terça-feira, 26 de julho de 2016

Raízes da cizânia (Religiosidade)

Raízes da cizânia
Reforma traça a história do maior cisma do cristianismo
Em 20 séculos de existência, a Igreja Cristã experimentou quase todos os tipos de divisões, conflitos internos, manobras políticas e cismas. Mas em um ponto todos os historiadores concordam: nenhum acontecimento teve maior importância do que a Reforma Protestante, que completou 480 anos em outubro do ano passado. No entanto, mesmo depois de tanto tempo, as interpretações sobre o episódio raramente primam pelo equilíbrio. Geralmente, ouve-se falar na Reforma sob três pontos de vista, cada um com suas cotas de bom senso e arroubo, coerência e excesso, razão e delírio. No primeiro, o da assepsia histórica que ignora as convicções religiosas, ela foi uma revolução cultural e social originada num cisma, provocadora de grandes transformações políticas a partir da Europa. No segundo, o do catolicismo conservador, foi um ato de rebeldia, um racha provocado por um herege insubmisso, um certo Martinho Lutero. No terceiro, do protestantismo apaixonado, foi o momento de ruptura, quando os grilhões impostos pelo despotismo dos papas foram finalmente quebrados, e a Igreja tornou-se efetivamente apostólica.
É natural que cada um procure interpretar a Reforma de acordo com os próprios interesses. Mas para compreender as raízes, as circunstâncias e as consequências da Reforma, é preciso esquecer qualquer tipo de paixão ou partidarismo, como fizeram o católico Felipe Fernández-Armesto e o protestante Derek Wilson. Em Reforma (Editora Record) eles deixam de lado as diferenças doutrinárias para abrir juntos todas as perspectivas da História do Cristianismo: o primitivismo da igreja dos apóstolos com suas primeiras cisões, as teologias dos patriarcas, as raízes do pontificado, as contestações de Calvino e seus pares, a reação católica, a formação de sociedades comunais e ordens religiosas, o surgimento de novas igrejas e seitas, o desafio do ecumenismo. Baseando-se em extensa bibliografia, os autores derrubam a tese simplista de que a Reforma Protestante foi um cisma historicamente isolado, causador da formação de igrejas dissidentes. Reforma mostra que, antes da afixação das 95 teses de Martinho Lutero na porta de uma igreja alemã, já havia proto-reformadores como Santo Agostinho, e muitos outros surgiram depois, inclusive dentro do catolicismo.
O maior mérito do livro é apresentar a Reforma, sobretudo, como uma abertura de alternativas para a Cristandade, o que torna a obra um ótimo compêndio sobre o episódio que mudou a trajetória da Igreja e seus efeitos até os dias de hoje. Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson estão longe de esgotar o tema, mas conseguem reunir dados valiosos, geralmente desprezados em livros de editoras religiosas, ao sabor de suas orientações e conveniências. Por exemplo, se Reforma não apresenta Lutero como o super-herói que várias publicações evangélicas sugerem, também não deixa de citar algumas atrocidades cometidas contra os protestantes em nome da doutrina católica.
Os autores só erram na mão na hora de organizar as informações: alguns assuntos são abandonados e retomados diversas vezes em função da divisão do livro em temas institucionais. Com isso, a ordem cronológica fica em segundo plano, o que cria alguma dificuldade na concepção de um quadro histórico lógico. Ainda assim, Reforma é uma obra que seminaristas e pastores devem não apenas ler, mas manter em estante como referência. Afinal, nunca i tarde para reverter a tendência de boa parte da Igreja Evangélica -particularmente da brasileira - de ignorar suas raízes, como se espiritualidade e história fossem princípios conflitantes.


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Fonte:
Revista Vinde. Ano III - Nº 26 - Janeiro de 1993. Editora Vinde. Rio de Janeiro, pág. 74.

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