quinta-feira, 21 de julho de 2016

O que é a ioga?

O que é a ioga?
Por: Jean Chevalier
No Ocidente a ioga adquiriu um caráter de ginástica para emagrecer, higiene corporal e mental, magia e espiritualidade. Mas ela é muito mais do que isso. Com suas raízes na Ásia, a ioga surgiu há mais de 4 mil anos e acabou conquistando os círculos mais avançados da Europa, Estados Unidos e União Soviética atual. Com sua filosofia e suas técnicas, a ioga apresenta um outro conceito de felicidade e de liberdade. Hoje, no Brasil, milhares de pessoas praticam a ioga. Mas o que é a ioga?
A ioga põe-nos em contato com a espiritualidade de um povo, que representa perto de um sexto da humanidade, e também com duas religiões: o hinduísmo e o budismo, cujas afluências agem sobre mais de meio bilhão de seres humanos. Mas não será a imagem que temos no Ocidente apenas uma.caricatura? Como pode essa alta espiritualidade tornar-se no Ocidente uma ginástica para vítimas da celulite e do tédio? Enquanto hoje na índia contam-se nos dedos da mão os grandes mestres da ioga (satgurus), há em cada bairro de Paris, de Londres, de Bonn ou de Nova York "professores" de ioga e, além do mais, "diplomados". Diplomados em quê? Para quê?
A hatha-ioga teve duas fases sucessivas de expansão, verificadas logo após cada uma das guerras mundiais. Depois de 1945 a expansão no Ocidente — compreendendo também a Rússia soviética — foi quase explosiva. Conferências, transmissões de rádio e televisão, boletins periódicos, artigos na imprensa, centros de treinamento se multiplicaram. A ioga chegou mesmo a ser batizada; existe a "ioga cristã em dez lições", onde se aprende a união com Deus nas posturas apropriadas. Nasceu uma atividade paramédica e parapastoral que relaxa, descontrai, estimula, treina, equilibra, acalma e espiritualiza.
Como não existem estatísticas precisas fizemos verificações para constatar que, em 20 anos, o número de salas de treinamento quintuplicou, ao passo que o número de adeptos duplicou. Os adeptos pertencem a todos os meios, mas estão principalmente entre os intelectuais e nas profissões liberais: engenheiros, médicos, advogados, artistas (sobretudo comediantes), professores e estudantes, funcionários dos diversos departamentos de Estado; também empregados em escritório, secretárias; mas não operários, ou muito poucos.
Os adeptos são muitas vezes pessoas que, sentindo necessidade de exteriorização, procuram uma perfeita disponibilidade interior, ao mesmo tempo o domínio de si. As mulheres representam perto de 60% da clientela.
Considerando as ligações religiosas das pessoas, verificamos que é entre os cristãos — sobretudo entre os católicos — que existe resistência maior, à medida que são instruídos além das simples posturas corporais para penetrar nas implicações mais ou menos esotéricas; os israelitas, ao contrário, seguem os cursos com inteligência flexível e chegam a alto grau de assimilação. Talvez a procura da estabilidade interior seja mais séria e imperiosa nos povos ansiosos, expostos a frequentes migrações. Evidentemente, os métodos devem adaptar-se tanto à complexidade de cada pessoa como às estruturas sociais nas quais cada uma evolui.

Estranho encontro
A ioga tem estranho destino: mergulha as raízes na antiguidade mais remota da Ásia e ao mesmo tempo ganha os círculos mais evoluídos da Europa, dos Estados Unidos e da URSS. Anterior aos vedas em suas origens, com mais de 4 mil anos, esta disciplina oriental introduziu-se no Ocidente como salutar novidade. Além disso a ioga possui a auréola de uma ou talvez mesmo de várias ideologias, cuja luz não é o traço que a distingue. Isto talvez explique por que muitos sábios creem aí encontrar o pressentimento ou a contradição das descobertas científicas mais modernas. A ioga apareceu na França como ginástica, dietética, higiene corporal, mental e social, magia, espiritualidade combinada em doses variadas conforme as escolas e as pessoas. Já na índia apresenta múltiplas facetas: como nota Mircea Eliade, "acabou por absorver e integrar toda espécie de técnicas espirituais e místicas, das mais elementares às mais complexas. O nome genérico iogue designa tanto místicos e santos como mágicos, orgiastas e vulgares faquires e feiticeiros. A cada tipo de comportamento mágico-religioso corresponde determinada forma de ioga". Não são menores as confusões ocidentais sob o nome ioga, tanto as que se dirigem à teosofia como as que visam a expressão corporal; seria inútil pretender elucida Ias em um único artigo. O encontro Oriente-Ocidente, no que chamamos ioga, é uma história cheia de equívocos e mal-entendidos.

