sexta-feira, 15 de julho de 2016

Leitura ao jeito de cada leitor

Leitura ao jeito de cada leitor
E o pulo do gato? Como disse, esse não se ensina mesmo. Mortimer Adler e C. Van Doren, apesar de terem escrito um tratado sobre a arte de ler, advertem que "as regras para adormecer lendo são mais fáceis de seguir do que as regras para ficar acordado enquanto se lê... conseguir ficar acordado, ou não, depende em grande parte da meta visada na leitura".
A esta altura espero tenha deixado claro que. para compreendê-la e para a leitura se efetivar, deve preencher uma lacuna em nossa vida, precisa vir ao encontro de uma necessidade, de um c de expansão sensorial, emocional ou racional, de uma vontade de conhecer mais. Esses são seus pré-requisitos. A eles se acrescentam os estímulo e os percalços do mundo exterior, suas exigências e recompensas. E, se pensarmos especialmente na leitura a nível racional, há que considerar o esforço para realizá-la. O homem é um ser pensante por natureza, mas sua capacidade de raciocínio precisa de tanto treinamento quanto necessita seu físico para, por exemplo, tornar-se um atleta. Nada, enfim, é gratuito; sequer o prazer. Este, aliás, nasce de um anseio de realização plena, portanto pressupõe uma meta e um empenho para atingi-la.
O treinamento para a leitura efetiva implica aprendermos e desenvolvermos determinadas técnicas. Dos manuais didáticos aos estudos aprofundados sobre o ato de ler, todos oferecem orientações ora menos ora mais objetivas e eficientes. Todavia, cada leitor tem que descobrir, criar uma técnica própria para aprimorar seu desempenho. Auxiliam-no, entre os fatores imediatos e externos, desde o ambiente e o tempo disponível até o material de apoio: lápis, papel em branco, bombons, almofadas, escrivaninha ou poltrona, alto-falantes, fones — aí entra toda a parafernália de objetos que se fazem necessários ou que fazem parte do mise-en-scène de cada leitor.
Se isso tudo pode influenciar criando uma atmosfera propícia, sabidamente e com raras exceções é dispensável. Fundamental mesmo é a continuidade da leitura, o interesse em realizá-la. Quantos leitores já deixaram passar a sua parada porque, no ônibus superlotado, barulhento sacolejante, estavam totalmente imersos no seu radinho de pilha, na fotonovela, no romance; num artigo científico ou numa fotografia; na rememoração de um filme, de uma peca teatral, de uma conversa?
Há quem só consiga ler um livro de ensaios, por exemplo, sentado quieto em seu canto, tomando notas, assinalando passagens do texto; outros o fazem deitados ou mesmo de pé em meio à maior balbúrdia. Há os que se sentem "no cinema" apenas quando acomodados numa das dez primeiras fileiras da sala de exibição, outros vão para a última. Muitos "curtem o som" de modo a tudo ao redor estremecer com o volume do alto-falante, enquanto outros só conseguem apreciar música J em surdina. Enfim, cada um precisa buscar o " seu jeito de ler e aprimorá-lo para a leitura se tornar cada vez mais gratificante.
A releitura traz muitos benefícios, oferece subsídios consideráveis, principalmente a nível racional. Pode apontar novas direções de modo a esclarecer dúvidas, evidenciar aspectos antes despercebidos ou subestimados, apurar a consciência crítica acerca do texto, propiciar nonos elementos de comparação.
Uma das razões pelas quais às vezes nos sentimos desanimados diante de um texto considerado "difícil" está no fato de supormos ser em tocar de deficiência nossa, de incapacidade para compreendê-lo. Isso em geral é um equívoco. Por que desistirmos de uma leitura racional se temos interesse e necessidade de realizá-la? Tampouco adianta ficar relendo mecanicamente; o contrário, é pior. Para diminuir a tensão, amenizar as dificuldades, importa muito não considerar o texto como uma ameaça ou algo inatingível. Melhor relaxar, não se preocupar em decifrá-lo descobrir o sentido, mas cercá-lo ao modo da gente, pelo ângulo que mais atraia, mesmo parecendo algo secundário do texto.
Tratando-se de um livro, retomá-lo folheando ao acaso e lendo uma ou outra passagem, sem sentirmos obrigados a entendê-la, mas procurando apreciá-la, estabelecendo relações com outras passagens lidas, com leituras já realizadas, quaisquer que tenham sido os meios de expressão dos textos ou os níveis privilegiados. Às vezes o som das palavras de um poema vem-nos indicar o caminho para começar a pensá-lo; a descrição de uma cena, de uma paisagem, de um acontecimento talvez remeta a uma experiência vivida e facilite a compreensão do texto; um assunto desconhecido pode, num determinado momento, trazer referências a algo já lido e, por ai, começamos a entendê-lo.
Enfim, é fundamental não ter preconceito, nem receio de carrear para a leitura quaisquer vivências anteriores; procurar questionar o texto — quem sabe ele apresente falhas, seja confuso, inconsequente e não há por que simplesmente aceitá-lo.
Daí a importância de discutir a seu respeito, de buscar esclarecimentos com outros leitores ou em outros textos.
A leitura, mais cedo ou mais tarde, sempre acontece, desde que se queira realmente ler, Acima de tudo, precisamos ter presente que se não conseguimos, de vez, dar o pulo do gato — bem, que se continue andando ainda um pouco, pois não é pecado caminhar.


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Fonte:
O que é Leitura (Coleção Primeiros Passos), por: Maria Helena Martins. Editora Brasiliense, 11ª Edição. São Paulo, 1989, págs. 82-87.

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