quarta-feira, 20 de julho de 2016

A Revolta de Beckman

Revolta de Beckman
1. Foi seguramente o regime colonial um dos fatores preponderantes na formação do nosso espírito de povo. Principalmente depois das guerras holandesas começa esse espírito a manifestar-se com uma frequência e uma força que estavam dizendo bem claro como tinha ele de orientar toda a nossa história.
A primeira dessas manifestações é essa de que nos vamos ocupar, e que se dá no Maranhão antes do fim do século XVII.
Desde antes da intrusão flamenga, já se haviam os colonos acostumado a rebater agressões de piratas. Aliás, por meados do primeiro século, tinham expelido da Guanabara usurpadores franceses. Mais tarde ainda os tocaram do Maranhão.
Não houve uma investida depredadora, uma ameaça de conquista, um ataque à soberania do domínio, contra a qual não fossem as próprias populações as primeiras a insurgir-se, e a levantar o seu protesto.
Depois de haver defendido o litoral, começou o colono a invadir e ocupar o interior para além da linha de Tordesilhas, arredando assim as raias do domínio, ampliando o território, fazendo-o muito maior do que o tinham feito os tratados.
Nem seria preciso mais nada para explicar como naturalmente se ia gerando na alma do povo em formação um forte sentimento do seu valor, e logo uma nova consciência jurídica, em contraste com as tradições da mãe-pátria.
E como para fazer ainda mais intenso, profundo e poderoso esse sentimento que teria de dominar toda a vida da sociedade nova que se constitui sobrevêm a circunstância de se haver aqui, em dois séculos, criado a riqueza, tornando-se deste modo a colônia em verdadeiro empório e socorro do velho reino depauperado. Sem o Brasil opulento do século XVIII, Portugal não teria subsistido: o esforço que fizera na construção da sua epopeia marítima tinha-lhe exaurido a vitalidade, ao ponto de fazê-lo incapaz de por si mesmo resistir à competição em que teve de entrar para manter o seu vasto domínio.
2. Estes sucessos do Maranhão assinalam uma das crises em que, de agora por diante, se vão condensar ímpetos que andavam latentes em toda a colônia, e nos quais, melhor acentuado, se apanha o novo espírito que se vinha gerando.
Em São Luís as desordens, as lutas e os escândalos, em que viveu a terra desde que se expulsaram os franceses, foram tomando um caráter de violência crescente até as vésperas deste que foi o motim de mais vulto entre os que vinham trazendo a capitania em estado quase contínuo de sedições e tumultos.
Para mais agravar a situação na capitania, tinham os governadores do Estado transferido para Belém a sede do governo, ficando em São Luís apenas o capitão-mor como autoridade superior.
Em 1680 publicava-se uma lei abolindo a escravidão do gentio, e confiando aos jesuítas toda jurisdição espiritual e temporal nas aldeias. Estas medidas irritaram profundamente os ânimos; e mais quando se viu como os executores cuidavam de aquinhoar-se fartamente na distribuição dos tais índios "livres" e assalariados.
Coincidindo mais ou menos com estes vexames, concedera o governo a uma empresa de Lisboa o "privilégio exclusivo do comércio de todo o Estado por espaço de vinte anos". Por essa concessão, era o comércio "geral e absolutamente proibido a todos os vassalos". Em relação aos índios, o caso tornava-se agora curioso: esquecida de que se abolira a escravidão, autorizava a corte à tal empresa "empregar no seu serviço os casais de que precisasse... e a fazer no sertão quantas entradas quisesse"...
É ocioso dizer que os monopolistas agravaram ainda o que tinha de mais odioso o privilégio; e ao clamor geral que se foi levantando rebatia o Governador (Francisco de Sá e Menezes) com atos de força e de escandalosa proteção à empresa, mesmo porque era nela particularmente interessado.
Outras causas concorrem ainda para fazer mais aflitivas as condições da vida, principalmente em São Luís. Diz João Francisco Lisboa que "dois anos de esterilidade e de fome precederam à sublevação".
