Música primitiva e música na antiguidade
ANTES da era
sinfônica, podemos acompanhar a História da Música através de uma evolução
secular, que abrange a música dos povos primitivos e a música da Antiguidade.
MÚSICA DOS POVOS PRIMITIVOS - Os povos
primitivos aliam a música aos atos mais familiares de sua vida. A música
selvagem é parte da magia. Por ela se obtêm transformações nos homens e nas
coisas, se afastam os demônios, se curam os doentes, se fazem exorcismos.
Os cantos e
danças selvagens figuram nos rituais e cerimônias religiosos, nos preparativos
de guerra, nos festejos de triunfo sobre o inimigo. Esses cantos são, em
essência, cantos mágicos, ou melhor,
encantamentos, que têm por fim agir
sobre os bons e os maus espíritos.
A música dos
primitivos — que ainda hoje vivem na África, na Oceania e em várias partes da
América, inclusive o Brasil — serve para tudo, especialmente para curar doenças
e sofrimentos físicos e morais. A medicina dos selvagens se baseia no canto
mágico: o canto faz cessar as epidemias, detém as hemorragias, sara feridas,
cura moléstias. Os índios Ojibwa, dos Estados Unidos, preparam suas infusões de
ervas medicinais ao som de cânticos, pois acreditam que a música dará aos
remédios um gosto abominável, que afugentará o demônio do corpo do enfermo. O
canto mágico se utiliza também para domar animais, para agir sobre as condições
atmosféricas, chamando o Sol ou as chuvas, afastando as tempestades.
Para cada um
desses objetivos, há ritos musicais característicos: dança da chuva, dança do
Sol, dança do fogo, etc. Não importa apenas, para cada caso, a natureza do
canto, mas também o número de vezes que se canta, o número de repetições. A repetição, como se sabe, é um dos
princípios básicos da magia: tal ou qual fórmula mágica não produzirá efeito,
se não for repetida três vezes, sete vezes, etc.
As danças
dos povos selvagens são executadas com máscaras e farsas especiais; estas, como
aquelas, variam conforme a finalidade do cerimonial. As danças e as máscaras
seguem outro princípio de magia — o mimetismo,
a imitação do objeto que se pretende exorcismar, a "ação do semelhante
sobre o semelhante". Reproduzem os gestos e os traços da pessoa ou da
coisa sobre a qual se quer agir.
Há danças e
cantos característicos para as caçadas, as guerras, os funerais, as pescarias.
Acompanham-nos vários instrumentos musicais — especialmente os instrumentos de
percussão, isto é, aqueles que imitam o bater das mãos e dos pés dos dançarinos
e de que vemos um exemplo típico no maracá
dos índios do Brasil. Mas também usam os primitivos outros instrumentos, do
tipo da flauta ou da corneta. E é curioso que, na maioria das vezes, esses
instrumentos sejam feitos com as próprias partes do esqueleto humano. A gangoera dos índios brasileiros, por
exemplo, é uma espécie de flauta, feita com os ossos do esqueleto dos mais
famosos guerreiros. Flautas e trombetas se constroem com tíbias e fêmures. O
francês Crévaux, viajando pela Amazônia em 1882, encontrou entre os indígenas
das margens do Xingu uma trombeta, em cuja extremidade havia um crânio humano,
colocado de maneira que servisse de pavilhão. Portanto, não somente utilizam os
povos primitivos instrumentos de percussão, cujos sons imitam o ritmo dos pés e
das mãos dos dançarinos, mas também fazem os seus instrumentos de sopro, muitas
vezes, com os ossos do esqueleto humano.
Isso influi,
por certo, nas virtudes mágicas do instrumento. Não era sem razão que os índios
do Brasil escolhiam os ossos dos "mais famosos guerreiros" para a
construção das suas gangoeras. E
também não era sem razão que eles mandavam "dar de comer e de beber"
aos seus maracás, pela noite
adentro.
