Alguma poesia: Carlos Drummond de Andrade
1. A estreia de Drummond: l (1930), o primeiro livro de Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), marca o início da segunda fase do Modernismo
brasileiro, continuando as experiências da geração anterior, sobretudo de Mário
de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Os aspectos mais evidentes da
herança modernista em Alguma Poesia
são o versilibrismo, a oralidade, o prosaísmo, a supressão da pontuação
convencional, a paródia, o humor, a linguagem telegráfica, a justaposição de
frases nominais, a visão prismática do cotidiano: a cidade grande, a província,
a fazenda. Todos esses procedimentos estilísticos e essas matérias acham-se
sistematizados pelos primeiros modernistas, mas constituem também o modo de ser
do livro inaugural de Drummond, cuja formação foi visceralmente marcada pela
experiência da vanguarda dos anos 20.
2. A singularidade da poesia drummondiana:
as propriedades apresentadas acima aparecem tanto em Drummond quanto em
qualquer modernista da primeira fase. Mas o que, especificamente, diferencia Alguma Poesia da poética de 22? Qual é a
particularidade desse livro? O que o torna um livro singular? Sua
particularidade decorre, sobretudo, de dois traços, ambos suficientes para lhe
atribuir personalidade literária, autonomia artística e independência de
concepção:
3. Repetição e visualidade: Drummond foi o
primeiro poeta brasileiro a sistematizar o uso da tautologia ostensiva:
empregou como nenhum outro as reiterações, de modo a produzir o efeito de
desrazão ou absurdo, como é o caso dos célebres poemas "No Meio do
Caminho", "Quadrilha", "Política Literária",
"Sinal de Apito" e "Cidadezinha Qualquer". Além da
redundância, Drummond aplica a esses poemas o que se poderia chamar de
disposição gráfica expressiva, notada sobretudo nos dois primeiros desta série.
Embora a redundância e a disposição gráfica expressiva, de origem
cubo-futurista, surjam aqui e ali nos primeiros modernistas, nenhum deles
adotou esses procedimentos de maneira tão sistemática e explícita quanto
Drummond.
4. A disposição gráfica inovadora:
trata-se de um formalismo que vai além do experimento gráfico ou do jogo de
significantes entendidos como procedimentos autossuficientes, pois resulta em
investigações da existência, com implicações metafísicas e sociais. Excedendo
os limites do jogo vocabular, tais poemas mimetizam a incoerência de certas
situações. Nesse sentido, a forma (tautologia, grafismo) harmoniza-se com a
matéria, faz parte da própria constituição do poema: pertencem à sua ontologia,
a seu modo de ser e de significar.
Examine-se o
mais famoso dos poemas tautológicos de Drummond, "No Meio do
Caminho":
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei
desse acontecimento
na vida de minhas
retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei
que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no
meio do caminho
no meio do caminho
tinha uma pedra.
Além do
título, que remete não só a Bilac, mas também a Dante Alighieri (o primeiro
verso da Divina Comédia é "Nel
mezzo dei camin de nostra vita"), Drummond imitou o esquema retórico do
soneto bilaquiano, isto é, em vez de parodiar o significa- j do, promoveu um
tipo especial de paródia: empenhou-se na imitação irônica da estrutura,
reproduzindo apenas o quiasmo (repetição invertida) do texto, sem deixar de
aludir rapidamente à imagem dos olhos, no centro do poema. Perceber que
"No Meio do Caminho" se baseia na reiteração irônica de uma figura da
retórica clássica é já captar parte de seu significado, que decorre da intenção
de acusar o cansaço da tradição. Além disso, Drummond atribui dimensão
alegórica ao vocábulo pedra, que pode
ser entendido como símbolo dos obstáculos que a gente encontra na vida,
conforme sugeriu António Cândido.
5. Elogio da
experiência: em Alguma Poesia, não há
texto que parta de uma abstração, de um sentimento geral, de uma sensação
difusa, de um desejo vago ou de uma pretensão conceituai. O poeta lida com
coisas e situações concretas, extraídas da observação irônica dos fatos. Trata-se
de uma espécie de poética do empirismo. Todavia, pouquíssimas vezes os textos
se esgotam no particular. Em quase todos, há uma conclusão generalizante, que
resulta num conceito ou numa síntese conclusiva sobre a vida.
Observe-se o
poema "Lagoa". Nele, o poeta afirma não se importar com o mar, porque
nunca o viu.. Preocupa-se com a lagoa, que faz parte de sua experiência. Por
isso, a descreve com as tintas. Em rigor, sensuais (quase femininas), quando o
sol evidencia suas cores:
Eu não vi o mar.
Não sei se o mar é
bonito,
Não sei se ele é
bravo.
O mar não me importa.
Eu vi a lagoa.
A lagoa, sim.
A lagoa é grande
E calma também.
Na chuva de cores
da tarde que explode
a lagoa brilha
a lagoa se pinta
de todas as cores.
Eu não vi o mar.
Eu vi a lagoa...
Qual será o sentido dos vocábulos mar e lagoa no poema? Como em Minas (tópica mitificada na poesia drurnmondiana) não há mar, o vocábulo no poema representa uma abstração, um conceito longínquo, assim como a lagoa significa a experiência, o dado vivenciado. É desse último que se faz o poema, o qual resulta numa generalidade filosófica abstraída do concreto. Em última análise, esse poema glosa o princípio de que, para falar do mundo, deve-se falar da própria terra. É assim com Alguma Poesia. Mário e Oswald preocupam-se com o Brasil. Drummond limita-se a Minas. No poema "Coração Numeroso", estando no Rio de Janeiro, ao longo do mar, a persona Lírica afirma que a promessa do oceano se tornara calor sufocante, logo atenuado por um vento que vinha de Minas. Assim a segunda grande característica tipicamente drurnmondiana em Alguma Poesia é o culto do particular, uma espécie de respeito à autenticidade da experiência.
6. "Lanterna Mágica": na série
"Lanterna Mágica", o poeta compõe pequenos mosaicos sobre algumas
cidades de seu convívio (Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João
Del-Rei, Nova Friburgo, Rio de Janeiro). Ao abordar a Bahia, escreve
simplesmente:
É preciso fazer um
poema sobre a Bahia...
Mas eu nunca fui lá.
No conjunto dos textos agrupados sob esse título, a unidade, a última das imagens que brilham na memória como os raios de uma lanterna mágica (antigo instrumento de projeção), funciona também como um elogio à experiência: isto é, a poesia deve partir da relação com as coisas, com os lugares e com as pessoas, jamais de sentimentos indefinidos.
---
Fonte:
Orientação de Estudo: Português - Fuvest 99. Anglo Vestibulares. São Paulo, 1999, págs. 61-63.
Nenhum comentário:
Postar um comentário