quinta-feira, 30 de junho de 2016

Júlio Dinis: Vida e Obra

Júlio Dinis: Biografia
Em 12 de Setembro de 1871, escrevia Sousa Viterbo no Jornal do Porto: O país e as boas letras acabam de perder um dos seus mais estimáveis talentos, Joaquim Guilherme Gomes Coelho expirou esta madrugada à uma hora. [...] Foi nas colunas do nosso jornal que o autor d'As Pupilas do Senhor Reitor principiou a sua brilhante carreira literária. Era com a maior avidez que os nossos leitores seguiam os folhetins do Jornal do Porto, quando esses folhetins publicavam as pérolas da nossa literatura que se denominam — As Pupilas do Senhor Reitor, Uma Família Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais. A Providência não quis conceder a Gomes Coelho mais um momento de vida para rever as últimas provas do seu derradeiro romance — Os Fidalgos da Casa Mourisca.
Contudo, o verdadeiro nome do autor destes romances, já então muito popularizados (à exceção do último, só publicado no ano seguinte), pouco diria ao comum dos leitores: estes apenas conheciam Júlio Dinis, pseudônimo com que Gomes Coelho se celebrizou, e que se sobrepôs para sempre à verdadeira identidade do escritor. Portanto, se Gomes Coelho morreu em 1871, tal não aconteceu a Júlio Dinis, pois este revive em cada leitor que, de acordo com a experiência de vida e consoante a época e a cultura, recria os seus romances, quer valorizando aspectos que até então eram considerados secundários, quer relegando para segundo plano o que já fora reputado de interesse preponderante. Assim as obras permanecem vivas e se enriquecem através das gerações; e o pseudônimo, em vez de facilitar o anonimato, projetou no tempo a memória do seu criador.
Efetivamente, o lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Dr. Joaquim Guilherme Gomes Coelho, e Júlio Dinis, o romancista de visão idílica e de técnica realista, eram a mesma pessoa — eis a identificação inesperada que surpreendeu o pai do escritor, ao descobrir o jovem cientista, em 1866, a rever as provas do primeiro romance publicado em volume, As Pupilas do Senhor Reitor. Até esta data, o segredo do pseudônimo fora escrupulosamente guardado, mesmo entre a família, o que demonstra a intenção de separar o médico e b homem de letras, embora, nos seus romances, a experiência do cientista, os seus hábitos de observação e diagnóstico, contribuam para a minuciosa reconstituição de ambientes, e ajudem a definir, por vezes com rigor clínico, a psicologia das personagens.
Nascido em 14 de Novembro de 1839, no Porto, de unta família de alta burguesia (seu pai, o Dr. José Joaquim Gomes Coelho, era médico, e sua mãe, D. Ana Constança Potter Pereira Lopes, descendia de ingleses e de irlandeses, católicos e radicados no Porto por razões comerciais), Joaquim Guilherme Gomes Coelho viveu na cidade natal, onde situa também a ação de um dos seus romances, embora, a partir de 1863, a doença o obrigue a procurar temporariamente regiões climatericamente mais favoráveis. Após longas estadas, cada vez mais frequentes, em localidades do Norte do país, sobretudo em Ovar e Felgueiras, opta pela ilha da Madeira, cujo clima constituía, na época, a derradeira esperança de cura da tuberculose que o ia definhando. Todavia, quando, como médico, se considerou irremediavelmente perdido, regressa ao Porto para morrer. Tinha apenas trinta e dois anos; contudo, idade suficiente para ter alcançado por mérito próprio, evidenciado nos seus trabalhos científicos, uma honrosa categoria universitária; e, o que demonstra ainda melhor a rara aliança do talento à capacidade de trabalho, para nos legar uma obra literária que surpreendeu e terá provavelmente influenciado os dois grandes ficcionistas do século XIX: Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós.