História de uma invasão
A entrada do pensamento indiano no Ocidente não data de hoje. Sua importância é muito maior do que geralmente pensamos, habituados como estamos a limitar nossas análises às origens culturais greco-latinas e bíblicas. Mas a história da influência indiana sobre o espírito europeu ainda está por escrever; não acho que tenha sido feita de maneira metódica e completa: este seria um bom assunto para tese, onde deveriam ser mencionadas ilustres resistências ao lado de célebres entusiasmos. Com efeito, a oscilação entre julgamentos exagerados sempre marcou a penetração do indianismo no Ocidente. Não foi sem grande trabalho que conseguimos reunir alguns dos marcos principais da sua expansão sistemática. Esses marcos explicam em parte o entusiasmo de hoje pela ioga, ao mesmo tempo que as razões de certas reticências.
Em 1681, as narrações de viagem do médico holandês Dopper, traduzidas para o alemão, atraíram, por suas descrições detalhadas, a atenção do Ocidente para a mitologia indiana. Mas a primeira cópia dos textos vedas, incompleta e defeituosa, só chegou a Paris em 1731, graças ao missionário francês, padre Calmette. Em fins do século 18 o sânscrito começou a ser estudado na Europa e espalhou-se a ideia de que os povos civilizados, juntamente com os persas e indianos, descendiam de um só povo primitivo. Esta concepção seria mais tarde combatida pela linguística comparada, que marcaria os limites entre as línguas e consequentemente entre os povos. A primeira obra traduzida do sânscrito para uma língua europeia foi a Bhagavad-Gita, que exprime o ideal moral do herói iogue, "esta joia pura da literatura sagrada das índias, ciosamente conservada em segredo, dada apenas aos iniciados..." Foi publicada em inglês, em Londres, no ano de 1785, assinada por Charles Wilkins. Dois anos depois, baseado no texto inglês, o abade Parraud escreveu a primeira versão francesa. Desde então, apareceram em línguas europeias mais de 150 traduções desse maravilhoso poema.

A revelação dos Upanishads
Constituiu verdadeira sensação nos círculos cultos europeus a publicação em Paris e Strasburgo, em 1801-1802, da tradução em Latim de 50 Upanishads, feita por Anquetil-Duperron, de acordo com uma versão persa: foi verdadeira revelação para o Ocidente, que seria ainda aumentada em 1805 pela publicação, em Calcutá, de um ensaio de H. H. Colebrook; consultando uma cópia completa dos vedas, até então guardada pelos brâmanes, forneceu as primeiras informações precisas sobre a literatura védica. Em janeiro de 1807, Knebel escreveu a Goethe (l749-1832): "Refugio-me na literatura indiana. A paz profunda que dela emana, chegando quase ao inteiro desprendimento do mundo, forma estranho contraste com estes tempos perturbados de desordem". Mas Goethe, satisfeita a curiosidade, manifesta total decepção; nutria preferência exclusiva pelo gosto clássico; do Oriente apreciava o epicurismo delicado de Hafiz, poeta persa; mas da índia diria: "Essas figuras monstruosas, disformes, colossais, não podem satisfazer meu sentimento poético: estão muito longe da verdade, à qual meu pensamento aspira sem cessar". Acha que as civilizações do Indus e do Ganges são heterogêneas e estranhas à sua mentalidade europeia: "Religiões loucamente monstruosas... filosofia confusa...  ídolos absurdos... " Em suas angústias de 1813 não hesita em confessar que o Oriente é, para ele, "o ópio dos tempos modernos".

