas da nossa literatura que se
denominam — As Pupilas do Senhor Reitor,
Uma Família Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais. A
Providência não quis conceder a Gomes Coelho mais um momento de vida para rever
as últimas provas do seu derradeiro romance — Os Fidalgos da Casa Mourisca.
Contudo, o
verdadeiro nome do autor destes romances, já então muito popularizados (à exceção
do último, só publicado no ano seguinte), pouco diria ao comum dos leitores:
estes apenas conheciam Júlio Dinis, pseudônimo com que Gomes Coelho se
celebrizou, e que se sobrepôs para sempre à verdadeira identidade do escritor.
Portanto, se Gomes Coelho morreu em 1871, tal não aconteceu a Júlio Dinis, pois
este revive em cada leitor que, de acordo com a experiência de vida e consoante
a época e a cultura, recria os seus romances, quer valorizando aspectos que até
então eram considerados secundários, quer relegando para segundo plano o que já
fora reputado de interesse preponderante. Assim as obras permanecem vivas e se
enriquecem através das gerações; e o pseudônimo, em vez de facilitar o
anonimato, projetou no tempo a memória do seu criador.
Efetivamente,
o lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Dr. Joaquim Guilherme Gomes
Coelho, e Júlio Dinis, o romancista de visão idílica e de técnica realista,
eram a mesma pessoa — eis a identificação inesperada que surpreendeu o pai do
escritor, ao descobrir o jovem cientista, em 1866, a rever as provas do
primeiro romance publicado em volume, As
Pupilas do Senhor Reitor. Até esta data, o segredo do pseudônimo fora
escrupulosamente guardado, mesmo entre a família, o que demonstra a intenção de
separar o médico e b homem de letras, embora, nos seus romances, a experiência
do cientista, os seus hábitos de observação e diagnóstico, contribuam para a
minuciosa reconstituição de ambientes, e ajudem a definir, por vezes com rigor
clínico, a psicologia das personagens.
Nascido em
14 de Novembro de 1839, no Porto, de unta família de alta burguesia (seu pai, o
Dr. José Joaquim Gomes Coelho, era médico, e sua mãe, D. Ana Constança Potter
Pereira Lopes, descendia de ingleses e de irlandeses, católicos e radicados no
Porto por razões comerciais), Joaquim Guilherme Gomes Coelho viveu na cidade
natal, onde situa também a ação de um dos seus romances, embora, a partir de
1863, a doença o obrigue a procurar temporariamente regiões climatericamente
mais favoráveis. Após longas estadas, cada vez mais frequentes, em localidades
do Norte do país, sobretudo em Ovar e Felgueiras, opta pela ilha da Madeira,
cujo clima constituía, na época, a derradeira esperança de cura da tuberculose
que o ia definhando. Todavia, quando, como médico, se considerou
irremediavelmente perdido, regressa ao Porto para morrer. Tinha apenas trinta e
dois anos; contudo, idade suficiente para ter alcançado por mérito próprio,
evidenciado nos seus trabalhos científicos, uma honrosa categoria
universitária; e, o que demonstra ainda melhor a rara aliança do talento à
capacidade de trabalho, para nos legar uma obra literária que surpreendeu e
terá provavelmente influenciado os dois grandes ficcionistas do século XIX:
Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós.
Para este.
afinco ao trabalho, esta necessidade de conquistar, sem perda de tempo e com
prejuízo da saúde, uma situação profissional de relevo, ao mesmo tempo que, sob
pseudônimo, se afirmava o nosso primeiro romancista (Camilo foi pré
dominantemente 'novelista), para esta urgência em viver com o fim de realizar
algo que perdure, muito deve ter contribuído a ameaça de morte prematura que
pairava sobre a família, atingida de um mal hereditário e, então, incurável: a
tuberculose, " essa terrível perseguidora da nossa família, à qual nós
devemos os únicos infortúnios que nos têm feito sofrer", conforme se
lamenta o escritor numa carta.