Para este. afinco ao trabalho, esta necessidade de conquistar, sem perda de tempo e com prejuízo da saúde, uma situação profissional de relevo, ao mesmo tempo que, sob pseudônimo, se afirmava o nosso primeiro romancista (Camilo foi pré dominantemente 'novelista), para esta urgência em viver com o fim de realizar algo que perdure, muito deve ter contribuído a ameaça de morte prematura que pairava sobre a família, atingida de um mal hereditário e, então, incurável: a tuberculose, " essa terrível perseguidora da nossa família, à qual nós devemos os únicos infortúnios que nos têm feito sofrer", conforme se lamenta o escritor numa carta.
Com efeito, aos dezesseis anos, o jovem Joaquim Guilherme viu desaparecer, vítimas desta doença e no espaço de alguns meses, dois irmãos (um deles, o mais velho, falecido em 1855, acabara de concluir brilhantemente o curso de Engenharia na Academia Politécnica do Porto); e a mãe também morrera tuberculosa, quando ele tinha apenas cinco anos, como recorda numa das suas primeiras poesias: "E ai daquele que, no alvor da vida, / Perdeu p'ra sempre maternais afagos".
Assim se compreende que os "heróis" dos seus romances apresentem, como característica comum, a orfandade e conservem como ideal-feminino a imagem da mulher-mãe, a única capaz de exercer com firmeza uma doce influência pedagógica sobre caracteres marcados pela extrema afetividade e propensos a certa desorientação moral (Daniel, Carlos, Henrique e Maurício). Também as figuras femininas que se distinguem pela mais acentuada elevação moral e invulgar maturidade de espírito, tais como Margarida, Jenny e Madalena, a Morgadinha dos Canaviais, são órfãs de mãe.
Filho único pela f orça das circunstâncias, criado como pai, temperamento frio e reservado que, segundo o testemunho de familiares, conservava o jovem Joaquim Guilherme a respeitosa distância, a sua situação familiar e as relações que mantinha com o pai devem ter sido transpostas literariamente para Carlos, a principal personagem de Uma Família Inglesa, assim como o caráter de Mr. Whitestone apresenta algumas semelhanças com o dr. Gomes Coelho, conforme já foi referido por biógrafos do escritor.
Após a morte dos irmãos, Júlio Dinis (adotamos, desde já, para comodidade de exposição, o seu pseudônimo), aluno brilhante e distinguido ao longo do curso com vários prêmios, sentiu-se talvez moralmente obrigado a realizar as esperanças que o pai tinha visto prematuramente frustradas nos outros filhos. Só assim se compreende que, apesar de sujeito a hemoptises desde a frequência do 2° ano de Medicina, prosseguisse regularmente os seus estudos ë, terminada a formatura, arruinasse a sua débil constituição física a preparar--se para vencer concursos trabalhosos e renhidos, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde, em 1865, aos vinte e seis anos, ingressa como professor, o que lhe proporcionou, segundo confidencia a um amigo, a maior alegria da sua vida. E, dias depois de ver publicada a sua nomeação para demonstrador da Escola Médica Júlio Dinis dava a notícia ao pai, numa carta que constitui modelo de epistolografia, é que confirma, como se verá pela transcrição parcial, que apresentamos, o seu alto sentido de responsabilidade moral em relação aos sacrifícios a que o pai se sujeitara e aos desgostos que sofrera, e que ele, ao ingressar no corpo docente universitário, pretendia compensar, mesmo com prejuízo da saúde:
[...] Nesta ocasião em que o meu futuro se fixou, não posso deixar de me recordar do muito que devo ao Papá pelos sacrifícios feitos por mim.
Alegra-me duplamente o resultado deste meu empenho porque, com o prazer que me causa, sei que não menos intenso havia de produzir no Papá, que até agora tão improfícuos tinha visto ficarem os seus grandes esforços para a felicidade dos filhos.