A conquista da Europa
Contudo, o romantismo e a filosofia alemã do século 19, sob a influência talvez de certo "arianismo" nascente, vão impregnar-se desse pensamento. Frederico Schlegel (1772-1829) dá a ordem em 1806: "É do Oriente que devemos tirar o romantismo supremo". Na mesma data, Tieck (1773-1853) vê nos poemas mitológicos da índia "os sonhos nacionais da nossa raça". Para A. W. Schlegel (1767-1845) a Alemanha deveria ser "o Oriente da Europa". Seu irmão Frederico, depois de estudar em Paris sob a direção do indianista Alexandre Hamilton, publicou, em 1808, o famoso livro Sobre a Língua e a Sabedoria dos Indianos, que marcou época na história do desenvolvimento dos estudos orientais. Em 1823 apareceu a primeira edição em alemão do Bhagavad-Gita, traduzido por A. W. Schlegel, acolhida com grande entusiasmo. W. von Humboldt, então ministro da Cultura na Prússia, saudou-a como "a maior obra-prima filosófica e- literária da humanidade". Mas só em 1846 A. W. Schlegel publicava a primeira tradução alemã do Ramaina, e em 1897 era publicada a primeira de 50 Upanishads, por Deressen. O pensamento da índia brilha tanto para filósofos como para poetas. A célebre frase de Fichte (1762-1814) "a vida se supõe ao se opor", não lembrará a fórmula do sâmkhia: "Deus se conhece ao nos opormos"? Na História dos Mitos do Mundo Asiático Joseph Görres (1776-1848), em 1810, já comparava a concepção trinitária hindu (Trimurti: Brama, Shiva, Vishnu) ao sistema de identidade de Schelling (1775-1854). Achava que, ao atingir sua expansão, a filosofia deveria voltar a mergulhar no oceano da poesia da índia, produto puro do espírito oriental, que teria inspirado o cristianismo e assim penetrado no Ocidente.

A interpretação dos vedas
Desde o começo do século 19 todos os outros filósofos alemães foram influenciados pela tradução das obras da índia: Hegel (1770-1831), Feurbach (1804-1872) e sobretudo Schopenhauer (1788-1860). Sabe-se, também, que Nietzsche (1844-1900) ficou impressionado com a leitura de Schopenhauer. Deslumbrado, Schopenhauer encontrara nos Upanishads (segundo o texto latino de Anquetil-Duperron) o problema do mal físico e moral que o preocupava e ao qual daria a solução de seu idealismo romântico, concebido como uma representação pessimista da vida. Os escritos da índia contêm também os elementos da dialética, tanto idealista como em Fichte e Hegel, como materialista como em Fuer-bach ou Karl Marx (1816-1883).
A primeira tradução francesa do Rig-Veda por Langlois foi publicada em 1848-1851.  Sob o estímulo de Emile Bournouf (1822-1907)  progride a filosofia do sânscrito e, graças a ela, a interpretação dos vedas. Foi ele quem em 1861 fez a primeira tradução para o francês do Bhagavad-Gita diretamente do sânscrito, em lugar de tirar, como as precedentes, de versões inglesas ou alemãs. O prefácio que escreveu para a reedição merece ser relido. Citemos, por exemplo, esta passagem: "O que move os homens de hoje, o que os agrupa ou os precipita uns contra os outros, é o interesse pessoal. Raramente o amor ao bem em si é o motivo... Neste pequeno livro veremos que existiram homens que pensavam melhor que nós e que encontraram a via da salvação".