Com efeito,
aos dezesseis anos, o jovem Joaquim Guilherme viu desaparecer, vítimas desta
doença e no espaço de alguns meses, dois irmãos (um deles, o mais velho,
falecido em 1855, acabara de concluir brilhantemente o curso de Engenharia na
Academia Politécnica do Porto); e a mãe também morrera tuberculosa, quando ele
tinha apenas cinco anos, como recorda numa das suas primeiras poesias: "E
ai daquele que, no alvor da vida, / Perdeu p'ra sempre maternais afagos".
Assim se
compreende que os "heróis" dos seus romances apresentem, como
característica comum, a orfandade e conservem como ideal-feminino a imagem da
mulher-mãe, a única capaz de exercer com firmeza uma doce influência pedagógica
sobre caracteres marcados pela extrema afetividade e propensos a certa
desorientação moral (Daniel, Carlos, Henrique e Maurício). Também as figuras
femininas que se distinguem pela mais acentuada elevação moral e invulgar
maturidade de espírito, tais como Margarida, Jenny e Madalena, a Morgadinha dos Canaviais, são órfãs de
mãe.
Filho único
pela f orça das circunstâncias, criado como pai, temperamento frio e reservado
que, segundo o testemunho de familiares, conservava o jovem Joaquim Guilherme a
respeitosa distância, a sua situação familiar e as relações que mantinha com o
pai devem ter sido transpostas literariamente para Carlos, a principal
personagem de Uma Família Inglesa, assim como o caráter de Mr. Whitestone
apresenta algumas semelhanças com o dr. Gomes Coelho, conforme já foi referido
por biógrafos do escritor.
Após a morte
dos irmãos, Júlio Dinis (adotamos, desde já, para comodidade de exposição, o
seu pseudônimo), aluno brilhante e distinguido ao longo do curso com vários prêmios,
sentiu-se talvez moralmente obrigado a realizar as esperanças que o pai tinha
visto prematuramente frustradas nos outros filhos. Só assim se compreende que,
apesar de sujeito a hemoptises desde a frequência do 2° ano de Medicina,
prosseguisse regularmente os seus estudos ë, terminada a formatura, arruinasse
a sua débil constituição física a preparar--se para vencer concursos
trabalhosos e renhidos, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde, em 1865, aos
vinte e seis anos, ingressa como professor, o que lhe proporcionou, segundo
confidencia a um amigo, a maior alegria da sua vida. E, dias depois de ver
publicada a sua nomeação para demonstrador da Escola Médica Júlio Dinis dava a
notícia ao pai, numa carta que constitui modelo de epistolografia, é que
confirma, como se verá pela transcrição parcial, que apresentamos, o seu alto
sentido de responsabilidade moral em relação aos sacrifícios a que o pai se
sujeitara e aos desgostos que sofrera, e que ele, ao ingressar no corpo docente
universitário, pretendia compensar, mesmo com prejuízo da saúde:
[...] Nesta
ocasião em que o meu futuro se fixou, não posso deixar de me recordar do muito
que devo ao Papá pelos sacrifícios feitos por mim.
Alegra-me
duplamente o resultado deste meu empenho porque, com o prazer que me causa, sei
que não menos intenso havia de produzir no Papá, que até agora tão improfícuos
tinha visto ficarem os seus grandes esforços para a felicidade dos filhos.
Meus irmãos
foram privados, não sei por que vistas providenciais, de colherem neste mundo
os frutos da esmerada educação que lhes dera. Esse mesmo poder, que os
sacrificou tão novos, parece ter-me reservado, como que para realizar em mim a
recompensa que lhe merecia a resignação do Papá.
Alegra-me
esta ideia e anima-me a acreditar que não me faltará a vida e a saúde para
poder cumprir essa missão talvez providencial.
Infelizmente,
este voto não se realizou, e, em 19 de Janeiro de 1870, Júlio Dinis, em carta a
um amigo, enviada do Funchal, reconhecia lucidamente o fracasso das suas
aspirações profissionais:
Uma outra
coisa pela qual sinto ter esfriado muito em mim o entusiasmo, é o professorado.