Não tardou que dos agravos e queixas se passasse a conspirar.
3. Os conjurados contaram logo com o apoio dos frades carmelitas e franciscanos. Segundo o mesmo Lisboa, celebravam até os seus "concilíabulos no convento dos Capuchos"; e que "todos os dias amanheciam pasquins e trovas pelas esquinas... convidando o povo à revolta; e do alto do púlpito, muitos meses havia que os frades não faziam outra coisa nos seus sermões". "Frade houve que chegou a bradar publicamente em uma praça — que lhe dessem quatro homens resolutos que ele, em poucas horas, se obrigava a livrar o Maranhão do cativeiro".
Entre os chefes da conspiração, a figura mais notável era Manuel Beckman (ou Bequimão, como todos lhe chamavam, e ele mesmo escrevia, aportuguesando o nome).
Tendo tudo combinado, aprazaram os chefes a última conferência para a noite do dia 23 de fevereiro de 1684. Deviam nessa noite começar às cerimônias de uma festividade, religiosa que no dia seguinte se celebraria. Resolveram por isso os revoltosos aproveitar o ensejo daquele concurso de povo para os tumultos preparados.
Efetuou-se a reunião alta noite no mesmo convento de Santo António, naqueles tempos ainda fora da cidade. Ali expôs Manuel Beckman os fins do ajuntamento, e os intuitos da revolução. Ouvindo-lhe a palavra exaltada e segura, apresentaram alguns certas ponderações sobre a gravidade do passo que se ia dar. "Assomado e impetuoso de seu natural, e como surpreendido por uma oposição intempestiva, rebateu Beckman aquelas objeções, cheio de sobrançaria e de despeito. Retrucaram-lhe os outros no mesmo tom, e dentro em pouco estava travada uma confusa e renhida disputa".
Ia dissolver-se a reunião, quando um ilhéu desabrido (Manuel Serrão de Castro) arranca a espada e grita furioso que não era mais possível recuar daquele propósito, e que o traidor que se recusasse a avançar, ali mesmo, naquele instante, acabaria.
Este gesto decidiu de tudo. Em grande entusiasmo, deixam o convento e dirigem-se para a cidade, pondo ali a população em alvoroço. Tomam logo o corpo da guarda, e vão à casa do capitão-mor (Baltasar Fernandes) e declaram-no deposto. Dali marcham para o Colégio dos Jesuítas, e intimam os padres da resolução que se tomara, "declarando-os presos e incomunicáveis com guardas à vista".
Em seguida apoderaram-se da casa e dos armazéns da Companhia do Comércio do Estado do Maranhão.
"Ao amanhecer estava concluído todo aquele trabalho com a maior fortuna; e raro era o habitante que se não achasse em armas, a maior parte de boa vontade, bem poucos constrangidos".
4. Era preciso instalar logo a nova ordem. Convoca-se para isso uma Junta Geral. Essa Junta aprova por aclamação o que se havia feito (deposição do capitão-mor, e também do Governador, que se achava no Pará, abolição do estanco, e expulsão definitiva dos padres). Ato contínuo, organiza-se um novo governo, que se compôs dos oficiais da Câmara e três adjuntos, sob a superintendência suprema de dois procuradores do povo.
Para estes cargos foram aclamados Manuel Beckman e Eugênio Ribeiro Maranhão; e para o de adjuntos, Tomás Beckman, João de Sousa Castro e Manuel Coutinho de Freitas.
Este governo põe-se imediatamente em ação. Reforma a infantaria de linha, dando-lhe novos capitães. Organiza uma guarda cívica. Estabelece postos de polícia, e guardas em diversos sítios.
Substitui funcionários que não inspiravam confiança. Manda confiscar os armazéns da empresa abolida; e notifica os padres de que vão ser expulsos.
E acabou o dia como sempre — com Te Deum solene —, ao som de vivas, sinos e salvas de fuzilaria, "e no meio de congratulações gerais, acreditando todos que tinham realmente assegurado para sempre a felicidade da república e o bem de todos".
