domingo, 17 de julho de 2016

Análise de "As Alegres Comadres de Windsor", de William Shakespeare

As Alegres Comadres de Windsor
É esta a mais franca das comedias de Shakespeare: foi pela primeira vez impressa, tal qual a conhecemos, em 1623; mas antes de chegar a este estado de perfeição atravessou uma fase intermediária: o primeiro esboço foi impresso em 1602; reimpresso em 1619 e com toda a probabilidade representada em 1601. Singularmente mais curta que a peça definitiva, era escrita em verso, ao passo que esta é em prosa e verso. Reza a tradição que foi escrita em catorze dias; e, na verdade, o estoco mostra bem a pressa com que foi composto. O eruditíssimo M. Halliwel em 1842 ofereceu â Sociedade de Shakespeare uma curiosíssima edição desta primitiva forma das Alegres Comadres.
A existência deste esboço e a distância que o separa da peça definitiva provam à saciedade que Shakespeare não era tão pouco, cioso da sua glória como em gerai sê afirma: refundiu as Alegres Comadres, como refundiu o Hamlet, como corrigiu o Romeu. Há muitos fatos que demonstram a Solicitude que inspiravam a Shakespeare esses filhos da sua inteligência: quando as suas obras eram representadas (e assim tinham cumprido a obrigação do ganha-pão), avocava-as a si, e nos seus vagares, nas ternuras da solidão, na meditação silenciosa, aprazia-se espalhar por sobre elas as belíssimas carícias do seu gênio, ornamentava-as com todas as joias da sua imaginação, diluía as imperfeições que um trabalho a pressa tinha deixado escapar, transformando a obra de oficio em obra de arte. Sim, porque não escrevia só para o teatro, nem para ganhar a vida aquele que conseguiu refundir completamente as Alegres Comadres, levando-as ao estado de perfeição em que se encontram — obra prima — saída dum simples esboço feito à pressa. E este cuidado não o empregou tão somente no dileto da sua inteligência; mas as suas obras inferiores mereceram-lhe os mesmos desvelos.
Nas Penas de amor perdidas, obra evidentemente da sua juventude, acentua-se claramente a diferença das duas épocas, a primitiva e a retocada; na Megera domesticada, anônima em 1594, notam-se as mesmas diferenças, o que leva a crer que foi revista e restaurada com vagar.
As Alegres Comadres nasceram, segundo a verossímil tradição que Rowe e outros afirmam ser certa, dum capricho da rainha Isabel. Tinha ela ficado de tal modo encantada com o caráter de Falstaff, nos dois Henriques, que não se conteve de o querer ver mais uma terceira vez em cena e pediu a Shakespeare para lho apresentar no papel de amoroso. Em catorze dias Shakespeare, para satisfazer o capricho, esboçou as Alegres Comadres. A tradição fundamenta-se na escolha do local "Windsor, residência real, a cena dos amores de Falstaff, as alusões à Jarreteira, as graciosas lisonjarias oficiais e ainda outras minúcias. É quase certa a data das Comadres.