A quantidade
de instrumentos musicais, em uso entre os povos primitivos de todo o mundo, é
enorme e de quase impossível enumeração. São instrumentos de várias categorias:
instrumentos de sopro — flautas, cornetas, trombetas, gaitas; instrumentos de
percussão — chocalhos, tambores; instrumentos zumbidores — buzinas, cuícas,
assobios, etc. Em alguns povos, encontramos esboços de instrumentos de corda, como
a cítara dos negros do Camerum, feita de cascas e fibras de árvore; a valiha de Madagáscar; a harpa-chocalho
de Futa-Djalon, que é uma harpa de três cordas, armada sobre uma espécie de
maracá; a grande lira dos negros da Abissínia; o alaúde africano; a harpa de
forquilha da Guiné Francesa, etc. A maioria desses e outros instrumentos é
feita de Material primitivo: canos de bambu, pedaços de madeira, ossos, i
vegetais, galhos de árvores, cascas e caroços de frutos, louros de animais, e
assim por diante.
Em suma,
quando apreciamos os povos mais primitivos e selvagens de todo o mundo, já
encontramos a Música como fato universal. Culturas isoladas umas das outras,
vivendo em continentes distintos, apresentam, todas elas, cantos, danças, ritos
e instrumentos musicais. Por toda a parte a Música surge como manifestação
coletiva, acompanhando todos os atos da vida social. Por toda a parte manifesta
significação mágica, servindo para curar doenças, expulsar demônios, atrair os
bons espíritos, preparar as guerras, as pescarias, as caçadas, provocar a
abundância das colheitas, festejar os sucessos extraordinários.
A Música,
para os primitivos, ainda não é arte: está infinitamente longe, também, de ser
ciência, como o é, hoje em dia, para os povos civilizados que conhecem os
princípios da teoria musical, da harmonia, da composição, da instrumentação. A
música dos primitivos é puramente instintiva, feita de sons e ritmos bárbaros,
irritantemente monótona pela pobreza de recursos sonoros e de inspiração
criadora. Mas nem por isso deixa de ser fenômeno coletivo de extraordinária
importância e de enorme repercussão em todos os ramos da atividade social, que
se deixa influenciar pelo canto mágico, pelas danças rituais, pelos ritmos
obsessivos dos chocalhos, dos sapateados, dos tambores, do bater de mãos, do
balancear de cabeças, de quadris, de braços e troncos, de seios e nádegas.
O que vemos,
nessa música selvagem, é o corpo humano transformado em fonte imediata de
ritmos, transmitindo seus movimentos e sonoridades aos instrumentos. Mais do
que isso: é o corpo humano que adquire, ao som da música, virtudes mágico--fetichistas,
tornando-se capaz de influir nos outros seres e coisas, na Natureza, nos
espíritos sobrenaturais dos deuses e demônios (veja-se o que diremos mais
adiante acerca do corpo humano como origem de todas as artes).
MÚSICA NA ANTIGUIDADE — Passando agora
dos povos selvagens para a História da Civilização, o mais antigo documento que
se conhece, como vestígio deixado pelos primeiros cuidados musicais dos povos que
têm História, é um baixo-relevo caldeu, representando um tocador de harpa,
encontrado por De Arzec no palácio de Telo, sobre a margem esquerda do canal
que liga o Tigre ao Eufrates. Paleontologistas de mérito, como Pottier, fazem
remontar esse baixo-relevo cerca de trinta séculos antes da era cristã.
No Egito, na
Ásia Menor, encontraram-se documentos da mais alta antiguidade, revelando
notáveis afinidades pela música, sempre unida, entre eles — como entre os
selvagens dos nossos dias — ao culto da magia, à vida guerreira, religiosa e
civil.
Os textos da
Bíblia estão cheios de referências à Música: haja vista, por exemplo, os
célebres Salmos de Davi, entoados ao som da lira; o Cântico dos Cânticos de Salomão, etc. A trombeta acompanha os hebreus em todos os atos da vida civil: soa
como apelo às multidões, durante as cerimônias religiosas; celebra todas as
festas públicas, o princípio e o fim da guerra, a coroação de um novo rei;
anuncia a prece do profeta e a cólera do Deus vingador.
A liturgia
dos antigos descendentes de Abraão se fazia acompanhar de música: dançava-se,
cantava-se nas festas religiosas, ao som de instrumentos que se tocavam por
entre taças de vinho. Havia, na Judéia, escolas de cantores: o rei Samuel
deixou-nos a descrição de um grupo de profetas, descendo das alturas, cantando
ao som de saltérios, harpas e flautas. Sob o reinado de Davi a arte do canto
tomou incremento extraordinário. Diz a tradição que esse rei organizou 4.000
levitas em 24 coros, que cantavam em todas as festas públicas.