Reservara-se Beckman o papel de guia e condutor do povo maranhense. Era uma espécie de tribuno chefe, aconselhando, reprimindo, contendo pela palavra. Frequentemente falava às turbas, e das próprias janelas do senado, provocando a sua eloquência ruidosos aplausos. Pode-se dizer que ali a autoridade suprema era ele, sendo simples executoras as outras.
Mas, dentro logo dos primeiros dias, cuidou Beckman de estender a revolução não só na capitania como em todo o Estado. E agora é que vai ele entrar na fase dos desenganos. Em toda parte aplaudia-se a abolição do estanco e mesmo a expulsão dos padres; mas ninguém queria comprometer-se... O próprio Beckman voltou da vizinha Tapuitapera (hoje Alcântara) sem nada haver conseguido. A Câmara de Belém "estranhou as demasias a que se arrojara o povo de São Luís"... Conquanto gostasse muito do que se estava ali fazendo, aproveitou o ensejo de renovar protestos de fidelidade ao Governador... deixando assim uma porta aberta para entrar na revolução se a mesma vingasse...
O estilo era mesmo esse: todo mundo queria; mas dizer alto que se quer é mais sério, e não se faz sem muita ponderação.
5. De volta de Tapuitapera, vinha Beckman encontrar em São Luís uns sintomas que lhe deram a medida dos perigos a que se expunha a nova ordem de coisas se ali permanecessem os jesuítas encarcerados e deliberou embarcar imediatamente. Fez logo correr um bando ordenando que "todo os moradores estivessem presentes" no dia do embarque.
E com efeito, no dia 26 de março (domingo de Ramos), depois de ouvirem missa no Colégio saíram os padres (eram 26 ou 27) em préstito para a praia, e ali embarcaram em dois navios com destino à Bahia. Dizem as crônicas que a multidão chegou a comover-se, e que a cidade ficou mesmo consternada do espetáculo. A viagem dos padres foi muito acidentada e penosa; e alguns voltaram indo desembarcar no Pará. Os outros foram bem recebidos na Bahia, e ali ainda tiveram a fortuna de encontrar o grande velho António Vieira, que muito os confortou daquela desgraça, que ele próprio já havia também sofrido.
Com a partida dos padres dir-se-ia que São Luís caíra num súbito esmorecimento. Não era decerto a falta dos deportados o que se sentia: era a desilusão do sonho passado. Começa-se a pensar nas consequências de tudo aquilo. Acabado o entusiasmo dos primeiros dias, as almas estão fatigadas. Ninguém sabe agora que rumo se há de dar dali em diante ao que se fizera. O próprio Beckman afeta coragem; mas todos veem que ele procura inspirar aos outros "uma confiança" que ele mesmo já vai perdendo.
De dia para dia a situação se agrava. Já não se disfarçam em São Luís os moderados e prudentes, e logo nem mesmo os arrependidos.
O Governador do Estado, lá mesmo de Belém, tenta, por bons modos, fazer voltar à ordem legal a gente do Maranhão. Expediu para São Luís alguns emissários; tentou mesmo subornar ao chefe da revolução. Tudo, porém, inutilmente.
Já se estava por meados de outubro (com cerca de oito meses, portanto, de domínio revolucionário) quando se lembraram os chefes de mandar Tomás Beckman à corte como procurador do povo do Maranhão. Era uma prova formal de que se anseia já por entrar na ordem, saindo das incertezas da situação criada. O que se quer, com a embaixada à corte, é evitar escarmentos.
6. Tomás Beckman vai suscitar grandes sustos em Lisboa; pois lá se exageravam muito as proporções do que se dava em São Luís. Quando se soube, porém, que o motim já estava em declínio, reergueu-se nos seus melindres a majestade intangível, e todo mundo engrossou a voz outra vez. Foi logo preso o emissário, com o qual se estava até aí em arranjos, e devolvido às justiças do Maranhão; e como única providência, nomeou-se Gomes Freire de Andrada para restabelecer a ordem e castigar os rebeldes.    ,
Enquanto isso, cresciam em São Luís as dificuldades com que luta o governo revolucionário. O próprio Manuel Beckman fica indeciso no meio do geral desânimo e das defecções que lhe fazem em torno um vazio de terror. Entregou-se o comando da guarnição ao velho sargento-mor Miguel Belo e desde então pode-se dizer que Beckman não foi mais o chefe supremo na capitania rebelada.