O livro da harmonia da vida
Foi sem dúvida este poema sem igual na literatura europeia que desencadeou o lirismo ofegante de Michelet: "... Livro de harmonia divina onde nada é dissonante. Amável paz aí reina, e mesmo no meio dos combates há infinita doçura, fraternidade sem limites que se estende a tudo que vive, um oceano sem fundo nem margem, de amor, piedade, clemência. Encontrei o que procurava: a bíblia da bondade." Em 1867 Hippolyte Fauche publica a primeira tradução do Maha Bharata; em 1891-1896, Victor Henry a primeira de Atharvaveda.
O século 20 continuou esse esforço. Estende, aprofunda, aperfeiçoa o conhecimento da índia. Duas tendências principais surgem entre os especialistas; não são exclusivas, apesar de uma dizer-se científica, a outra, espiritual. A primeira recorre a métodos históricos e filológicos, sacrificando talvez a forma e os valores religiosos para apresentar, pelo menos, alguns dados precisos de imensidade bastante confusa; a segunda inclina-se às vezes para a teosofia, procurando nos textos obscuros traços de uma tradição universal.
A primeira não é a que exige menos austeridade e estudo: nomes como Bergaigne, Sylvain-Lévi, La Valée-Poussin, Sénart, Grousset e Masson-Oursel ilustram a primeira tendência; e os de Romain Roland e René Guénon, a segunda, para não citar senão os já falecidos, cuja obra continua brilhando nas duas direções, graças a uma plêiade de indianistas contemporâneos.

Semântica e romance novo
A influência do pensamento indiano ultrapassa de muito o círculo dos meios especializados e mesmo o mundo da literatura. A psicanálise, em particular, lhe deve não apenas a descoberta do inconsciente — que data de milênios — e a prodigiosa exploração sutil do subconsciente, mas ainda um simbolismo muito rico. Os mestres indianos contemporâneos como Ramakrishna e Aurobindo não hesitaram, contudo, em denunciar a psicanálise (principalmente a de Freud) como "ciência imprudente, incompetente e grosseira".
Aurobindo censura Freud por isolar em "camadas subconscientes do vital inferior... alguns de seus fenômenos mais mórbidos, ao atribuir a este elemento importância desproporcional a seu verdadeiro papel na natureza..." Arrisca assim inundar o magma obscuro e lodoso das partes conscientes de nosso ser e envenenar toda a natureza vital, até mesmo a natureza mental. "Seria abrir aqui verdadeiro debate; não podemos senão deixá-lo assinalado. A especulação indiana expõe à luz mecanismos interiores e níveis de consciência que as ciências do homem começam apenas a explorar."

A verdadeira ioga
Apresenta com agudeza o problema da comunicação entre os homens e do homem com o universo, que as pesquisas filosóficas — sobre a natureza da linguagem, sobre o pensamento para além dos conceitos, sobre o conhecimento de si e do "outro", sobre os poderes do psiquismo — estão longe de haver resolvido. A semântica geral de Korzybski, a lógica não aristotélica de Lewin, a sócio-psicologia não diretiva de Rogers, o "objetivismo" do novo romance e as várias tentativas no domínio das artes, as pesquisas atuais que tendem a extrapolar o assunto ou o objetivo, separando-os — como se o elo entre os dois estivesse partindo — refletem alguns aspectos do pensamento da índia. Esse pensamento examinou, com efeito, as relações sujeito-objeto com sutilidade de observação, riqueza de invenção e uma audácia de conclusões ainda não igualada em qualquer outro país.
Ora, a verdadeira ioga, da escala mais baixa à mais alta, apresenta-se como a interpretação prática e ativa desse pensamento, a solução para a inquietação metafísica e religiosa. Mas apresenta-se a ioga assim para a maioria dos adeptos que frequentam as salas de exercícios do mundo ocidental? Notemos, para começar, que em geral os adeptos permanecem no primeiro grau, a hatha-ioga. A que motivações obedecem? Primeiro, a uma defesa contra a vida hiperativa.
A hatha-ioga é considerada um método de relaxamento e repouso, remédio contra a fadiga, fator de equilíbrio físico e mental. Os resultados variam com as pessoas; poderão ser apreciados a partir de dois ou três meses, se os exercícios dirigidos forem praticados duas vezes por semana e as posturas e meditações 30 minutos por dia. Mas nada é obtido mecanicamente. Os exercícios devem liberar primeiro o espírito e a consciência, dissolver as nodosidades físicas e psíquicas, soltar os vínculos supérfluos. As técnicas de respiração e de reeducação muscular, a fisiologia da assimilação e o domínio dos nervos, são terapêuticas psicossomáticas que inspiram, por exemplo, o parto sem dor. A ioga é então concebida como a arte de passar bem, por muito tempo.