Na China, a
Música se cultiva desde tempos imemoriais; é o instrumento "de ligação da
terra com o céu", no dizer de Li-ki. Aos primeiros imperadores chineses se
atribui a invenção de numerosos instrumentos musicais.
A índia foi
pátria de grandes poetas, cujos poemas eram cantados pelo povo, com entusiasmo
e brilhantismo excepcionais. O Mahabarata,
o Reconhecimento de Sacontala corriam nas festas populares
e nos palácios secundados por cantos e representações públicas, que eram
grandes acontecimentos entre os hindus. Em todos os palácios dos príncipes
havia uma Sangita sala, ou sala de canto, onde se recitavam os
grandes poemas da literatura indiana.
Entre os
gregos, a arte da Música assumiu importância extraordinária. A tragédia grega era uma fusão tríplice
de dança-poesia-música. Na origem,
vemos a Terpandro, que inventa a lira das sete cordas, e distingue os primeiros
modos musicais (harmonia dórica, frígia, lídia, etc.), anotando os primeiros nomos, isto é, certas melodias básicas
que serviam de tipo para os diferentes gêneros de emoções.
Vieram
depois os grandes líricos, criando cada qual novos ritmos, melodias novas e
novas mímicas para figurar na poesia. As estrofes poéticas eram recitadas ao
som da lira, que entoava os nomos, ou melodias típicas, em
correspondência com cada estado afetivo determinado. Canções populares,
acompanhadas decítara, ouviam-se nos banquetes, onde os cantores eram
escolhidos por um ramo de murta, que passava de mão em mão.
Com Píndaro
aparecem as odes triunfais, o grande
lirismo da Grécia primitiva. Esquilo, Sófocles, Eurípides, formando o apogeu da
tragédia grega, elevaram, por sua vez, a expressão musical à altura de traduzir
os sentimentos mais profundos, dentro dos limites que lhes traçava o
rudimentarismo da música do seu tempo.
Os cantos corais cultivavam-se entre os
gregos, entoados pela juventude sadia, nutrida sob a proteção dos belos deuses
do Olimpo. Da Grécia, enfim, retirou a Música
o seu primeiro nome: arte das Musas,
deusas da Poesia, da Eloquência, do Canto e da Lira.
Entre os
Romanos, no 1.° século A. C., já era a Música um dos divertimentos favoritos do
patriciado. Havia bons cantores de nomeada, entre os quais o famoso Sila e o
vaidoso Nero. O imperador Adriano se gabava de bem cantar e tocar cítara. A
música figurava nas festas públicas e nos conta Sêneca que, nos teatros do seu
tempo, havia maior número de músicos do que o havia de espectadores em épocas
passadas.
Aperfeiçoou-se
a arte dos instrumentistas; Ctesibios de Alexandria, em 130 A. C., inventou o órgão hidráulico, adotado com grande
sucesso nos meios aristocráticos de Roma. Instituíram-se, nos Jogos
Capitulinos, prêmios especiais para os que cantassem tocando cítara e para os tocadores de flauta. Não ficava atrás a música de câmara, nas reuniões privadas
do patriciado, nem o papel da música
vocal e instrumental na educação
da juventude. A esposa de Plínio cantava os versos deste, fazendo-se acompanhar
da lira. Algumas damas romanas se
faziam notadas como compositoras de pequenas peças musicais, com que ilustravam
as reuniões de famílias.
Legou-nos a
tradição três documentos curiosos dessa época: dois hinos de Denis a Calíope e um hino de Mesomedes a Nêmesis, e, mais ainda, algumas obras de
teoria musical, dignas de menção, como, por exemplo, os trabalhos de Plutarco,
os Harmônicos do grande sábio Ptolomeu
sobre a teoria matemática dos sons, um Tratado
de Aristidos Quintiliano, verdadeira enciclopédia musical em relação à sua
época, etc.
Até então,
porém, era bem grosseiro o estado da arte musical. Não havia ela atingido anuiu
um grau de evolução capaz de lhe dar autonomia e de a converter numa arte que
valesse por si e que merecesse um culto especial e intensivo.