Meus irmãos foram privados, não sei por que vistas providenciais, de colherem neste mundo os frutos da esmerada educação que lhes dera. Esse mesmo poder, que os sacrificou tão novos, parece ter-me reservado, como que para realizar em mim a recompensa que lhe merecia a resignação do Papá.
Alegra-me esta ideia e anima-me a acreditar que não me faltará a vida e a saúde para poder cumprir essa missão talvez providencial.
Infelizmente, este voto não se realizou, e, em 19 de Janeiro de 1870, Júlio Dinis, em carta a um amigo, enviada do Funchal, reconhecia lucidamente o fracasso das suas aspirações profissionais:
Uma outra coisa pela qual sinto ter esfriado muito em mim o entusiasmo, é o professorado. A augusta missão oferece-me poucos atrativos, desde que a minha saúde não me permite entregar-me a ela como deve ser. Professor para traduzir compêndios e marcar lições a dedo, não tenho vontade de ser. Confesso-te que, se nessas viravoltas de serviço público e reformas que aí vão, eu pudesse aproveitar ensejo para dizer adeus ao Porto e à toga, não o deixava fugir.
Contudo, os sucessos escolares de Júlio Dinis pareciam fazer prever, desde a adolescência, o futuro lente da Escola Médica. Feita a instrução primária na escola de Miragaia, estuda latim com um padre, ao mesmo tempo que um dos irmãos lhe ensina francês. Após estes estudos preparatórios, frequenta as aulas da Graça (assim eram designados então os cursos públicos do Liceu e da Academia, reunidos no mesmo edifício) e simultaneamente inicia-se no estudo da língua inglesa com um professor particular. No ano letivo de 1853-54, com quinze anos incompletos, Júlio Dinis matricula-se em Química e Matemática, e no ano seguinte termina o estudo de Física e o 2º ano de Matemática com as mais altas classificações; e, após a frequência, em 1855-56, das aulas de Botânica e de Zoologia, inicia o curso de Medicina, na Escola Médico--Cirúrgica do Porto, onde, durante cinco anos, obtém prêmios em várias cadeiras, apesar de, no 2º ano, ter sofrido um ataque de hemoptise, primeiro sintoma da doença que o há de vitimar, após anos de sofrimento físico e moral. Concluído o curso em 1861, nesse mesmo ano apresenta, na defesa de tese, uma notável dissertação que, na opinião de cientistas como o Prof. Egàs Moni, reflete "a preocupação do autor em face do seu mal": Da importância dos estudos meteorológicos para a Medicina e especialmente de suas aplicações ao ramo cirúrgico. Decidido a enveredar pelo professorado, concorre em 1863 ao lugar de demonstrador da secção médica da Escola Médico-Cirúrgica, lugar que só obterá, como já se referiu, em 1865, visto que, em 17 de Abril de 1863, segunda hemoptise abriga-o a abandonar as provas iniciadas e a ir repousar para Ovar, em casa de uma tia. Este acidente e esta data podem considerar-se verdadeiramente o início da carreira de romancista de Júlio Dinis, pois, embora a sua vocação literária, precocemente manifestada, já se tivesse revelado em poesias, obras dramáticas, novelas e um romance, posteriormente publicado com o título de Uma Família Inglesa, é durante a permanência de cinco meses em Ovar que recolhe material para dois dos seus principais romances, As Pupilas do Senhor Reitor e A Morgadinha dos Canaviais, ambos com o subtítulo de Crônica da Aldeia. E, de regresso ao Porto, convencido de que a sua doença fora "mais de imaginação do que real", intensifica a atividade literária, além de se preparar para novos concursos universitários: publica em folhetins no Jornal do Porto a novela Os Novelos da Tia Filomena, posteriormente incluída nos