terça-feira, 19 de julho de 2016

Música primitiva e música na antiguidade

Música primitiva e música na antiguidade
ANTES da era sinfônica, podemos acompanhar a História da Música através de uma evolução secular, que abrange a música dos povos primitivos e a música da Antiguidade.
MÚSICA DOS POVOS PRIMITIVOS - Os povos primitivos aliam a música aos atos mais familiares de sua vida. A música selvagem é parte da magia. Por ela se obtêm transformações nos homens e nas coisas, se afastam os demônios, se curam os doentes, se fazem exorcismos.
Os cantos e danças selvagens figuram nos rituais e cerimônias religiosos, nos preparativos de guerra, nos festejos de triunfo sobre o inimigo. Esses cantos são, em essência, cantos mágicos, ou melhor, encantamentos, que têm por fim agir sobre os bons e os maus espíritos.
A música dos primitivos — que ainda hoje vivem na África, na Oceania e em várias partes da América, inclusive o Brasil — serve para tudo, especialmente para curar doenças e sofrimentos físicos e morais. A medicina dos selvagens se baseia no canto mágico: o canto faz cessar as epidemias, detém as hemorragias, sara feridas, cura moléstias. Os índios Ojibwa, dos Estados Unidos, preparam suas infusões de ervas medicinais ao som de cânticos, pois acreditam que a música dará aos remédios um gosto abominável, que afugentará o demônio do corpo do enfermo. O canto mágico se utiliza também para domar animais, para agir sobre as condições atmosféricas, chamando o Sol ou as chuvas, afastando as tempestades.
Para cada um desses objetivos, há ritos musicais característicos: dança da chuva, dança do Sol, dança do fogo, etc. Não importa apenas, para cada caso, a natureza do canto, mas também o número de vezes que se canta, o número de repetições. A repetição, como se sabe, é um dos princípios básicos da magia: tal ou qual fórmula mágica não produzirá efeito, se não for repetida três vezes, sete vezes, etc.
As danças dos povos selvagens são executadas com máscaras e farsas especiais; estas, como aquelas, variam conforme a finalidade do cerimonial. As danças e as máscaras seguem outro princípio de magia — o mimetismo, a imitação do objeto que se pretende exorcismar, a "ação do semelhante sobre o semelhante". Reproduzem os gestos e os traços da pessoa ou da coisa sobre a qual se quer agir.
Há danças e cantos característicos para as caçadas, as guerras, os funerais, as pescarias. Acompanham-nos vários instrumentos musicais — especialmente os instrumentos de percussão, isto é, aqueles que imitam o bater das mãos e dos pés dos dançarinos e de que vemos um exemplo típico no maracá dos índios do Brasil. Mas também usam os primitivos outros instrumentos, do tipo da flauta ou da corneta. E é curioso que, na maioria das vezes, esses instrumentos sejam feitos com as próprias partes do esqueleto humano. A gangoera dos índios brasileiros, por exemplo, é uma espécie de flauta, feita com os ossos do esqueleto dos mais famosos guerreiros. Flautas e trombetas se constroem com tíbias e fêmures. O francês Crévaux, viajando pela Amazônia em 1882, encontrou entre os indígenas das margens do Xingu uma trombeta, em cuja extremidade havia um crânio humano, colocado de maneira que servisse de pavilhão. Portanto, não somente utilizam os povos primitivos instrumentos de percussão, cujos sons imitam o ritmo dos pés e das mãos dos dançarinos, mas também fazem os seus instrumentos de sopro, muitas vezes, com os ossos do esqueleto humano.
Isso influi, por certo, nas virtudes mágicas do instrumento. Não era sem razão que os índios do Brasil escolhiam os ossos dos "mais famosos guerreiros" para a construção das suas gangoeras. E também não era sem razão que eles mandavam "dar de comer e de beber" aos seus maracás, pela noite adentro.
