terça-feira, 19 de julho de 2016

A Vida de Nero

Nero
Agripina havia sido, certamente, mulher nefasta. Os últimos episódios de sua vida não deixam, entretanto, de ser dignos de uma verdadeira matrona da Roma antiga. Não hesitou em opor-se, resolutamente, ao filho, quando este lhe pediu consentimento para devorciar-se de Otávia. Tácito disse que ela chegou até mesmo a oferecer-se a ele.
Ainda que a tivesse relegado numa vila, Nero continuava a temê-la. Contudo, também tinha medo de Popéia, que continuava a recusar-se a ele e a ridicularizar-lhe o amor pela mãe. Popéia achou por fazer Nero acreditar que Agripina conspirava contra ele. Nero, não ousando matá-la, tentou, uma vez, fazê-la morrer envenenada; da segunda vez, fê-la cair no Tibre. Agripina, porém, a tudo estava preparada (talvez tivesse conservado no palácio um servidor de confiança). Na primeira vez, um remédio transformou o envenenamento em simples cólica. Na segunda tentativa, escapou à morte, a nado e, para agarrá-la do outro lado do rio, os guardas de Nero também tiveram de nadar. Podemos inquirir quais teriam sido os pensamentos e as ideias dessa mulher, ao ver-se perseguida pelos sicários de um filho a quem sacrificara toda a vida. Nada demonstrou, contudo, quando a alcançaram. Disse, simplesmente: Golpeai aqui!'', designando o ventre em que Nero fora concebido. Quando lhe levaram o corpo nu da mãe morta, Nero contentou-se em notar: "Vejam só! Jamais eu percebera que tinha uma mãe tão bela!'' Talvez, mesmo, a única coisa que lamentou foi de não aceitá-la, quando ela se lhe havia oferecido.
Como já nos aconteceu, a respeito de Calígula, para explicar semelhantes reações a única hipótese é a loucura.
A História nos garante que Sêneca nada teve a ver com esse crime espantoso. Permite-nos verificar, entretanto, que ele o aceitou, pois permaneceu ao lado do imperador. Teria esperança de detê-lo na ladeira da perdição? Se chegou alguma vez a alimentar tal esperança, deve ter-se desiludido muito depressa. Nero não somente repeliu os conselhos de Sêneca — quando, este se esforçou para fazê-lo compreender que não convinha a um imperador entregar-se a competições no Circo, como cocheiro, e exibir-se no teatro, como tenor — mas também — para bem demonstrar a pouca consideração que, daí por diante, votava ao mestre — ordenou aos senadores que com ele próprio se medissem em disputas de ginástica e em recitais de música, declarando tratar-se da tradição grega e que esta valia mais do que a romana.
Os senadores, em conjunto, talvez não merecessem mais do que isso; alguns dentre eles, contudo, ainda conservavam nina centelha de dignidade. Traséias Peto e Helvídio Prisco falaram abertamente contra o imperador. Os espiões deste os acusaram de conspirar. Nero, que depois do matricídio demonstrara certa clemência, deixou-se arrastar a uma orgia de Mitigue. Como o tesouro — que Cláudio deixara florescente — houvesse definhado com seus desregramentos, obrigou os condenados a legar-lhe as fortunas. Sêneca criticou tais medidas; porém, a verdadeira razão de vir a perder o seu posto foi n do ha,ver criticado as poesias de seu senhor. Foi, talvez, com uru suspiro de alívio que se retirou em sua vila, na Campânia, onde se aplicou, ativamente, a buscar, como escritor, compensação à falência como preceptor. Burro havia morrido alguns meses antes e fora substituído por um celerado: Tigelino.
Nero, sem mais qualquer freio que o retivesse, se precipitava, rapidamente. Quanto ao físico, o retrato que dele nos deixaram nô-lo mostra, aos vinte e cinco anos, com a cabeleira de cabelos louros enrolados em pequenas tranças, olhar embaciado, ventre adiposo sobre pequenas pernas raquíticas. Popéia, então sua mulher, dele fazia o que queria. Não satisfeita de havê-lo obrigado a divorciar-se de Otávia, compeliu-o a exilá-la. Como os romanos reprovassem tal medida e cobrissem a estátua de Otávia de flores, Popéia decidiu fazer com que ele a mandasse assassinar. Otávia não teve uma morte bastante bela: tinha medo, implorava perdão. Não tinha vinte anos e nascera para ser a boa esposa de um marido e não a heroína de uma tragédia.