Serões da Província, redige um romance, O Canto da Sereia, conservado inédito, mas que reflete a paisagem de Ovar, localidade onde descobre a aversão à cidade e a atração pelo campo ("Trocar o rumorejar das turbas por o rumorejar das folhas [...], à sombra de árvores e no meio da pura atmosfera e aprazível solidão dos campos, é o ideal dos meus sonhos do futuro, ideal que receio nunca chegue a realizar-se"), e onde a paisagem humana também o impressionou devido à pureza de tipos ("Tenho notado que em Ovar os tipos não degeneraram ainda"), alguns dos quais, tratados literariamente, serão imortalizados nos seus romances. Uma das mais nobres figuras femininas de ficção, em relação à qual o narrador manifesta evidente simpatia, a Margarida de As Pupilas do Senhor Reitor, parece ter-lhe sido inspirada por uma jovem de Ovar, por quem se teria apaixonado e com quem se correspondeu durante algum tempo. E, em carta a um amigo, confidenciava então: "Não te farei uma descrição da minha vida aqui. Mentindo e poetizando um pouco, talvez me fosse possível transformá-la num idílio, que teria a realidade de todos os idílios...". Na poesia "Em Horas Tristes", escrita no Funchal, em 1869, parece efetivamente transparecer a recordação de um idílio campestre, vivido por outro Daniel que, igualmente inconstante e igualmente poeta, fosse também capaz de sentir remorsos: "Ela vivia só naquela aldeia, / Sem ter um coração que a compreendesse. / Passei um dia ali, falei-lhe, amei-a... / Ai, se esses tempos esquecer pudesse! / [...] Parti jurando amá-la toda a vida. / Pude fazer aquele juramento! / Ela ficou chorando-me, iludida, / E eu paguei-lhe a ilusão com o esquecimento. / E ela?... Talvez no coração ferida / Por minha leviandade criminosa, / Vivesse dias de enlutada vida, / Sem ter na terra a sagração de esposa."
Todavia, desde a adolescência que as duas vocações de Júlio Dinis, a científica e a literária, se realizavam simultaneamente, disputando entre si o talento indesmentível daquele que, contudo, sopeio ócios forçados de doente se entregou totalmente à literatura ("hoje a única maneira de minorar os sintomas morais da minha doença, é andar com a cabeça pelos mundos da imaginação", escrevia, do Funchal, em 1869; e posteriormente, acrescentava: "Há poucos momentos de mais felicidade para mim hoje do que aqueles em que me absorve a atenção a composição dum romance").
Assim, ao mesmo tempo que o Dr. Gomes Coelho prosseguia uma carreira universitária brilhante (em 1867, foi promovido a lente substituto e, no mesmo ano, é nomeado secretário e bibliotecário da Escola, tendo também dirigido o observatório meteorológico que, nessa época, se encontrava anexo à Escola Médico-Cirúrgica, Júlio Dinis, nome literário com que, de 1861 a 1864, assina as poesias que publica na revista A Grinalda, dirigida pelo poeta Soares de Passos, torna-se cada vez mais conhecido do público, desde que, em 1862, saem em folhetins, no Jornal do Porto, duas novelas, As Apreensões de uma Mãe e O Espólio do Senhor Cipriano e, em 1864, o conto Uma Flor de entre o Gelo, também em folhetins. Contudo, enquanto colaborou n'A Grinalda, conseguiu manter o anonimato, como já se referiu. (Em Nota à poesia intitulada A. J., a primeira obra a aparecer rubricada com o pseudônimo que o celebrizou, pode ler-se: "Esta poesia foi enviada ao redator da Grinalda [...], assinada com o pseudônimo Júlio Dinis, em 9 de Março de 1861, e publicada no terceiro número daquele jornal. No dia 18 de Março, à noite, o Passos [o poeta Soares de Passos] elogiou-a, sem saber quem era o autor.")