MUSICA NA IDADE MÉDIA E RENASCENÇA — Foi
o advento e o triunfo do Cristianismo que vieram efetuar essa transformação
gigantesca. Já nos primórdios da era cristã, São Basílio dava particular relevo
à execução musical nas cerimônias religiosas; Ario, músico e poeta, compunha
hinos sacros, que influíam extraordinariamente na disseminação da nova
doutrina. No século IV, o Papa Silvestre fundou uma escola de canto. Hilário de
Poitiers compôs hinos para as igrejas. Santo Ambrósio instituiu, na sua igreja
de Milão e pela primeira vez no Ocidente, um sistema de canto (chamado canto ambrosiano), que vigorou até a
reforma do Papa Gregório, o Grande (no século VI), o qual acrescentou aos
quatro tons autênticos de Santo
Ambrósio mais quatro tons correspondentes, que foram denominados plagais.
Durante dez
séculos, mais ou menos, através de toda a Idade Média, dominou o cantochão, criado pela liturgia
católica para ilustrar as cerimônias religiosas. Caracterizava-se ele por ser
melodia única, cantada em uníssono
por muitas vozes reunidas. É o que chamamos música monódica. Deixou-nos o Papa Gregório, o Grande uma coleção desses
cantos, que, em sua homenagem, receberam o nome genérico de canto gregoriano.
Criadas para
os rituais sacros, em breve as melodias religiosas passaram para o domínio do
povo, que as adaptava a palavras profanas, convertendo-as, assim, em canções populares, com o ritmo um pouco
transformado, mas presas ao mesmo sistema monódico, característico do
cantochão. Não eram escritas essas canções; conservavam-se por tradição oral,
corriam de país em país, divulgadas pelos músicos ambulantes, trovadores e
menestréis, na sua maioria anônimos, que compunham por amor à Música e à
Poesia, e também por amor às mulheres e às aventuras romanescas. Entre as
canções populares dessa época que chegaram até nós, pode citar-se a Canção do Rei Renaud, construída sobre
uma melodia do canto gregoriano.
Traço
característico dessa música popular medieval era a repetição obstinada da mesma
melodia com palavras diferentes, formando cada repetição o que se chama copla. Não podia progredir, todavia, a
música monódica, presa ao uníssono e às formas tradicionais. Nova
era viria arrancá-la desse torpor: e esta foi obra, ainda, da liturgia cristã.
A partir do
século XI, principia a se desenvolver novo tipo de canto, que é a criação mais
fecunda da Idade Média nos domínios da arte musical: o contraponto (veja-se a explicação do "contraponto" mais
adiante). Com o contraponto desaparece a era monódica e se inaugura, para a
Música, a era da polifonia — que só
se estabelece, verdadeiramente, no século XIII e que dura até o século XVII.
Cessa a monotonia do canto em uníssono; o contraponto permite que as diferentes
vozes, de homens, mulheres e crianças, se acompanhem em melodias diferentes,
mais ou menos harmônicas.
Nesse
período, compuseram-se missas, salmos, motetes, para as igrejas; canções
pitorescas e descritivas, madrigais, em forma de canções populares. Foi durante
a era da polifonia que se criou o teatro cantado, a ópera, que tão grande
influência iria exercer, para o futuro, sobre a evolução da Música.
Do século
XVII em diante, nova transformação se esboça: o uso de instrumentos musicais,
cuja fabricação e aperfeiçoamento eram possibilitados pelo progresso da
Indústria e da Técnica, foram roubando ao canto o seu quase monopólio.
Escreveram-se músicas exclusivamente para execução instrumental; e esta última
era feita, quer num só instrumento, ou solo,
quer num pequeno grupo de instrumentos reunidos, ou música de câmara, quer num conjunto de muitos instrumentos, a orquestra.
A essa nova
era chamou-se era da sinfonia.
Aqui
interrompemos esse ligeiro retrospecto sobre a História da Música, pois
chegamos ao ponto em que o autor inglês do Capítulo sobre "Noções de
Música" inicia o seu esboço.
Recordemos
apenas que, daí por diante, a História da Música se desdobra através de três
grandes períodos: o período clássico, que abrange a segunda metade do século
XVIII e o começo do XIX; o período romântico,
que se expande através do século XIX; e o período moderno, que principia em fins do século XIX e vem até os nossos
dias.
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Fonte:
Pequena Enciclopédia de Conhecimentos Gerais - Volume III: Natureza e Origem da Música. Tradução de: Almir de Andrade, José Olympio Editora, 4ª Edição. Rio de Janeiro, 1964, págs. 965-971.
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