terça-feira, 19 de julho de 2016

Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade

Alguma poesia: Carlos Drummond de Andrade
1. A estreia de Drummond: l (1930), o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), marca o início da segunda fase do Modernismo brasileiro, continuando as experiências da geração anterior, sobretudo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Os aspectos mais evidentes da herança modernista em Alguma Poesia são o versilibrismo, a oralidade, o prosaísmo, a supressão da pontuação convencional, a paródia, o humor, a linguagem telegráfica, a justaposição de frases nominais, a visão prismática do cotidiano: a cidade grande, a província, a fazenda. Todos esses procedimentos estilísticos e essas matérias acham-se sistematizados pelos primeiros modernistas, mas constituem também o modo de ser do livro inaugural de Drummond, cuja formação foi visceralmente marcada pela experiência da vanguarda dos anos 20.
2. A singularidade da poesia drummondiana: as propriedades apresentadas acima aparecem tanto em Drummond quanto em qualquer modernista da primeira fase. Mas o que, especificamente, diferencia Alguma Poesia da poética de 22? Qual é a particularidade desse livro? O que o torna um livro singular? Sua particularidade decorre, sobretudo, de dois traços, ambos suficientes para lhe atribuir personalidade literária, autonomia artística e independência de concepção:
3. Repetição e visualidade: Drummond foi o primeiro poeta brasileiro a sistematizar o uso da tautologia ostensiva: empregou como nenhum outro as reiterações, de modo a produzir o efeito de desrazão ou absurdo, como é o caso dos célebres poemas "No Meio do Caminho", "Quadrilha", "Política Literária", "Sinal de Apito" e "Cidadezinha Qualquer". Além da redundância, Drummond aplica a esses poemas o que se poderia chamar de disposição gráfica expressiva, notada sobretudo nos dois primeiros desta série. Embora a redundância e a disposição gráfica expressiva, de origem cubo-futurista, surjam aqui e ali nos primeiros modernistas, nenhum deles adotou esses procedimentos de maneira tão sistemática e explícita quanto Drummond.
4. A disposição gráfica inovadora: trata-se de um formalismo que vai além do experimento gráfico ou do jogo de significantes entendidos como procedimentos autossuficientes, pois resulta em investigações da existência, com implicações metafísicas e sociais. Excedendo os limites do jogo vocabular, tais poemas mimetizam a incoerência de certas situações. Nesse sentido, a forma (tautologia, grafismo) harmoniza-se com a matéria, faz parte da própria constituição do poema: pertencem à sua ontologia, a seu modo de ser e de significar.
Examine-se o mais famoso dos poemas tautológicos de Drummond, "No Meio do Caminho":


No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Além do título, que remete não só a Bilac, mas também a Dante Alighieri (o primeiro verso da Divina Comédia é "Nel mezzo dei camin de nostra vita"), Drummond imitou o esquema retórico do soneto bilaquiano, isto é, em vez de parodiar o significa- j do, promoveu um tipo especial de paródia: empenhou-se na imitação irônica da estrutura, reproduzindo apenas o quiasmo (repetição invertida) do texto, sem deixar de aludir rapidamente à imagem dos olhos, no centro do poema. Perceber que "No Meio do Caminho" se baseia na reiteração irônica de uma figura da retórica clássica é já captar parte de seu significado, que decorre da intenção de acusar o cansaço da tradição. Além disso, Drummond atribui dimensão alegórica ao vocábulo pedra, que pode ser entendido como símbolo dos obstáculos que a gente encontra na vida, conforme sugeriu António Cândido.
5. Elogio da experiência: em Alguma Poesia, não há texto que parta de uma abstração, de um sentimento geral, de uma sensação difusa, de um desejo vago ou de uma pretensão conceituai. O poeta lida com coisas e situações concretas, extraídas da observação irônica dos fatos. Trata-se de uma espécie de poética do empirismo. Todavia, pouquíssimas vezes os textos se esgotam no particular. Em quase todos, há uma conclusão generalizante, que resulta num conceito ou numa síntese conclusiva sobre a vida.
Observe-se o poema "Lagoa". Nele, o poeta afirma não se importar com o mar, porque nunca o viu.. Preocupa-se com a lagoa, que faz parte de sua experiência. Por isso, a descreve com as tintas. Em rigor, sensuais (quase femininas), quando o sol evidencia suas cores:
Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é bonito,
Não sei se ele é bravo.
O mar não me importa.

Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
 A lagoa é grande
E calma também.


Na chuva de cores

da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa...

Qual será o sentido dos vocábulos mar e lagoa no poema? Como em Minas (tópica mitificada na poesia drurnmondiana) não há mar, o vocábulo no poema representa uma abstração, um conceito longínquo, assim como a lagoa significa a experiência, o dado vivenciado. É desse último que se faz o poema, o qual resulta numa generalidade filosófica abstraída do concreto. Em última análise, esse poema glosa o princípio de que, para falar do mundo, deve-se falar da própria terra. É assim com Alguma Poesia. Mário e Oswald preocupam-se com o Brasil. Drummond limita-se a Minas. No poema "Coração Numeroso", estando no Rio de Janeiro, ao longo do mar, a persona Lírica afirma que a promessa do oceano se tornara calor sufocante, logo atenuado por um vento que vinha de Minas. Assim a segunda grande característica tipicamente drurnmondiana em Alguma Poesia é o culto do particular, uma espécie de respeito à autenticidade da experiência.
6. "Lanterna Mágica": na série "Lanterna Mágica", o poeta compõe pequenos mosaicos sobre algumas cidades de seu convívio (Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João Del-Rei, Nova Friburgo, Rio de Janeiro). Ao abordar a Bahia, escreve simplesmente:
É preciso fazer um poema sobre a Bahia...
Mas eu nunca fui lá.

No conjunto dos textos agrupados sob esse título, a unidade, a última das imagens que brilham na memória como os raios de uma lanterna mágica (antigo instrumento de projeção), funciona também como um elogio à experiência: isto é, a poesia deve partir da relação com as coisas, com os lugares e com as pessoas, jamais de sentimentos indefinidos.


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Fonte:
Orientação de Estudo: Português - Fuvest 99. Anglo Vestibulares. São Paulo, 1999, págs.  61-63.

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