Não foi este, porém, o único pseudônimo sob que encobriu, na atividade literária, a sua verdadeira identidade. Os folhetins, em forma de carta, publicados, de 1864 a 1868, no Jornal do Porto (Cartas a Cecília), tal como a carta em que enaltece a obra de Rodrigo Paganino, e o debate travado com Ramalho Ortigão, em 1863, aparecem assinados com um nome feminino, Diana de Aveleda, mais tentiva de heterônimo do que pseudônimo, visto que o escritor teve a preocupação de se colocar na posição de uma mulher e, de acordo com a mentalidade feminina da época, esforçou-se por exprimir sentimentos, defender ideias, manifestar interesses e qualidades próprias de mulheres. Assim, o pseudônimo parecia corresponder a uma necessidade psicológica do escritor, que se comprazia no anonimato, talvez receoso, pelo menos inicialmente, de ver diminuído o prestígio do cientista pela atividade do homem de letras.
Contudo, Júlio Dinis manifestou muito cedo, entre familiares e amigos, a sua vocação literária. A traído pelo teatro, fazia parte de um grupo de "amadores dramáticos" e, ator aos quinze anos, torna-se também autor, embora as comédias e dramas, escritos dos dezessete aos vinte e um anos e destinados aos espetáculos desse grupo de amigos, que, provavelmente, as encenaram e representaram, se tenham conservado inéditas até à sua morte, só tendo sido publicadas em 1946, devido ao interesse apaixonado de Egas Moniz, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa e Premio Nobel; natural da região de Ovar, este cientista tomou-se o principal biógrafo de Júlio Dinis.
A publicação do Teatro Inédito de Júlio Dinis permite-nos conhecer a data da redação das peças: as primeiras datam de 1856 (um drama, Bolo Quente, e uma comédia, O Casamento da Condessa de Amieira) e as últimas, duas comédias, foram escritas em 1860: Um Segredo de Família e A Educanda de Odivelas. Entre estas datas, Júlio Dinis escreveu outras obras dramáticas: em 1857, três comédias (O Último Baile do Dr. José da Cunha, Os Anéis ou Inconvenientes de Amar às Escuras, As Duas Cartas.) e, em 1858, o drama Um Rei Popular e a comédia em um ato, Similia Similibus, representada pela primeira vez, em 1939, no Teatro Nacional D. Maria II, num espetáculo de homenagem à memória do autor.
Em 1867, a publicação em volume d'As Pupilas do Senhor Reitor constituiu um sucesso surpreendente e consagrou o escritor. Um ano depois, Ernesto Biester adaptou o romance à cena: foi representado em Março, no palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, e Júlio Dinis, "o célebre autor do romance", como já era designado, foi obrigado a subir ao palco, recebendo grande ovação. Popularizado por este primeiro romance, afama do seu nome alastrava. Do Funchal, em Abril de 1869, Júlio Dinis escrevia:
Aqui lera-se já as Pupilas e meia hora depois que desembarquei corria na cidade a notícia da minha chegada. [...] Depois houve quem, não tendo ainda lido o livro, sentisse desejos de o ler por verem o autor. Isto tem dado lugar a cumprimentos na rua [...] que eu dispensava porque não aprendi a responder-lhes.
Entretanto, já outros romances tinham vindo a lume: Uma Família Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais, ambos publicados em volume em 1868, após terem sido divulgados em folhetins; contudo, o próprio autor reconheceu que dificilmente se repetiria o êxito que bafejara o primeiro romance publicado: "A complacência com que foram acolhidas as Pupilas há de ser descontada em todas as publicações que eu fizer".
Entretanto, a doença progredia e a morte aproximava-se. Os dois últimos anos de vida trazem-lhe a descrença e o desespero, como médico e como doente.
As longas estadas no Funchal, isolado, por vezes sem notícias, tornam-no sorumbático, misantropo ("Eu devo passar entre esta gente por um lobo selvagem") e ele próprio se reconhece atacado de hipocondria (" Tenho aqui sofrido repetidos acessos da minha já agora habitual e incurável doença — a melancolia ou mais prosaicamente — a hipocondria"), doença de que se queixa Henrique de Souselas e que o narrador analisa com clarividência clínica no primeiro capitulo deste romance.