A quantidade de instrumentos musicais, em uso entre os povos primitivos de todo o mundo, é enorme e de quase impossível enumeração. São instrumentos de várias categorias: instrumentos de sopro — flautas, cornetas, trombetas, gaitas; instrumentos de percussão — chocalhos, tambores; instrumentos zumbidores — buzinas, cuícas, assobios, etc. Em alguns povos, encontramos esboços de instrumentos de corda, como a cítara dos negros do Camerum, feita de cascas e fibras de árvore; a valiha de Madagáscar; a harpa-chocalho de Futa-Djalon, que é uma harpa de três cordas, armada sobre uma espécie de maracá; a grande lira dos negros da Abissínia; o alaúde africano; a harpa de forquilha da Guiné Francesa, etc. A maioria desses e outros instrumentos é feita de Material primitivo: canos de bambu, pedaços de madeira, ossos, i vegetais, galhos de árvores, cascas e caroços de frutos, louros de animais, e assim por diante.
Em suma, quando apreciamos os povos mais primitivos e selvagens de todo o mundo, já encontramos a Música como fato universal. Culturas isoladas umas das outras, vivendo em continentes distintos, apresentam, todas elas, cantos, danças, ritos e instrumentos musicais. Por toda a parte a Música surge como manifestação coletiva, acompanhando todos os atos da vida social. Por toda a parte manifesta significação mágica, servindo para curar doenças, expulsar demônios, atrair os bons espíritos, preparar as guerras, as pescarias, as caçadas, provocar a abundância das colheitas, festejar os sucessos extraordinários.
A Música, para os primitivos, ainda não é arte: está infinitamente longe, também, de ser ciência, como o é, hoje em dia, para os povos civilizados que conhecem os princípios da teoria musical, da harmonia, da composição, da instrumentação. A música dos primitivos é puramente instintiva, feita de sons e ritmos bárbaros, irritantemente monótona pela pobreza de recursos sonoros e de inspiração criadora. Mas nem por isso deixa de ser fenômeno coletivo de extraordinária importância e de enorme repercussão em todos os ramos da atividade social, que se deixa influenciar pelo canto mágico, pelas danças rituais, pelos ritmos obsessivos dos chocalhos, dos sapateados, dos tambores, do bater de mãos, do balancear de cabeças, de quadris, de braços e troncos, de seios e nádegas.
O que vemos, nessa música selvagem, é o corpo humano transformado em fonte imediata de ritmos, transmitindo seus movimentos e sonoridades aos instrumentos. Mais do que isso: é o corpo humano que adquire, ao som da música, virtudes mágico--fetichistas, tornando-se capaz de influir nos outros seres e coisas, na Natureza, nos espíritos sobrenaturais dos deuses e demônios (veja-se o que diremos mais adiante acerca do corpo humano como origem de todas as artes).
MÚSICA NA ANTIGUIDADE — Passando agora dos povos selvagens para a História da Civilização, o mais antigo documento que se conhece, como vestígio deixado pelos primeiros cuidados musicais dos povos que têm História, é um baixo-relevo caldeu, representando um tocador de harpa, encontrado por De Arzec no palácio de Telo, sobre a margem esquerda do canal que liga o Tigre ao Eufrates. Paleontologistas de mérito, como Pottier, fazem remontar esse baixo-relevo cerca de trinta séculos antes da era cristã.
No Egito, na Ásia Menor, encontraram-se documentos da mais alta antiguidade, revelando notáveis afinidades pela música, sempre unida, entre eles — como entre os selvagens dos nossos dias — ao culto da magia, à vida guerreira, religiosa e civil.
Os textos da Bíblia estão cheios de referências à Música: haja vista, por exemplo, os célebres Salmos de Davi, entoados ao som da lira; o Cântico dos Cânticos de Salomão, etc. A trombeta acompanha os hebreus em todos os atos da vida civil: soa como apelo às multidões, durante as cerimônias religiosas; celebra todas as festas públicas, o princípio e o fim da guerra, a coroação de um novo rei; anuncia a prece do profeta e a cólera do Deus vingador.
A liturgia dos antigos descendentes de Abraão se fazia acompanhar de música: dançava-se, cantava-se nas festas religiosas, ao som de instrumentos que se tocavam por entre taças de vinho. Havia, na Judéia, escolas de cantores: o rei Samuel deixou-nos a descrição de um grupo de profetas, descendo das alturas, cantando ao som de saltérios, harpas e flautas. Sob o reinado de Davi a arte do canto tomou incremento extraordinário. Diz a tradição que esse rei organizou 4.000 levitas em 24 coros, que cantavam em todas as festas públicas.
