quinta-feira, 21 de julho de 2016

Rock, o grito e o mito

Rock, o grito e o mito
Por: Roberto Mnggiati
De Elvis Presley a Alice Cooper, o rock sofreu profundas modificações.
Os Beatles, que revolucionaram o mundo, hoje parecem inocentes sacristãos diante de Jim Morrison, Frank Zappa, Mick Jagger, Rolling Stones, David Bowie. Rock é contestação, política, escapismo, sexo. Já foi drogas. Antes de morrer, Jimi Hendrix dizia: "A onda de drogas chegou ao fim". Bob Dylan abandonou a onda em 1968. E John Lennon afirmou: "Não deixe que o enganem com drogas e cocaína". O caráter sexual e liberatório da música pop, do rock, é mostrado aqui em toda a sua evolução, de 1950 a 1973.
Salvador Dali, famoso por suas frases de efeito, tem também uma sobre a música pop: "Amo o rock'n roll como amo tudo que é dionisíaco, violento e afrodisíaco". Dali, como de costume, está apenas gozando. Mas a imagem que ele oferece coincide, de certa forma, com as simplificações do establishment. Nos anos de 1950, a música de Elvis Presley era sinônimo de delinquência juvenil. Na década de 1960, a palavra rock evoca, invariavelmente, o binômio sexo/drogas. Dionisíaco. Violento. Afrodisíaco. A relação entre rock e sexo, entre rock e drogas, é bem mais complexa e exige uma análise fenomenológica profunda. É verdade que os músicos são os primeiros a admitir uma ligação. "Políticos eróticos é o que somos", dizia Jim Morrison, do grupo The Doors, processado em 1968 por.ter levado muito a sério esta sua declaração de princípios, simulando masturbar-se quando cantava diante de um público adolescente na Flórida. Janis Joplin encarava todo concerto de rock como "um ato sexual" e dizia: "Eu canto com minha voz, com o meu corpo, com o sexo — eu canto toda". Ray Charles fala parecido ao descrever a sua música: "Soul é o modo de entrar numa canção e fazer a canção entrar na gente; fazer dela uma parte de nós mesmos, mas uma parte real, concreta, quase tangível". E Mick Jagger, dos Rolling Stones, descreve o que experimenta durante a apresentação ao vivo: "A gente sente a adrenalina subindo pelo corpo. É uma coisa muito sexual e a energia parece transbordar daquelas plateias imensas e trepidantes de Nova York, de Chicago, da Califórnia".
As alas mais radicais do Women's Lib encaram ó rock — música, letras e cantores, indistintamente — como um instrumento machista de dominação. Mas há um fato irreversível: a música pop e sua mitologia provocaram uma importante mudança nas atitudes sexuais das novas gerações. Ainda que apenas no plano da imagem, o músico de rock adotou e divulgou o modelo unissex, derrubando o estereótipo masculino tradicional e assumindo o que Eldridge Cleaver, ao falar dos Beatles, chama de "coroa caucasoide da feminilidade".
Mick Jagger — que já apelidaram de "Myra Breckinridge da Nação de Woodstock" — reconhece: "Devo tudo à minha ambiguidade, à cara de rapazinho linfático desencantado, à feminilidade adotada". E o guru do teatro inglês, Kenneth Tynan, autor de Oh, Calcutta!, aponta nos Rolling Stones "a ambiguidade ostentada com furor quase ideológico: como uma bandeira, uma provocação irônica, uma espécie de rebeldia sarcástica. Elegância muito feminina, exagerada até um travestismo capaz de provocar apoplexia mesmo num Krafft-Ebing". No grupo de Alice Cooper (Alice é homem), todos os integrantes (homens) se apresentam travestidos, com cílios postiços e minissaias. Alice explica esta sua deliberada ambiguidade sexual: "As pessoas ficam surpresas quando entram em contato com a gente e verificam que somos homens de verdade.
É muito simples. Todo mundo é parte homem, parte mulher, e você tem que aceitar as duas partes da sua personalidade se quiser que a cuca ande direito. É a lei natural. As pessoas que se sentem ameaçadas por nós, na verdade nunca estudaram a fundo sua própria sexualidade. Mas, depois de nos verem cantar, sempre levam alguma coisa pra ruminar em casa". Na linguagem de Jung, é o homem assumindo o componente feminino do seu ser, a anima. Foi a imagem dos músicos de rock que popularizou entre os jovens o uso de cabelos compridos e de roupas anticonvencionais.