Saudoso dos seus hábitos de vida portuense, "daquela vida pachorrenta que eu vivia com meia dúzia de pessoas intimas e com meia dúzia de livros e folhas de papel", pouco sociável e indiferente à vida mundana, Júlio Dinis confessa a um amigo: "para mim só é realmente agradável a convivência com pessoas muito íntimas, com quem se esteja à vontade e despido de tudo que se pareça com etiqueta. Outra qualquer fatiga-me. [...] Por isso tenho também saudades dos nossos cavacos, dos nossos passeios, e dos nossos passatempos...". Também em relação aos escritores da época, se evidencia o mesmo isolamento e um alto grau de "indiferentismo", para usar a sua própria expressão.
Em contrapartida, a tuberculose aumentou-lhe a afetividade e apurou-Ihe a percepção, dando-lhe uma acuidade sensória! e uma perspicácia invulgares, bem evidenciadas não só nos diálogos das suas novelas e romances, mas também nas reflexões que deixou registradas nas suas cartas. Assim, embora a sua vida seja aparentemente monótona, "morna", é rica de "sensações íntimas que constituem os diversos episódios desta segunda vida, que os biógrafos ignoram, mas que a memória do indivíduo que as experimentou retém mais religiosamente do que os fatos sucedidos e fases variadas da vida social". Também o afeto pela família, e em especial a ternura para com a sobrinha, ficaram bem expressos na correspondência, em que sobressai uma página comovente sobre a morte da tia que lhe serviu de mãe, na qual Júlio Dinis se exprime como homem e como escritor, pois a pessoa querida que evoca transforma-se insensivelmente, pelo poder da imaginação do escritor, numa figura típica, síntese de todas as mulheres que, discretamente e sem aparente sacrifício, vivem em completa doação aos outros:
Quando não bastasse uma convivência de muitos anos para me fazer sentir a falta daquela pobre senhora, a lembrança de que, há justamente um ano, eu a via de dia e de noite ao lado do meu leito, como incansável enfermeira, mal pensando em que mais cedo seria vítima do que o doente que desveladamente tratava, essa lembrança não podia deixar de despertar-me as mais vivas saudades. Há em todas as famílias umas modestas criaturas que vivem uma existência obscura no interior das casas e em que nós mal pensamos, quando temos saúde e andamos distraídos por os nossos projetos, mais ou menos ambiciosos, ou sob o domínio de paixões, mais ou menos ardentes. São essas, porém, aquelas com quem afinal nos achamos quando caímos doentes e sentimos que, um por um, nos abandonam aqueles projetos e se amortece o ardor daquelas paixões.
E as figuras femininas que criou, sobretudo as "heroínas" dos seus romances, documentam este ideal de silenciosa abnegação e de inteiro desvelo ao homem que amam, sobre o qual exercem discretamente a sua autoridade moral, tal como afaria uma mãe.
Mas o seu fim aproxima-se. Em Abril de 1871, tem, como médico, a convicção de que está irremediavelmente perdido. E o seu desespero de doente leva-o a mudar radicalmente de vida: instala-se num hotel inglês, um dos mais luxuosos do Funchal, naquela época, e ingere vinho, cerveja, leite, ovos, na ânsia desesperada de sobreviver. No mês seguinte, verificando que não pode alterar a marcha da doença, resigna-se a aceitar o inevitável: De mal com o universo inteiro, como nunca estive, e resolvido a não lutar mais tempo contra a força das coisas, vou procurar um buraco onde me meta e esperar pelo que Deus quiser que venha."
E a morte veio, quando Júlio Dinis, no Porto, em família, trabalhando sempre, revia as provas do seu último romance Os Fidalgos da Casa Mourisca.

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Fonte:
A Morgadinha dos Canaviais, por: Júlio Diniz. Introdução: Maria Ema Tarracha Ferreira. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses. Lisboa, s/d, págs. 7-15.

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