A augusta missão oferece-me poucos atrativos, desde que a minha saúde não me
permite entregar-me a ela como deve ser. Professor para traduzir compêndios e
marcar lições a dedo, não tenho vontade de ser. Confesso-te que, se nessas
viravoltas de serviço público e reformas que aí vão, eu pudesse aproveitar
ensejo para dizer adeus ao Porto e à toga, não o deixava fugir.
Contudo, os
sucessos escolares de Júlio Dinis pareciam fazer prever, desde a adolescência,
o futuro lente da Escola Médica. Feita a instrução primária na escola de
Miragaia, estuda latim com um padre, ao mesmo tempo que um dos irmãos lhe
ensina francês. Após estes estudos preparatórios, frequenta as aulas da Graça
(assim eram designados então os cursos públicos do Liceu e da Academia,
reunidos no mesmo edifício) e simultaneamente inicia-se no estudo da língua
inglesa com um professor particular. No ano letivo de 1853-54, com quinze anos
incompletos, Júlio Dinis matricula-se em Química e Matemática, e no ano
seguinte termina o estudo de Física e o 2º ano de Matemática com as mais altas
classificações; e, após a frequência, em 1855-56, das aulas de Botânica e de
Zoologia, inicia o curso de Medicina, na Escola Médico--Cirúrgica do Porto,
onde, durante cinco anos, obtém prêmios em várias cadeiras, apesar de, no 2º
ano, ter sofrido um ataque de hemoptise, primeiro sintoma da doença que o há de
vitimar, após anos de sofrimento físico e moral. Concluído o curso em 1861,
nesse mesmo ano apresenta, na defesa de tese, uma notável dissertação que, na
opinião de cientistas como o Prof. Egàs Moni, reflete "a preocupação do
autor em face do seu mal": Da importância dos estudos meteorológicos para
a Medicina e especialmente de suas aplicações ao ramo cirúrgico. Decidido a
enveredar pelo professorado, concorre em 1863 ao lugar de demonstrador da secção
médica da Escola Médico-Cirúrgica, lugar que só obterá, como já se referiu, em
1865, visto que, em 17 de Abril de 1863, segunda hemoptise abriga-o a abandonar
as provas iniciadas e a ir repousar para Ovar, em casa de uma tia. Este
acidente e esta data podem considerar-se verdadeiramente o início da carreira
de romancista de Júlio Dinis, pois, embora a sua vocação literária,
precocemente manifestada, já se tivesse revelado em poesias, obras dramáticas,
novelas e um romance, posteriormente publicado com o título de Uma Família Inglesa, é durante a
permanência de cinco meses em Ovar que recolhe material para dois dos seus
principais romances, As Pupilas do Senhor
Reitor e A Morgadinha dos Canaviais,
ambos com o subtítulo de Crônica da
Aldeia. E, de regresso ao Porto, convencido de que a sua doença fora "mais
de imaginação do que real", intensifica a atividade literária, além de se
preparar para novos concursos universitários: publica em folhetins no Jornal do Porto a novela Os Novelos da Tia Filomena,
posteriormente incluída nos Serões da
Província, redige um romance, O Canto
da Sereia, conservado inédito, mas que reflete a paisagem de Ovar,
localidade onde descobre a aversão à cidade e a atração pelo campo ("Trocar
o rumorejar das turbas por o rumorejar das folhas [...], à sombra de árvores e
no meio da pura atmosfera e aprazível solidão dos campos, é o ideal dos meus
sonhos do futuro, ideal que receio nunca chegue a realizar-se"), e onde a
paisagem humana também o impressionou devido à pureza de tipos ("Tenho
notado que em Ovar os tipos não degeneraram ainda"), alguns dos quais,
tratados literariamente, serão imortalizados nos seus romances. Uma das mais
nobres figuras femininas de ficção, em relação à qual o narrador manifesta
evidente simpatia, a Margarida de As
Pupilas do Senhor Reitor, parece ter-lhe sido inspirada por uma jovem de
Ovar, por quem se teria apaixonado e com quem se correspondeu durante algum
tempo. E, em carta a um amigo, confidenciava então: "Não te farei uma
descrição da minha vida aqui. Mentindo e poetizando um pouco, talvez me fosse
possível transformá-la num idílio, que teria a realidade de todos os idílios...".