Na China, a Música se cultiva desde tempos imemoriais; é o instrumento "de ligação da terra com o céu", no dizer de Li-ki. Aos primeiros imperadores chineses se atribui a invenção de numerosos instrumentos musicais.
A índia foi pátria de grandes poetas, cujos poemas eram cantados pelo povo, com entusiasmo e brilhantismo excepcionais. O Mahabarata, o Reconhecimento de Sacontala corriam nas festas populares e nos palácios secundados por cantos e representações públicas, que eram grandes acontecimentos entre os hindus. Em todos os palácios dos príncipes havia uma Sangita sala, ou sala de canto, onde se recitavam os grandes poemas da literatura indiana.
Entre os gregos, a arte da Música assumiu importância extraordinária. A tragédia grega era uma fusão tríplice de dança-poesia-música. Na origem, vemos a Terpandro, que inventa a lira das sete cordas, e distingue os primeiros modos musicais (harmonia dórica, frígia, lídia, etc.), anotando os primeiros nomos, isto é, certas melodias básicas que serviam de tipo para os diferentes gêneros de emoções.
Vieram depois os grandes líricos, criando cada qual novos ritmos, melodias novas e novas mímicas para figurar na poesia. As estrofes poéticas eram recitadas ao som da lira, que entoava os nomos, ou melodias típicas, em correspondência com cada estado afetivo determinado. Canções populares, acompanhadas decítara, ouviam-se nos banquetes, onde os cantores eram escolhidos por um ramo de murta, que passava de mão em mão.
Com Píndaro aparecem as odes triunfais, o grande lirismo da Grécia primitiva. Esquilo, Sófocles, Eurípides, formando o apogeu da tragédia grega, elevaram, por sua vez, a expressão musical à altura de traduzir os sentimentos mais profundos, dentro dos limites que lhes traçava o rudimentarismo da música do seu tempo.
Os cantos corais cultivavam-se entre os gregos, entoados pela juventude sadia, nutrida sob a proteção dos belos deuses do Olimpo. Da Grécia, enfim, retirou a Música o seu primeiro nome: arte das Musas, deusas da Poesia, da Eloquência, do Canto e da Lira.
Entre os Romanos, no 1.° século A. C., já era a Música um dos divertimentos favoritos do patriciado. Havia bons cantores de nomeada, entre os quais o famoso Sila e o vaidoso Nero. O imperador Adriano se gabava de bem cantar e tocar cítara. A música figurava nas festas públicas e nos conta Sêneca que, nos teatros do seu tempo, havia maior número de músicos do que o havia de espectadores em épocas passadas.
Aperfeiçoou-se a arte dos instrumentistas; Ctesibios de Alexandria, em 130 A. C., inventou o órgão hidráulico, adotado com grande sucesso nos meios aristocráticos de Roma. Instituíram-se, nos Jogos Capitulinos, prêmios especiais para os que cantassem tocando cítara e para os tocadores de flauta. Não ficava atrás a música de câmara, nas reuniões privadas do patriciado, nem o papel da música vocal e instrumental na educação da juventude. A esposa de Plínio cantava os versos deste, fazendo-se acompanhar da lira. Algumas damas romanas se faziam notadas como compositoras de pequenas peças musicais, com que ilustravam as reuniões de famílias.
Legou-nos a tradição três documentos curiosos dessa época: dois hinos de Denis a Calíope e um hino de Mesomedes a Nêmesis, e, mais ainda, algumas obras de teoria musical, dignas de menção, como, por exemplo, os trabalhos de Plutarco, os Harmônicos do grande sábio Ptolomeu sobre a teoria matemática dos sons, um Tratado de Aristidos Quintiliano, verdadeira enciclopédia musical em relação à sua época, etc.
Até então, porém, era bem grosseiro o estado da arte musical. Não havia ela atingido anuiu um grau de evolução capaz de lhe dar autonomia e de a converter numa arte que valesse por si e que merecesse um culto especial e intensivo.