Ainda dessa vez, Nero não sentiu qualquer remorso porque, nesse ínterim, fizera com que o consagrassem deus e os deuses não são obrigados a fazer exame de consciência. Na ocasião, só tinha uma ideia: mandar construir um novo palácio de ouro, que se tornaria seu próprio templo. Ora, como o projetasse com dimensões gigantescas, não encontrava, no centro superpovoado de Roma, nenhum terreno para construir que lhe conviesse. Já fazia algum tempo ele resmungava que a cidade fora mal construída, que seria preciso refazê-la inteiramente, conforme plano de urbanismo mais racional, quando irrompeu o famoso incêndio do mês de julho do ano 64 da Era Cristã.
Teria sido ele, em verdade, o autor? Talvez não. Nesse momento, encontrava-se em Âncio. Voltou, imediatamente, e gastou, nos socorros, energia de que ninguém o creria capaz. Mas o fato de que a voz do povo o tenha acusado, imediatamente, demonstra que, ainda que não fosse o autor do incêndio, todos o consideravam capaz de tanto. É extremamente estranho que, dessa vez, não tenha reagido às acusações e, nem ao menos, perseguido os autores de panfletos e libelos. Contudo, como verdadeiro chefe de um regime totalitário, diante de um desastre pensou que, antes mesmo de remediá-lo, era mister procurar alguém a quem acusar.
Foi assim, disse Tácito, que pensou numa seita religiosa que se formara, recentemente, em Roma e tomava emprestado o nome de um certo Cristo, judeu condenado à morte por Pôncio Pilatos, no reinado de Tibério.
Nero nada mais sabia a respeito, quando mandou prender todos os que pôde e, depois de processo sumário, fê-los condenar à tortura. Uns foram lançados às feras, os outros se viram crucificados, ainda outros foram embebidos em resina e transformados em tochas. Roma jamais lhes havia dado muita atenção. Após esse martírio em massa, começou a observá-los com certa curiosidade. O imperador, afinal, podia construir uma Roma a seu gosto. Nessa tarefa, que o absorveu inteiramente, demonstrou certa competência. Enquanto, porém, uma nova Roma se erigia, mais bela do que a precedente, Popéia morreu de um mau sucesso. As más línguas declararam, imediatamente, que fora seu esposo quem, no decorrer de uma disputa, lhe dera um pontapé no ventre. É possível. De qualquer modo, foi um golpe terrível para ele, que perdia, simultaneamente, a mulher amada e o herdeiro que esperava. Enquanto, acabrunhado pela dor, perambulava pelas ruas, descobriu um jovem, um certo- Esporo, cujo rosto lembrava estranhamente o da morta. Conduziu-o ao palácio, mandou castrá-lo e o desposou. Os romanos comentaram: ''Ah! se o pai de Nero tivesse feito o mesmo!''
Enquanto dirigia os trabalhos de construção de seu grande palácio, seus espiões descobriram uma conspiração, destinada a pôr no trono Calpúrnio Pisão. Houve as detenções habituais, as torturas habituais, as confissões habituais. No decorrer dessas confissões, foram pronunciados os nomes de diversos intelectuais, dentre os quais Sêneca e Lucano.
Lucano era outro espanhol de Córdoba, primo distante de Sêneca. Chegando a Roma para estudar Direito, cometera o imperdoável erro de ganhar um prêmio de poesia, num concurso em que Nero igualmente se apresentara e fora derrotado. O imperador proibiu que continuasse a escrever. Lucano lhe desobedeceu: escreveu um poema sobre a batalha de Farsália, de retórica medíocre, mas de entonação nitidamente republicana. Sem poder publicá-lo, leu-o, entretanto, em salões aristocráticos, onde teve grande sucesso junto a pessoas que não mais tinham forca para opor-se à tirania, mas aspiravam à liberdade. Teria realmente participado na conspiração em que foi inscrito, ex-oficio, entre os conjurados, por policiais que sabiam da antipatia de Nero por seu rival? No decurso dos interrogatórios, admitiu a culpabilidade e denunciou seus cúmplices, entre os quais, parece, sua mãe e seu primo Sêneca. Condenado, convidou os amigos para uma grande festa, comeu e brindou com eles, abriu as próprias veias e morreu a recitar alguns de seus versos contra o despotismo. Tinha vinte e seis anos.
