As Alegres Comadres de Windsor
É esta a
mais franca das comedias de Shakespeare: foi pela primeira vez impressa, tal
qual a conhecemos, em 1623; mas antes de chegar a este estado de perfeição atravessou
uma fase intermediária: o primeiro esboço foi impresso em 1602; reimpresso em
1619 e com toda a probabilidade representada em 1601. Singularmente mais curta
que a peça definitiva, era escrita em verso, ao passo que esta é em prosa e
verso. Reza a tradição que foi escrita em catorze dias; e, na verdade, o estoco
mostra bem a pressa com que foi composto. O eruditíssimo M. Halliwel em 1842
ofereceu â Sociedade de Shakespeare uma curiosíssima edição desta primitiva forma
das Alegres Comadres.
A existência
deste esboço e a distância que o separa da peça definitiva provam à saciedade
que Shakespeare não era tão pouco, cioso da sua glória como em gerai sê afirma:
refundiu as Alegres Comadres, como
refundiu o Hamlet, como corrigiu o Romeu. Há muitos fatos que demonstram a
Solicitude que inspiravam a Shakespeare esses filhos da sua inteligência:
quando as suas obras eram representadas (e assim tinham cumprido a obrigação do
ganha-pão), avocava-as a si, e nos seus vagares, nas ternuras da solidão, na
meditação silenciosa, aprazia-se espalhar por sobre elas as belíssimas carícias
do seu gênio, ornamentava-as com todas as joias da sua imaginação, diluía as
imperfeições que um trabalho a pressa tinha deixado escapar, transformando a obra de oficio em obra de arte. Sim,
porque não escrevia só para o teatro, nem para ganhar a vida aquele que
conseguiu refundir completamente as Alegres
Comadres, levando-as ao estado de perfeição em que se encontram — obra
prima — saída dum simples esboço feito à pressa. E este cuidado não o empregou
tão somente no dileto da sua inteligência; mas as suas obras inferiores
mereceram-lhe os mesmos desvelos.
Nas Penas de amor perdidas, obra
evidentemente da sua juventude, acentua-se claramente a diferença das duas
épocas, a primitiva e a retocada; na
Megera domesticada, anônima em 1594, notam-se as mesmas diferenças, o que
leva a crer que foi revista e restaurada com vagar.
As Alegres Comadres nasceram, segundo a verossímil
tradição que Rowe e outros afirmam ser certa, dum capricho da rainha Isabel.
Tinha ela ficado de tal modo encantada com o caráter de Falstaff, nos dois Henriques, que não se conteve de o querer ver mais
uma terceira vez em cena e pediu a Shakespeare para lho apresentar no papel de
amoroso. Em catorze dias Shakespeare, para satisfazer o capricho, esboçou as Alegres Comadres. A tradição
fundamenta-se na escolha do local "Windsor, residência real, a cena dos
amores de Falstaff, as alusões à Jarreteira, as graciosas lisonjarias oficiais
e ainda outras minúcias. É quase certa a data das Comadres.
Ë fora de
dúvida que, foram compostas depois dos dois Henriques;
isto é, depois que Shakespeare enterrou bem enterrado Falstaff; ha uma
particularidade que se explica do modo mais satisfatório e que tem causado
sérios 'embaraços aos comentadores : alguns dos personagens desta peça figuram
nos dois Henriques IV e V; mas é duvidoso que tenham relações do
parentesco entre si. Shakespeare parece ter esquecido o seu estado civil ou não
lho ter nunca estabelecido. O juiz de paz Shallow aparece-nos no segundo Henrique IV como camarada de escola de
Falstaff; um e outro envelheceram: não se compreende que Shakespeare conservasse
Falstaff tão novo nas Comadres como
no Henrique IV, ao passo que Shallow
se apresenta como mais velho. É juiz de paz do cantão de Gloucester e como é
que se encontra em Windsor? Com a sra. Quickly a singularidade ainda é maior. A
sra Quickly das Comadres não tem
nenhum ponto de verossimilhança com a dos Henrique
IV e Henrique V; no Henrique IV tem uma taverna em
East-cheap; nas Alegres Comadres é governante de caius e parece que Falstaff
lhe é completamente desconhecido antes da aventura que é o assunto da peça. No Henrique V desposa Pistol, que a rouba
ao rival Nym; nas Comadres nem Pistol
nem Nym dão mostras de ter ouvido falar dela. Poder-se-á concluir daqui que Shakespeare
esqueceu o estado civil que criou a estes personagens? Mas então as Comadres
precederam os Henriques e seriam a primeira, em data, do ciclo das peças em que
Falstaff figura. Esta opinião, aliás seguida notavelmente por M. Knight e
outros críticos, não é verossímil. Aquele critico assinala 1592 como data das Comadres e para prova da sua asserção
menciona a estada em Windsor dum príncipe alemão: esta alusão, afirma,
refere-se à viagem que nesse ano fez à Inglaterra o duque de
Wurtemberg--Montbelliard, mas esta simples coincidência é de bem pouco peso,
para que sobre ela assente qualquer asserção séria.