Outra ideia da felicidade
Outros pedem a satisfação de ambições mais altas. A ioga apresenta-se então como método científico para a conquista da felicidade.
Não esconderá esta forma um equívoco? A felicidade que tantas pessoas procuram, seduzidas pela publicidade de alguns institutos, em nada se parece com a que propõem os grandes mestres da ioga. A maioria das pessoas acredita encontrar a felicidade na ligação recíproca e durável entre seres que se amam; a felicidade ioga, se não estou enganado, rejeita todas essas ilusões para basear-se somente na união ao ato de ser despido de toda aparência sensível e perfeitamente "indeterminado".
Quando os centros de ioga prometem felicidade, tal como a desejada pelo comum dos mortais, estão traindo o conceito tradicional da índia. A verdadeira ioga pressupõe longa purificação e ascese. Não é ginástica acompanhada de meditação. "É penoso passar por cima da lâmina afiada da navalha" — assim os sábios exprimem a dificuldade do caminho (Katha Upanishad, III, 14). Mas se não pudermos atingir o completo desligamento do místico, devemos esforçar-nos para nos tornar melhores.
Pode-se tirar proveito da prática da ioga nem que seja só até certo grau. O importante é evitar o equívoco: a felicidade da ioga situa-se além das satisfações primárias. Não seria mau, aliás, corrigir um pouco a ideia superficial ou sentimental que fazemos da felicidade no Ocidente.

Do culto do herói à paz
Muitos discípulos ocidentais procuram tornar-se diferentes de seu meio. Cedem a essa espécie de culto do herói que atravessa a história da índia e que é a ideia fixa da imaginação humana. A ioga tem seus heróis de tradição e dos Himalaias. Sem rivalizar com eles, por meio de proezas semelhantes, podemos desejar entrar em sua família. Diferenciando-se do ambiente imediato, somos valorizados a nossos próprios olhos, criamos obrigações superiores àqueIas dos círculos mais próximos, escapamos à tirania do conformismo para pôr em relevo outra sociedade que tem seus segredos, seus mistérios, seus poderes.
É como se o mundo tomasse nova dimensão, como se a liberdade descobrisse novo espaço e os pulmões novo ar. Esta procura da diferença, contra a pressão assimiladora do universo moderno, é uma das mais frequentes motivações, ainda que nem sempre seja expressamente formulada. O essencial aqui é não erigir um mundo imaginário onde o esquizoide, por tendência, viveria de seus sonhos.
Ao contrário de certas técnicas psicológicas tristemente célebres, a ioga, antes de mais nada, descondiciona a pessoa, restituindo-lhe a própria autonomia, o corpo e a alma, livres de qualquer vínculo. A ioga não impõe dogmas, filosofia ou religião. A independência que confere não suprime as crenças, mas torna-as mais pessoais, mais vivas. Provoca o respeito pela tolerância dos outros pensamentos e mesmo certo movimento de simpatia tendente a conhecê-los melhor e a dissipar todo preconceito de superioridade. Aquele que melhor conseguir diferenciar-se será também o melhor a se reintegrar.

Análise das motivações
Enfim, muitos ocidentais procuram na ioga o remédio para a angústia. Arrastados pelo extravio da consciência, que sucede à derrocada ou à colocação em dúvida das normas tradicionais, vivem à espreita de novos valores. Perturbados, ansiosos, buscam luz e paz em exercícios corporais concebidos como elementos de formação integral. Creem reencontrar a consciência na disciplina; a religião numa epopeia cosmogônica; a mística numa fisiologia esotérica. A ioga oferece esses substitutos; mas a própria palavra substituto não indica um preconceito? Na verdade alguns adeptos da ioga recuperaram, com suas práticas despidas de violência, normas, um corpo e crenças pelas quais se felicitam. Abandonam-se à ioga para vencer a impressão, tão difundida, de viver num mundo de agressões dissimuladas ou brutais.
A confiança volta; com a calma volta o equilíbrio e o domínio dos movimentos; a segurança agora obtida afirma-se na maneira de andar, comunica-se a seus julgamentos e ao espírito de decisão. A ioga conferiu-lhes o sentimento de segurança.
Nesta análise das motivações não esqueçamos os que esperam, pela ioga, participar da luz e dos poderes sobre os mistérios da natureza humana e do universo que o Oriente, e especialmente a índia, são considerados possuidores. Mas quanto mais não se empresta à índia? Cada um pode atribuir suas próprias elucubrações a essa tradição várias vezes milenar e esotérica.

