quarta-feira, 20 de julho de 2016

Rochedos de São Paulo

Rochedos de São Paulo
Ao atravessarmos o Atlântico, na manhã de 16 de fevereiro aproamos para o vento, parando a pequena distância dos rochedos de São Paulo. Este agrupamento de rochedos se acha situado entre a latitude 0°58' norte e longitude 29° 15' oeste. A distância que os separa do continente americano é de quinhentas e quarenta milhas, e da ilha Fernando de Noronha, trezentas e cinquenta milhas. O ponto mais elevado alcança somente a cerca de quinze metros sobre o nível do mar, e todo o perímetro não chega a mil e duzentos metros. Esta pequena ponta se ergue abruptamente das profundezas do oceano. Sua constituição mineralógica não é simples, o rochedo apresentando uma natureza quartzosa em alguns lugares, e feldspática em outros, inclusive um delgado veio de serpentina. É notável o fato de que todas as inúmeras ilhotas encontradas longe do continente nos oceanos Pacífico, Índico e Atlântico, excetuando-se as Sechelles e esta pequena ponta de rochedo, são, creio, formadas ou de coral ou de matéria eruptiva. A natureza vulcânica destas ilhas oceânicas é evidentemente uma extensão da lei, e efeito das mesmas causas, quer mecânicas ou químicas, segundo a qual 5 grande maioria dos vulcões em atividade estaria situada próximo ao litoral ou em ilhas no meio do oceano.
Vistos a distância, os rochedos de São Paulo são de um branco brilhante. Isto é devido, em parte, ao excremento de uma infinita multidão de gaivotas, e em parte, a uma camada dura e polida de certa substância com lustre de pérolas, que adere intimamente à superfície dos rochedos. Esta substância apresenta sob a lente uma consistência de numerosas camadas excessivamente delgadas sobrepostas numa espessura total de cerca de dois milímetros e meio. Muita matéria animal se acha ali contida, e sua origem sem dúvida se depreende da ação da chuva ou da pulverização das ondas sobre o esterco das aves. Sob pequenas massas de guano, encontrei em Ascensión e nos Abrolhos certos corpos com ramificações estalactíticas, a toda aparência formados da mesma maneira que a tênue película sobre estes rochedos. Tal era a semelhança entre o aspecto geral destes corpos ramificados e o de certas nulíparas (uma família de plantas marinhas calcárias) que, quando há pouco examinava apressadamente minha coleção, não percebi a diferença. As extremidades globulares das ramificações são, de uma contextura assemelhando-se à da pérola, como o esmalte dentário, e de tal grau de dureza que podem riscar o vidro. Poderei mencionar aqui que, numa parte da costa de Ascensión, onde se encontram vastas acumulações de areia conchífera, a água do mar deposita sobre os rochedos cobertos pela preamar uma incrustação, fazendo lembrar certas plantas criptogâmicas (Marchantiae), que se veem ocasionalmente sobre as paredes úmidas. A superfície da fronde possui um lustre magnífico; as partes formadas à luz são de cor preta ao passo que as que se fizeram à sombra são apenas cinzentas. Mostrei espécimes desta incrustação a vários geólogos e todos foram de opinião que eram de origem vulcânica ou ígnea! A dureza e a translucidez — o polimento, igual ao das mais belas conchas de Oliva —, o mau cheiro que exala e a perda de cor sob o maçarico, tudo revela uma íntima semelhança com as espécies de conchas vivas. Nas conchas, como se sabe, as partes habitualmente cobertas pelo manto do animal são mais pálidas que as porções completamente expostas à luz, tal qual sucede no caso desta incrustação. Quando nos lembramos de que o cálcio, quer na forma de fosfato quer na de carbonato, entra na composição das partes duras de todos os animais vivos, como os ossos e as conchas, é fato fisiológico interessante acharem-se substâncias mais duras que o esmalte dentário, e superfícies coloridas e lustrosas como as das conchas frescas, que, por processos inorgânicos, foram reconstituídas de matéria orgânica morta — e, ainda mais, numa imitação irônica de formas vegetais rudimentares.
Nos rochedos de São Paulo somente encontramos duas qualidades de aves — uma espécie de pelicano e de gaivota, ambos tão mansos e estúpidos, talvez em virtude de não se acharem acostumados a ver visitantes, que eu poderia ter abatido quantos quisesse com meu martelo geológico. A fêmea do pelicano deitava os ovos sobre a rocha nua, mas a gaivota construía um ninho muito simples com algas. Ao lado de muitos destes ninhos podia ver-se um pequeno peixe-voador, ali deixado, suponho eu, pelo macho, a fim de servir às necessidades da companheira. Era muito divertido observar a rapidez com que um caranguejo (Graspus), morador das fendas dos rochedos, subtraía o peixe do lado do ninho, quando espantávamos as aves. Sir W. Symonds, uma das poucas pessoas que desembarcaram aqui, disse-me ter visto esses caranguejos chegarem mesmo a arrastar do ninho os filhotes e devorá-los. Nem uma simples planta, um líquen sequer, cresce nesta ilhota, o que não impede, todavia, que seja habitada por vários insetos e aranhas. A lista que segue, creio, completará a fauna terrestre: uma mosca (Olfersia), vivendo à custa do pelicano, e um carrapato, que deve ter vindo aqui como parasito das aves; uma pequena mariposa parda, pertencendo a um gênero que se alimenta de penas; uma barata (Quedius) e um piolho, debaixo do esterco; finalmente, numerosas aranhas que, segundo penso, fazem presa sobre estes pequenos sequazes das aves marinhas. Dar a descrição, já tão repetida, da majestosa palmeira e das outras plantas tropicais, em seguida a descrição das aves, e, por fim, a do homem, que toma posse das ilhas de coral, logo que estas se formam no Pacífico, não será esse, talvez, o modo correio de proceder, pois receio que a poesia desta história poderá perder seu encanto pelo fato de saber que os primeiros habitantes de uma terra oceânica, recém-formada, foram aranhas, insetos e parasites coprófagos.
O menor rochedo nos mares tropicais, que der base para o crescimento de inúmeras variedades de algas e animais compostos, servirá igualmente de esteio ao desenvolvimento de grande número de peixes. Constante era a luta entre os tubarões e os marinheiros nos botes, para decidir sobre a posse dos peixes apanhados no anzol. Ouvi dizer que um rochedo perto das Bermudas, muitas milhas no alto-mar, e a uma profundidade considerável, deveu sua descoberta à circunstância de ter sido notada a presença de peixes nas suas imediações.


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Fonte:
Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo, por: Charles Darwin. Tradução: J. Carvalho. Abril Cultural. São Paulo, s/d, págs. 3-4.

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