MUSICA NA IDADE MÉDIA E RENASCENÇA — Foi o advento e o triunfo do Cristianismo que vieram efetuar essa transformação gigantesca. Já nos primórdios da era cristã, São Basílio dava particular relevo à execução musical nas cerimônias religiosas; Ario, músico e poeta, compunha hinos sacros, que influíam extraordinariamente na disseminação da nova doutrina. No século IV, o Papa Silvestre fundou uma escola de canto. Hilário de Poitiers compôs hinos para as igrejas. Santo Ambrósio instituiu, na sua igreja de Milão e pela primeira vez no Ocidente, um sistema de canto (chamado canto ambrosiano), que vigorou até a reforma do Papa Gregório, o Grande (no século VI), o qual acrescentou aos quatro tons autênticos de Santo Ambrósio mais quatro tons correspondentes, que foram denominados plagais.
Durante dez séculos, mais ou menos, através de toda a Idade Média, dominou o cantochão, criado pela liturgia católica para ilustrar as cerimônias religiosas. Caracterizava-se ele por ser melodia única, cantada em uníssono por muitas vozes reunidas. É o que chamamos música monódica. Deixou-nos o Papa Gregório, o Grande uma coleção desses cantos, que, em sua homenagem, receberam o nome genérico de canto gregoriano.
Criadas para os rituais sacros, em breve as melodias religiosas passaram para o domínio do povo, que as adaptava a palavras profanas, convertendo-as, assim, em canções populares, com o ritmo um pouco transformado, mas presas ao mesmo sistema monódico, característico do cantochão. Não eram escritas essas canções; conservavam-se por tradição oral, corriam de país em país, divulgadas pelos músicos ambulantes, trovadores e menestréis, na sua maioria anônimos, que compunham por amor à Música e à Poesia, e também por amor às mulheres e às aventuras romanescas. Entre as canções populares dessa época que chegaram até nós, pode citar-se a Canção do Rei Renaud, construída sobre uma melodia do canto gregoriano.
Traço característico dessa música popular medieval era a repetição obstinada da mesma melodia com palavras diferentes, formando cada repetição o que se chama copla. Não podia progredir, todavia, a música monódica, presa ao uníssono e às formas tradicionais. Nova era viria arrancá-la desse torpor: e esta foi obra, ainda, da liturgia cristã.
A partir do século XI, principia a se desenvolver novo tipo de canto, que é a criação mais fecunda da Idade Média nos domínios da arte musical: o contraponto (veja-se a explicação do "contraponto" mais adiante). Com o contraponto desaparece a era monódica e se inaugura, para a Música, a era da polifonia — que só se estabelece, verdadeiramente, no século XIII e que dura até o século XVII. Cessa a monotonia do canto em uníssono; o contraponto permite que as diferentes vozes, de homens, mulheres e crianças, se acompanhem em melodias diferentes, mais ou menos harmônicas.
Nesse período, compuseram-se missas, salmos, motetes, para as igrejas; canções pitorescas e descritivas, madrigais, em forma de canções populares. Foi durante a era da polifonia que se criou o teatro cantado, a ópera, que tão grande influência iria exercer, para o futuro, sobre a evolução da Música.
Do século XVII em diante, nova transformação se esboça: o uso de instrumentos musicais, cuja fabricação e aperfeiçoamento eram possibilitados pelo progresso da Indústria e da Técnica, foram roubando ao canto o seu quase monopólio. Escreveram-se músicas exclusivamente para execução instrumental; e esta última era feita, quer num só instrumento, ou solo, quer num pequeno grupo de instrumentos reunidos, ou música de câmara, quer num conjunto de muitos instrumentos, a orquestra.
A essa nova era chamou-se era da sinfonia.
Aqui interrompemos esse ligeiro retrospecto sobre a História da Música, pois chegamos ao ponto em que o autor inglês do Capítulo sobre "Noções de Música" inicia o seu esboço.
Recordemos apenas que, daí por diante, a História da Música se desdobra através de três grandes períodos: o período clássico, que abrange a segunda metade do século XVIII e o começo do XIX; o período romântico, que se expande através do século XIX; e o período moderno, que principia em fins do século XIX e vem até os nossos dias.


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Fonte:
Pequena Enciclopédia de Conhecimentos Gerais - Volume III: Natureza e Origem da Música. Tradução de: Almir de Andrade, José Olympio Editora, 4ª Edição. Rio de Janeiro, 1964, págs. 965-971.

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