Na poesia "Em Horas Tristes", escrita no Funchal, em 1869, parece efetivamente
transparecer a recordação de um idílio campestre, vivido por outro Daniel que,
igualmente inconstante e igualmente poeta, fosse também capaz de sentir
remorsos: "Ela vivia só naquela aldeia, / Sem ter um coração que a
compreendesse. / Passei um dia ali, falei-lhe, amei-a... / Ai, se esses tempos
esquecer pudesse! / [...] Parti jurando amá-la toda a vida. / Pude fazer aquele
juramento! / Ela ficou chorando-me, iludida, / E eu paguei-lhe a ilusão com o
esquecimento. / E ela?... Talvez no coração ferida / Por minha leviandade
criminosa, / Vivesse dias de enlutada vida, / Sem ter na terra a sagração de
esposa."
Todavia,
desde a adolescência que as duas vocações de Júlio Dinis, a científica e a
literária, se realizavam simultaneamente, disputando entre si o talento
indesmentível daquele que, contudo, sopeio ócios forçados de doente se entregou
totalmente à literatura ("hoje a única maneira de minorar os sintomas
morais da minha doença, é andar com a cabeça pelos mundos da imaginação",
escrevia, do Funchal, em 1869; e posteriormente, acrescentava: "Há poucos
momentos de mais felicidade para mim hoje do que aqueles em que me absorve a
atenção a composição dum romance").
Assim, ao
mesmo tempo que o Dr. Gomes Coelho prosseguia uma carreira universitária
brilhante (em 1867, foi promovido a lente substituto e, no mesmo ano, é nomeado
secretário e bibliotecário da Escola, tendo também dirigido o observatório
meteorológico que, nessa época, se encontrava anexo à Escola Médico-Cirúrgica,
Júlio Dinis, nome literário com que, de 1861 a 1864, assina as poesias que
publica na revista A Grinalda,
dirigida pelo poeta Soares de Passos, torna-se cada vez mais conhecido do
público, desde que, em 1862, saem em folhetins, no Jornal do Porto, duas novelas, As
Apreensões de uma Mãe e O Espólio do
Senhor Cipriano e, em 1864, o conto Uma
Flor de entre o Gelo, também em folhetins. Contudo, enquanto colaborou n'A Grinalda, conseguiu manter o anonimato,
como já se referiu. (Em Nota à poesia intitulada A. J., a primeira obra a
aparecer rubricada com o pseudônimo que o celebrizou, pode ler-se: "Esta
poesia foi enviada ao redator da Grinalda [...], assinada com o pseudônimo
Júlio Dinis, em 9 de Março de 1861, e publicada no terceiro número daquele
jornal. No dia 18 de Março, à noite, o Passos [o poeta Soares de Passos]
elogiou-a, sem saber quem era o autor.")
Não foi
este, porém, o único pseudônimo sob que encobriu, na atividade literária, a sua
verdadeira identidade. Os folhetins, em forma de carta, publicados, de 1864 a
1868, no Jornal do Porto (Cartas a Cecília), tal como a carta em
que enaltece a obra de Rodrigo Paganino, e o debate travado com Ramalho
Ortigão, em 1863, aparecem assinados com um nome feminino, Diana de Aveleda,
mais tentiva de heterônimo do que pseudônimo, visto que o escritor teve a
preocupação de se colocar na posição de uma mulher e, de acordo com a
mentalidade feminina da época, esforçou-se por exprimir sentimentos, defender ideias,
manifestar interesses e qualidades próprias de mulheres. Assim, o pseudônimo
parecia corresponder a uma necessidade psicológica do escritor, que se
comprazia no anonimato, talvez receoso, pelo menos inicialmente, de ver
diminuído o prestígio do cientista pela atividade do homem de letras.