Outros
críticos perguntam se a peça deverá ser colocada entre os dois Henriques IV, se depois dos dois Henriques IV, se depois do Henrique V. Se se colocar depois dos
dois Henriques IV, como é que Page, quando recusa a filha a Fenton, dá como
motivo desta recusa ser este personagem companheiro do estouvado príncipe e de Poins? O príncipe ainda não é rei; Henrique IV é quem reina. Maiores
dificuldades surgem, se colocarmos as Alegres Comadres entre os Henriques IV. Q pequeno pajem das Comadres é o que o príncipe Henrique dá
a Falstaff; ora este personagem só
aparece na segunda parte do Henrique IV.
Relativamente ao personagem Pistol, quase sucede o mesmo. Se para evitar
dificuldades colocarmos a peça depois do Henrique
V, têm que ressurgir dos mortos as personagens, pois que Falstaff morre no
começo da peça, Bardolpho e Nym são enforcados pelas suas proezas durante a
campanha da França, e o pajem é morto em Azincourt.
Há,
eletivamente, uma ressurreição de que Shakespeare é autor: Shakespeare compôs
as Alegres Comadres depois do Henrique V, como fica dito e sem deixar
dúvidas, tinha já enterrado Falstaff. Para mais convicção de que as Comadres não foram compostas nem entre
os dois Henriques IV nem depois
destas duas peças, atente-se para os dois personagens Pistol e Nym. Efetivamente
estes dois personagens apresentam-se como antigos conhecimentos do leitor, com
um caráter já formado desde as suas primeiras linhas. Tais caracteres seriam
bruscos, mal ajeitados, se já não fosse conhecida do espectador, não só a
ênfase teatral do Pistol, como a gíria característica de Nym. Pistol não
aparece senão na segunda parte do Henrique
IV, o que destro! a hipótese de que a peça deva figurar entre os Henriques IV, e Nym figura somente no Henrique V, o que destrói a hipótese de
que a peça deva colocar-se depois dos dois dramas consagrados ao primeiro dos
Lancastres.
A tradição
dá cabo de todas, estas dificuldades. Shakespeare, enterrando Falstaff e
companheiros, para satisfazer um desejo da rainha Isabel, operou o milagre da
ressurreição. Falstaff, ressuscitado, não tinha que responder a nenhuma
condição de tempo nem de lugar. Que necessidade havia de e determinar a uma
época precisa, se não se tratava de nenhum fato histórico, mas apenas se
tratava do estudo dum caráter numa determinada situação? Era um estudo
psicológico a que o poeta se propôs e portanto estava no seu direito de dar ao
seu drama o meio o mai,s vago, mais indeterminado e o mais abstrato. O que
sucedeu a Falstaff sucedeu com os outros personagens da peça, já familiares com
o espectador, e que formavam a escolta do pançudo senhor.