Ë fora de dúvida que, foram compostas depois dos dois Henriques; isto é, depois que Shakespeare enterrou bem enterrado Falstaff; ha uma particularidade que se explica do modo mais satisfatório e que tem causado sérios 'embaraços aos comentadores : alguns dos personagens desta peça figuram nos dois Henriques IV e V; mas é duvidoso que tenham relações do parentesco entre si. Shakespeare parece ter esquecido o seu estado civil ou não lho ter nunca estabelecido. O juiz de paz Shallow aparece-nos no segundo Henrique IV como camarada de escola de Falstaff; um e outro envelheceram: não se compreende que Shakespeare conservasse Falstaff tão novo nas Comadres como no Henrique IV, ao passo que Shallow se apresenta como mais velho. É juiz de paz do cantão de Gloucester e como é que se encontra em Windsor? Com a sra. Quickly a singularidade ainda é maior. A sra Quickly das Comadres não tem nenhum ponto de verossimilhança com a dos Henrique IV e Henrique V; no Henrique IV tem uma taverna em East-cheap; nas Alegres Comadres é governante de caius e parece que Falstaff lhe é completamente desconhecido antes da aventura que é o assunto da peça. No Henrique V desposa Pistol, que a rouba ao rival Nym; nas Comadres nem Pistol nem Nym dão mostras de ter ouvido falar dela. Poder-se-á concluir daqui que Shakespeare esqueceu o estado civil que criou a estes personagens? Mas então as Comadres precederam os Henriques e seriam a primeira, em data, do ciclo das peças em que Falstaff figura. Esta opinião, aliás seguida notavelmente por M. Knight e outros críticos, não é verossímil. Aquele critico assinala 1592 como data das Comadres e para prova da sua asserção menciona a estada em Windsor dum príncipe alemão: esta alusão, afirma, refere-se à viagem que nesse ano fez à Inglaterra o duque de Wurtemberg--Montbelliard, mas esta simples coincidência é de bem pouco peso, para que sobre ela assente qualquer asserção séria.
Outros críticos perguntam se a peça deverá ser colocada entre os dois Henriques IV, se depois dos dois Henriques IV, se depois do Henrique V. Se se colocar depois dos dois Henriques IV, como é que Page, quando recusa a filha a Fenton, dá como motivo desta recusa ser este personagem companheiro do estouvado príncipe e de Poins? O príncipe ainda não é rei; Henrique IV é quem reina. Maiores dificuldades surgem, se colocarmos as Alegres Comadres entre os Henriques IV. Q pequeno pajem das Comadres é o que o príncipe Henrique dá a Falstaff; ora este personagem só aparece na segunda parte do Henrique IV. Relativamente ao personagem Pistol, quase sucede o mesmo. Se para evitar dificuldades colocarmos a peça depois do Henrique V, têm que ressurgir dos mortos as personagens, pois que Falstaff morre no começo da peça, Bardolpho e Nym são enforcados pelas suas proezas durante a campanha da França, e o pajem é morto em Azincourt.
Há, eletivamente, uma ressurreição de que Shakespeare é autor: Shakespeare compôs as Alegres Comadres depois do Henrique V, como fica dito e sem deixar dúvidas, tinha já enterrado Falstaff. Para mais convicção de que as Comadres não foram compostas nem entre os dois Henriques IV nem depois destas duas peças, atente-se para os dois personagens Pistol e Nym. Efetivamente estes dois personagens apresentam-se como antigos conhecimentos do leitor, com um caráter já formado desde as suas primeiras linhas. Tais caracteres seriam bruscos, mal ajeitados, se já não fosse conhecida do espectador, não só a ênfase teatral do Pistol, como a gíria característica de Nym. Pistol não aparece senão na segunda parte do Henrique IV, o que destro! a hipótese de que a peça deva figurar entre os Henriques IV, e Nym figura somente no Henrique V, o que destrói a hipótese de que a peça deva colocar-se depois dos dois dramas consagrados ao primeiro dos Lancastres.
A tradição dá cabo de todas, estas dificuldades. Shakespeare, enterrando Falstaff e companheiros, para satisfazer um desejo da rainha Isabel, operou o milagre da ressurreição. Falstaff, ressuscitado, não tinha que responder a nenhuma condição de tempo nem de lugar. Que necessidade havia de e determinar a uma época precisa, se não se tratava de nenhum fato histórico, mas apenas se tratava do estudo dum caráter numa determinada situação? Era um estudo psicológico a que o poeta se propôs e portanto estava no seu direito de dar ao seu drama o meio o mai,s vago, mais indeterminado e o mais abstrato. O que sucedeu a Falstaff sucedeu com os outros personagens da peça, já familiares com o espectador, e que formavam a escolta do pançudo senhor.