Contudo,
Júlio Dinis manifestou muito cedo, entre familiares e amigos, a sua vocação
literária. A traído pelo teatro, fazia parte de um grupo de "amadores
dramáticos" e, ator aos quinze anos, torna-se também autor, embora as
comédias e dramas, escritos dos dezessete aos vinte e um anos e destinados aos espetáculos
desse grupo de amigos, que, provavelmente, as encenaram e representaram, se
tenham conservado inéditas até à sua morte, só tendo sido publicadas em 1946,
devido ao interesse apaixonado de Egas Moniz, professor da Faculdade de
Medicina de Lisboa e Premio Nobel; natural da região de Ovar, este cientista
tomou-se o principal biógrafo de Júlio Dinis.
A publicação
do Teatro Inédito de Júlio Dinis permite-nos conhecer a data da redação das
peças: as primeiras datam de 1856 (um drama, Bolo Quente, e uma comédia, O
Casamento da Condessa de Amieira) e as últimas, duas comédias, foram
escritas em 1860: Um Segredo de Família e A Educanda de Odivelas. Entre estas
datas, Júlio Dinis escreveu outras obras dramáticas: em 1857, três comédias (O Último Baile do Dr. José da Cunha, Os
Anéis ou Inconvenientes de Amar às Escuras, As Duas Cartas.) e, em 1858, o
drama Um Rei Popular e a comédia em
um ato, Similia Similibus,
representada pela primeira vez, em 1939, no Teatro Nacional D. Maria II, num
espetáculo de homenagem à memória do autor.
Em 1867, a
publicação em volume d'As Pupilas do
Senhor Reitor constituiu um sucesso surpreendente e consagrou o escritor.
Um ano depois, Ernesto Biester adaptou o romance à cena: foi representado em
Março, no palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, e Júlio Dinis, "o
célebre autor do romance", como já era designado, foi obrigado a subir ao
palco, recebendo grande ovação. Popularizado por este primeiro romance, afama
do seu nome alastrava. Do Funchal, em Abril de 1869, Júlio Dinis escrevia:
Aqui lera-se
já as Pupilas e meia hora depois que
desembarquei corria na cidade a notícia da minha chegada. [...] Depois houve
quem, não tendo ainda lido o livro, sentisse desejos de o ler por verem o
autor. Isto tem dado lugar a cumprimentos na rua [...] que eu dispensava porque
não aprendi a responder-lhes.
Entretanto,
já outros romances tinham vindo a lume: Uma Família Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais, ambos
publicados em volume em 1868, após terem sido divulgados em folhetins; contudo,
o próprio autor reconheceu que dificilmente se repetiria o êxito que bafejara o
primeiro romance publicado: "A complacência com que foram acolhidas as Pupilas há de ser descontada em todas as
publicações que eu fizer".
Entretanto,
a doença progredia e a morte aproximava-se. Os dois últimos anos de vida
trazem-lhe a descrença e o desespero, como médico e como doente.
As longas
estadas no Funchal, isolado, por vezes sem notícias, tornam-no sorumbático,
misantropo ("Eu devo passar entre esta gente por um lobo selvagem") e
ele próprio se reconhece atacado de hipocondria (" Tenho aqui sofrido
repetidos acessos da minha já agora habitual e incurável doença — a melancolia ou
mais prosaicamente — a hipocondria"), doença de que se queixa Henrique de
Souselas e que o narrador analisa com clarividência clínica no primeiro
capitulo deste romance.