Não colheu
Shakespeare elementos para a comédia senão em obras suas; alguns eruditos
querem ver reminiscências numa das novelas Treze
noites de alegria, de Straparole ou na do Pecorone, de Giovanni Fiorentino. É mais que sabido: todos os
caminhos vão dar a Roma, tudo tem semelhanças na natureza e por conseguinte
todas as obras se parecem mais ou menos umas com outras, os nossos sentimentos
harmonizam-se com os de outrem, as nossas paixões não nos pertencem só a nós,
os nossos rostos têm necessariamente outros com feições semelhantes. Nas novelas
de Straparole, exceto numa, é o marido que é ludibriado; nas Comadres é o
amante; naquela em que o amante é tratado como o Falstaff, faz lembrar muito um
certo conto de Boccácio, em que se narra a vingança que um letrado tirou duma
dona que se rira dele, mas foi escrita talvez mais para mostrar a malícia das
mulheres, do que para glorificação da vingança.
As Alegres Comadres são a mais franca
comédia de Shakespeare: nela, o poeta não deu toda a expansão à sua imaginação:
assentou arraiais no local dos ridículos humanos. Independentemente dos méritos
literários, tem valor arqueológico: durante algumas horas vive-se a vida vulgar
da Inglaterra do século XVI. Ressurge perante nós essa pequena cidade de
província inglesa com seus hábitos, costumes, paixões, bonomia, cordialidade, tagarelices,
soalheiros. Eis o gênero da igualdade que nasce naturalmente da aproximação
estreita dos homens de condições diversas apertados num pequeno âmbito; eis o
espírito de fraternidade que nasce das relações de boa vizinhança entre as
famílias que são acordadas pelos sons do mesmo campanário. Que belo tipo de
estalajadeiro, verdadeiro reclamo, cuja gorda aparência indica que participa da
natureza dos alimentos suculentos que prepara, que assobia em dueto com os molhos
das suas caçarolas e canta acompanhado com o zunir das suas panelas! Bem se vê
que exerce a sua arte numa cozinha bem arejada, com as janelas e as portas
abertas, de sorte que o fogo do seu forno excita-lhe o bom humor. É um
estalajadeiro popular; trata a todos por tu, inclusive o seu abade, todos os
seus convivas são sacripantas, põe
nomes os mais engraçados ao seu médico, convida para os seus repastos a
burguesia da vila que o atura com toda a cerimônia, prega a sua partidinha aos
superiores que se vingam sem acreditar que são desconsiderados! O senhor Hugh,
abade gaulês petulante, é também uma excelente pessoa do tempo passado! Que pouco
cuidado tem com o seu caráter sagrado! que raciocínios de sublime pedantismo
faz sobre a importância das suas funções! É perfeitamente um abade da alegre
Inglaterra de outrora; dir-se-ia que os sombrios puritanos ainda não tinham
aparecido ou que a vizinhança da realeza haviam afastado de Windsor as suas
republicanas pessoas. Este pastor que tinha obrigação de pregar juízo aos
paroquianos é tão tolo como eles e toma parte, em todas as suas farsadas,
gulodices e bambochatas. Também é mestre-escola, mas da mesma forma porque os
seus paroquianos poderiam de vez em quando dar-lhe conselhos de bom
comportamento, os seus discípulos também lhe poderiam dar lições de sintaxe
inglesa e de rudimentos de latim. Nem Molière tem tanta i graça, como quando o
rev. Hugh pergunta ao pequeno Page a sua lição. É porventura singular este
pastor de almas e é ele pior do que qualquer outro? A freguesia é também menos
pródiga em escândalos do que qualquer outra. De forma nenhuma. Na sua qualidade
de pastor é o regente da orquestra alegre espalhada pela freguesia e debaixo da
sua batuta todo esse pequeno mundo canta e r, galra e p a, vive alegre e com
saúde, em perfeita igualdade e franca cordialidade, sem que a moral nada perca
por esta alegria exuberante, assim como o prova o jocoso entusiasmo com que
Falstaff é recordado com decoro e decência por essas senhoras virtuosas, sem
arrogância, por esses burgueses honrados, sem louca e falsa gravidade e por
esse abade moral sem pedantismo.
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Fonte:
As Alegres Comadres de Windsor, de William Shakespeare. Tradução: Domingos Ramos. Lello & Irmão Editores. Lisboa, 1947, págs. 5-11.
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