Não colheu Shakespeare elementos para a comédia senão em obras suas; alguns eruditos querem ver reminiscências numa das novelas Treze noites de alegria, de Straparole ou na do Pecorone, de Giovanni Fiorentino. É mais que sabido: todos os caminhos vão dar a Roma, tudo tem semelhanças na natureza e por conseguinte todas as obras se parecem mais ou menos umas com outras, os nossos sentimentos harmonizam-se com os de outrem, as nossas paixões não nos pertencem só a nós, os nossos rostos têm necessariamente outros com feições semelhantes. Nas novelas de Straparole, exceto numa, é o marido que é ludibriado; nas Comadres é o amante; naquela em que o amante é tratado como o Falstaff, faz lembrar muito um certo conto de Boccácio, em que se narra a vingança que um letrado tirou duma dona que se rira dele, mas foi escrita talvez mais para mostrar a malícia das mulheres, do que para glorificação da vingança.
As Alegres Comadres são a mais franca comédia de Shakespeare: nela, o poeta não deu toda a expansão à sua imaginação: assentou arraiais no local dos ridículos humanos. Independentemente dos méritos literários, tem valor arqueológico: durante algumas horas vive-se a vida vulgar da Inglaterra do século XVI. Ressurge perante nós essa pequena cidade de província inglesa com seus hábitos, costumes, paixões, bonomia, cordialidade, tagarelices, soalheiros. Eis o gênero da igualdade que nasce naturalmente da aproximação estreita dos homens de condições diversas apertados num pequeno âmbito; eis o espírito de fraternidade que nasce das relações de boa vizinhança entre as famílias que são acordadas pelos sons do mesmo campanário. Que belo tipo de estalajadeiro, verdadeiro reclamo, cuja gorda aparência indica que participa da natureza dos alimentos suculentos que prepara, que assobia em dueto com os molhos das suas caçarolas e canta acompanhado com o zunir das suas panelas! Bem se vê que exerce a sua arte numa cozinha bem arejada, com as janelas e as portas abertas, de sorte que o fogo do seu forno excita-lhe o bom humor. É um estalajadeiro popular; trata a todos por tu, inclusive o seu abade, todos os seus convivas são sacripantas, põe nomes os mais engraçados ao seu médico, convida para os seus repastos a burguesia da vila que o atura com toda a cerimônia, prega a sua partidinha aos superiores que se vingam sem acreditar que são desconsiderados! O senhor Hugh, abade gaulês petulante, é também uma excelente pessoa do tempo passado! Que pouco cuidado tem com o seu caráter sagrado! que raciocínios de sublime pedantismo faz sobre a importância das suas funções! É perfeitamente um abade da alegre Inglaterra de outrora; dir-se-ia que os sombrios puritanos ainda não tinham aparecido ou que a vizinhança da realeza haviam afastado de Windsor as suas republicanas pessoas. Este pastor que tinha obrigação de pregar juízo aos paroquianos é tão tolo como eles e toma parte, em todas as suas farsadas, gulodices e bambochatas. Também é mestre-escola, mas da mesma forma porque os seus paroquianos poderiam de vez em quando dar-lhe conselhos de bom comportamento, os seus discípulos também lhe poderiam dar lições de sintaxe inglesa e de rudimentos de latim. Nem Molière tem tanta i graça, como quando o rev. Hugh pergunta ao pequeno Page a sua lição. É porventura singular este pastor de almas e é ele pior do que qualquer outro? A freguesia é também menos pródiga em escândalos do que qualquer outra. De forma nenhuma. Na sua qualidade de pastor é o regente da orquestra alegre espalhada pela freguesia e debaixo da sua batuta todo esse pequeno mundo canta e r, galra e p a, vive alegre e com saúde, em perfeita igualdade e franca cordialidade, sem que a moral nada perca por esta alegria exuberante, assim como o prova o jocoso entusiasmo com que Falstaff é recordado com decoro e decência por essas senhoras virtuosas, sem arrogância, por esses burgueses honrados, sem louca e falsa gravidade e por esse abade moral sem pedantismo.


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Fonte:
As Alegres Comadres de Windsor, de William Shakespeare. Tradução: Domingos Ramos. Lello & Irmão Editores. Lisboa, 1947, págs. 5-11.

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