Saber ver a Índia
Nada mais simples, partindo de textos muitas vezes obscuros e confundindo interpretações de origem diversa, que imaginar uma ciência secreta e tomar certas invenções como revelação. "A índia esplêndida e perturbadora..." — dizia Mallarmé. Em face de abusos que chegam à impostura explica-se a reação dos sábios linguistas que se limitam a não ultrapassar a fronteira da filologia; contudo, não se aceitam tão bem reações de observadores como Koestler que gastam a inteligência em nada compreender, limitando-se à descrição de certos fatos — infelizmente numerosos — para ridicularizar os supostos discípulos da ioga.
Qualquer que seja a desconfiança suscitada pelos entusiasmos pueris há, contudo, outra coisa a ver na índia além "de cidades mergulhadas em apatia protoplásmica, escondendo ídolos de rosto azul e mil braços, santos mal lavados e deuses empoeirados"; outra coisa a descobrir em certos exercícios musculares dos iogues além da "obsessão hindu com referência às funções alimentares" e a "sexualidade"; outra coisa a dizer a respeito das degradações da hatha-ioga que, além da "mística indiana, ensina a semicerrar o ânus a fim de chegar à união com Brama".
É verdade que os próprios indianos, que me permitam dizer com respeito e amizade, provocam um pouco o sarcasmo ao fazerem desfilar, sucessivamente, para ocupar as noites diante dos terraços dos hotéis, como vi em Benares e outros lugares, o domador de ursos, o encantador de serpentes e o iogue de serviço que faz contorções com ar de recolhimento ou lava publicamente a bexiga, fazendo entrar e sair água pela uretra.

Consciência, princípio e fim das mutações humanas
Tais espetáculos não dão boa ideia, confesso, da "metamorfose da força biológica em força espiritual". Mas não se deve procurar pretexto nessa infantilidade e pobreza para ficar cego diante de outras realidades, concluindo que a "índia com todas as suas aspirações místicas não tem cura espiritual a oferecer aos males da civilização ocidental".
Estamos persuadidos de que, apesar das aberrações, a ioga nos dá uma grande lição, pressentida sem dúvida, mais ou menos conscientemente, por aqueles que procuram a ioga. É essa lição que desejamos reter, pois responde a uma necessidade essencial de nossa época. Os grandes reformadores indianos da ioga no século 19 e começo deste século compreenderam isso perfeitamente quando aceitaram divulgar sua mensagem pelo mundo.
Com extraordinária perspicácia discerniram os primeiros sinais da mutação que a humanidade viveria sob o efeito de suas próprias descobertas. Mas calcularam que essa mutação deveria proceder da transformação das consciências em lugar de resultar da pressão mecânica das condições externas da vida. "Há muitas auroras que ainda não luziram" — dizem os vedas.
O desenvolvimento da consciência fará luzir mundos novos. Com palavras que lembram as de Teilhard de Chardin, Shri Aurobindo escreve: "Todo esse tornar-se infinito é um nascimento do espírito nas formas"; compara a história do mundo à "ascensão em direção a uma alta epifania". Alia-se a André Malraux quando este declara que a tarefa do próximo meio século será reintegrar o espírito no homem e na matéria. A ioga justifica-se assim como "a aventura da consciência e da alegria", como uma aposta sobre a predominância das forças mentais na evolução do universo.


Fonte:
Planeta, nº 12. Editora Três. São Paulo, agosto de 1973, págs. 40-49.

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