Foi, talvez, por intermédio dos mensageiros do imperador, que seguiram para a Campânia a fim. de comunicar-lhe a condenação à morte que soube Sêneca haver participado da conjuração de Pisão. Escrevia, então, uma carta a seu amigo Lucílio, que assim terminava: "No que me concerne, vivi o suficiente; tenho a impressão de que recebi minha parte. De momento, espero pela morte." Porém, quando a morte se lhe apresentou, sob os traços daquele mensageiro, objetou que não havia a menor razão para que a mesma lhe fosse imposta, visto que, havia muito tempo, não mais lidava com política e se ocupava, apenas, de cuidar da saúde, da qual esperava brusca queda. Era o pretexto que tivera êxito com Calígula, permitindo-lhe viver até perto dos setenta anos. O embaixador retornou a Roma, mas Nero foi inflexível. Então, com muita calma, Sêneca abraçou sua mulher, Paulina, ditou uma carta de adeus aos romanos, bebeu cicuta, abriu as veias e morreu, de maneira melhor do que aquela pela qual vivera, de acordo com os preceitos estoicos. Paulina tentou imitá-lo, mas o imperador mandou suturar-lhe as veias. Os séculos apagaram as contradições de Bonifica, na qualidade de homem, para não guardar senão as obras do escritor, que têm certa grandeza. Demonstrou como se compõe uni ensaio e como um homem pode conciliar o ensino da renúncia com a prática de todas as comodidades. Semelhante montra não poderia deixar de ter discípulos.
Tendo criado o vácuo a seu redor, Nero partiu para fazer uma excursão à Grécia, onde, dizia ele, entendiam mais de arte do que em Roma. Tomou parte, como jóquei, nas carreiras de Olímpia; levou uma queda, chegou por último, mas nem por isso deixou de ser aclamado como vencedor pelos gregos. Como recompensa, isentou-os do tributo que deviam pagar a Roma. Os gregos compreenderam, proclamaram-no o primeiro em todas as outras competições, organizaram-lhe formidável "claque" nos teatros em que cantava (proibição absoluta de sair durante o espetáculo: houve mulheres que deram à luz no local) e, em troca, receberam a totalidade dos direitos do cidadão romano
Voltando a Roma, Nero outorgou-se a si mesmo um triunfo. Não podendo exibir qualquer presa tomada ao inimigo, exibiu as taças que ganhara, como cantor e como auriga. Tinha a boa fé de pretender que seus compatriotas o admirassem; acreditava, realmente, que era admirado. Também, mais se espantou do que se inquietou quando soube que Júlio Vindex convocava a Gália às firmas contra ele. Seu primeiro cuidado, ao organizar o exército, foi o de prever grande número de carros expressamente construídos para o transporte dos "déeors", que permitissem montar um teatro, porque tinha lá a intenção de, entre uma o outra batalha, continuar a representar como ator, músico, cantor e de fazer-se aplaudir pelos soldados. No curso, porém, dos preparativos, chegou a notícia de que Galba, governador da Espanha, se reunira a Vindex e, com ele, marchava contra Roma.
O Senado, à espreita de uma ocasião, havia muito tempo, começou por obter a neutralidade benevolente dos pretorianos e proclamou imperador o procônsul rebelde. Nero, então, bruscamente, percebeu que estava só. Um oficial da guarda, a quem pediu que o acompanhasse na fuga, lhe respondeu com este verso de Virgílio: '' Será tão difícil morrer?" Para ele, era. Procurou conseguir um pouco de veneno, mas não teve coragem de engoli-lo. Teve a ideia de lançar-se ao Tibre, mas para isso não teve forca. Foi esconder-se na vila de um amigo, na via Salária, a dez quilômetros da cidade. Lá, soube que havia sido condenado a morrer "à maneira antiga", isto é, por fustigação. Aterrorizado, apoderou-se de um punhal, mas começou por experimentar a ponta e achou que "aquilo machucava". Não se decidiu a golpear a garganta senão quando ouviu cascos de cavalos por trás da porte. Sua mão tremeu; foi mister que seu secretário, Epafrodite, a dirigisse para a carótida. "Ah! que artista morre comigo!" (Há outra versão mais conhecida dessa frase: "Ah! que artista o mundo vai perder!" N. do trad.), gemeu em estertor. Os guardas de Galba lhe respeitaram o cadáver, que foi piedosamente inumado por sua velha ama-de-leite e por sua primeira amante, Actéia. O mais estranho é que, por muito tempo, seu túmulo sempre se cobriu de flores frescas e numerosas pessoas, em Roma, continuaram a acreditar que não estava morto, mas iria voltar. Tais ideias, em geral, apenas brotam em terreno fertilizado pelas saudades e pela esperança.
Talvez, mesmo, Nero, em conjunto, tenha sido menos mau do que a História nô-lo descreveu.


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Fonte:
História de Roma, por: Indro Montanelli. Tradução: Luiz de Moura Barbosa. IBRASA. São Paulo, 1961, págs. 274-280.

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