Saudoso dos
seus hábitos de vida portuense, "daquela vida pachorrenta que eu vivia com
meia dúzia de pessoas intimas e com meia dúzia de livros e folhas de papel",
pouco sociável e indiferente à vida mundana, Júlio Dinis confessa a um amigo: "para
mim só é realmente agradável a convivência com pessoas muito íntimas, com quem
se esteja à vontade e despido de tudo que se pareça com etiqueta. Outra
qualquer fatiga-me. [...] Por isso tenho também saudades dos nossos cavacos,
dos nossos passeios, e dos nossos passatempos...". Também em relação aos
escritores da época, se evidencia o mesmo isolamento e um alto grau de "indiferentismo",
para usar a sua própria expressão.
Em
contrapartida, a tuberculose aumentou-lhe a afetividade e apurou-Ihe a
percepção, dando-lhe uma acuidade sensória! e uma perspicácia invulgares, bem
evidenciadas não só nos diálogos das suas novelas e romances, mas também nas
reflexões que deixou registradas nas suas cartas. Assim, embora a sua vida seja
aparentemente monótona, "morna", é rica de "sensações íntimas
que constituem os diversos episódios desta segunda vida, que os biógrafos
ignoram, mas que a memória do indivíduo que as experimentou retém mais
religiosamente do que os fatos sucedidos e fases variadas da vida social".
Também o afeto pela família, e em especial a ternura para com a sobrinha,
ficaram bem expressos na correspondência, em que sobressai uma página comovente
sobre a morte da tia que lhe serviu de mãe, na qual Júlio Dinis se exprime como
homem e como escritor, pois a pessoa querida que evoca transforma-se
insensivelmente, pelo poder da imaginação do escritor, numa figura típica,
síntese de todas as mulheres que, discretamente e sem aparente sacrifício,
vivem em completa doação aos outros:
Quando não
bastasse uma convivência de muitos anos para me fazer sentir a falta daquela
pobre senhora, a lembrança de que, há justamente um ano, eu a via de dia e de
noite ao lado do meu leito, como incansável enfermeira, mal pensando em que
mais cedo seria vítima do que o doente que desveladamente tratava, essa
lembrança não podia deixar de despertar-me as mais vivas saudades. Há em todas
as famílias umas modestas criaturas que vivem uma existência obscura no
interior das casas e em que nós mal pensamos, quando temos saúde e andamos
distraídos por os nossos projetos, mais ou menos ambiciosos, ou sob o domínio
de paixões, mais ou menos ardentes. São essas, porém, aquelas com quem afinal
nos achamos quando caímos doentes e sentimos que, um por um, nos abandonam aqueles
projetos e se amortece o ardor daquelas paixões.
E as figuras
femininas que criou, sobretudo as "heroínas" dos seus romances,
documentam este ideal de silenciosa abnegação e de inteiro desvelo ao homem que
amam, sobre o qual exercem discretamente a sua autoridade moral, tal como
afaria uma mãe.
Mas o seu
fim aproxima-se. Em Abril de 1871, tem, como médico, a convicção de que está
irremediavelmente perdido. E o seu desespero de doente leva-o a mudar
radicalmente de vida: instala-se num hotel inglês, um dos mais luxuosos do
Funchal, naquela época, e ingere vinho, cerveja, leite, ovos, na ânsia
desesperada de sobreviver. No mês seguinte, verificando que não pode alterar a
marcha da doença, resigna-se a aceitar o inevitável: De mal com o universo
inteiro, como nunca estive, e resolvido a não lutar mais tempo contra a força
das coisas, vou procurar um buraco onde me meta e esperar pelo que Deus quiser
que venha."
E a morte
veio, quando Júlio Dinis, no Porto, em família, trabalhando sempre, revia as
provas do seu último romance Os Fidalgos da Casa Mourisca.
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Fonte:
A Morgadinha dos Canaviais, por: Júlio Diniz. Introdução: Maria Ema Tarracha Ferreira. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses. Lisboa, s/d, págs. 7-15.
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Fonte:
A Morgadinha dos Canaviais, por: Júlio Diniz. Introdução: Maria Ema Tarracha Ferreira. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses. Lisboa, s/d, págs. 7-15.