No dia 15 de maio (1685) fundeava junto à barra o navio que trazia Gomes Freire. Foram logo à terra dois sujeitos a sondar os ânimos. Teve então, o general, certeza de que na cidade se anseia pela ordem; e o navio entrou no porto.
O próprio Beckman, falando na salvação de todos, consegue que a Câmara mande a bordo uma deputação a apresentar as boas vindas ao Governador, e a pedir-lhe que retardasse o seu desembarque até que se lhe preparasse uma recepção condigna.
Soube, no entanto, Gomes Freire que "traçavam negar-lhe a posse caso não viesse munido do perdão geral"; e deliberou saltar imediatamente. Foi recebido com as devidas honras, e até com sinais de alegria e entusiasmo.
Os comprometidos na rebelião cuidaram de fugir. Só Manuel Beckman não saiu da cidade, e até "continuou por muitos dias a andar livremente em público".
Parece, com efeito, que Gomes Freire viera com o propósito de tudo esquecer se a sua autoridade não encontrasse resistência.
Mas aquela atitude ostentosa do antigo chefe da revolta ainda agravada peia temeridade com que tentou libertar o irmão, que chegara preso da Europa, forçou o Governador a mudar de disposições. Ordenou a prisão dos chefes, e principalmente de Beckman, pondo-lhe a prêmio  a pessoa.
7. "Obrigado a sair da cidade, vagou desde então, errante e fugitivo, pela ilha, repelido de uns, esquivado de outros, e mal recebido por toda parte; até que uma viúva, condoída da sua desgraça, lhe forneceu uma canoa bem remada, da qual se transportou ao seu engenho do Mearim" (a umas 60 léguas de São Luís).
Naquele asilo, tentado dos prêmios oferecidos pelo Governador, vai surpreendê-lo e traí-lo um Lázaro de Melo, que, segundo uns, era afilhado e pupilo de Beckman. Em todo caso, era seu íntimo amigo, recebido sempre por ele como pessoa da família.
Ali, enquanto Lázaro se entretinha amistosamente com o seu antigo benfeitor, os da escolta o subjugavam. Meteram-no depressa na canoa e carregaram-no de grilhões, levando-o para São Luís.
O processo foi sumaríssimo. Dizem que Gomes Freire assinou a sentença muito compungido.
Chegou o dia da lúgubre cerimônia (2 de novembro de 1685). "Levantou-se a forca na praia chamada então do Armazém, hoje da Trindade; e ali, pela manhã foram executados Jorge de Sampaio e Manuel Beckman".
No momento supremo, como alma cristã, pediu, do alto do patíbulo, perdão a todos e declarou que pelo povo do Maranhão morria contente. "Grito derradeiro e sublime — diz Lisboa — de um coração altivo e generoso, admirável sobretudo naqueles tempos, em que as revoluções, simples fato material, não constituíam doutrina nem direito, e em que os condenados, ordinariamente humilhados diante da justiça, morriam protestando seu arrependimento, e beijando a mão que os punia".
Acaba assim (com este grande lance de alma, que deu à história colonial um dos seus mais nobres vultos) aquela que foi a primeira manifestação formal e violenta do espírito da terra contra os processos da metrópole.
E no entanto, o próprio Governador, com as câmaras de Belém e de São Luís, em Junta Geral, declaravam abolido o estanco. Era mais uma prova de que, "mesmo quando vencidas, as revoluções, por dolorosas que sejam, fazem o bem que visaram, se foram inspiradas na razão".


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Fonte:
História do Brasil, por: Rocha Pombo. Editora Melhoramentos, 14ª Edição. São Paulo, 1967, págs. 186-191.

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