Sexo e música
O modelo unissex, na música pop, é promovido principalmente no plano da cenografia. Mas também não faltam, nas letras das canções, alusões de natureza sexual. O próprio rótulo rock'n roll é uma expressão quase direta do ato, tendo sido tirado de um velho blues que diz "My daddy he rocks me with a steady roll" — "Meu homem me embala com um balanço legal". O establishment de McCarthy reagiu ao rock de Elvis como se reagia, 30 anos antes, ao jazz, cujo nome veio da palavra jass, gíria carregada de conotações copulatórias. No empenho historicista de atribuir um local e uma data exatos ao nascimento do jazz, a crítica ortodoxa decretou que esse estilo de música tinha surgido a partir de 1900 em Storyville, o "bairro da luz vermelha" de Nova Orleans, ou seja, dos bordéis, descrito por um sociólogo como "40 ou 50 quarteirões de sexo e música".
Essa associação entre música e sexo é uma constante na história do Jazz e, depois, do,, rock. E as distorções são sintomáticas. Em 1955, o crítico W. J. Henderson escrevia sobre o jazz: "Esta música gritante evoca uma orquestra de loucos, de maníacos sexuais, regida por um garanhão que marca o compasso com um enorme falo". (O falo, na verdade, estava na cabeça do crítico.)

Num tom parecido, afirma dez anos mais tarde o dr. Calvin Seerveld, professor de teologia do Trinity College de Chicago: "Os ritmos da canção dos Beatles A Hard Day's Night não passam de uma sinistra expressão da mais profunda volúpia". Em meados da década de 1950, Elvis the Pelvis só tem permissão de aparecer na TV, no famoso Ed Sullivan Show, mostrado da cintura para cima, porque sua ginga era considerada "obscena".
Dez anos depois, o mesmo Ed Sullivan, antes de apresentar os Rolling Stones ao público americano, exigiu, entre outras coisas, que eles trocassem a letra da canção Lefs Spend the Night Together? (Vamos Passar a Noite Juntos?) para Lefs Spend Some Time Toghether? (Vamos Passar Um Tempo Juntos?).

Impotência da sociedade moderna
O repertório dos Rolling Stones é um verdadeiro erotikon e, se o grande tema da suas canções é a alienação humana, o assunto certamente é sexo. Um dos seus maiores sucessos, a música que ajudou a firmar a sua imagem, chama-se (l Cant't Get No) Satisfaction, o comentário cáustico sobre a impotência na sociedade moderna. Nos concertos, Mick Jagger rebola com a malícia de um travesti e manipula o microfone fálico com mil insinuações. Jim Morrison e Janis Joplin também não faziam por menos em suas apresentações públicas e Jimi Hendrix costumava violentar a guitarra num ato de amor e ódio, tocando-a com os dentes, entre as pernas, acariciando-a como se fosse uma mulher.
Durante um de seus concertos em Nova York, o grupo de Frank Zappa, The Mothers of Invention, levou para o palco um enorme balão que ia inflando e levantando à medida que crescia a tensão da música, para explodir com os acordes finais num orgasmo simbólico. Mais recentemente, Alice Cooper tem feito encenações dignas do marquês de Sade, incluindo um enforcamento simulado e outras acrobacias de Grand Guignol.
A grande sensação pop no momento é o inglês David Bowie, cujo LP The Rise and Fali of Ziggy Stardust estourou nas paradas. Seu conjunto se chama As Aranhas de Marte e o estilo é apregoado, nos textos fornecidos à imprensa por sua gravadora, a RCA, como "rock bissexual".
Diante de tudo isso, os Beatles não passam de inofensivos sacristãos. Mas, nos idos de 1965, o deputado republicano James B. Utt (Califórnia) não pensava assim: "Os Beatles e seus imitadores usam técnicas pavlovianas para produzir neuroses artificiais em nossos jovens. Experiências sérias sobre hipnose e ritmo mostraram que a música de rock conduz a uma destruição do mecanismo inibitório normal do córtex cerebral e permite fácil aceitação da imoralidade, bem como o desrespeito de todas as normas morais". As correntes psicológicas modernas, porém, encaram o rock de maneira mais aberta, como mostram as afirmações do sexólogo americano Herb Gold-berg: "Esta música oferece uma visão importante da consciência dos jovens, de seu modo mais franco e direto de expressão sexual, de suas mudanças nas expectativas e atitudes com relação ao papel e comportamento sexual de cada um, bem como uma visão da nova filosofia da mulher".
Embora a ligação entre rock e sexo se mostre cada vez mais marcada, o fenômeno resiste a interpretações fáceis. Os estudos publicados sobre música-e-sexualidade não chegam a mais de uma dezena e todos, menos um, voltam-se exclusivamente para a música clássica. O que é pior, não oferecem nenhuma análise satisfatória, tocando apenas a superfície da questão. Um deles, The Influence of Music on Behaviour, de C. M. Diserens, observa: "A música atua sobre o corpo humano da seguinte maneira: 1) aumenta o metabolismo; 2) aumenta ou diminui a energia muscular; 3) acelera a respiração e diminui sua regularidade; - ) produz um efeito marcado, mas variável, no volume do sangue, pulso e pressão sanguínea; 5) diminui a abertura para estímulos sensoriais de modalidades diferentes". Mas isso também não chega a provar grande coisa. Já a antropologia mostra que vários tipos de instrumentos musicais tiveram sua origem em símbolos sexuais, ou seja, na representação dos órgãos genitais. Uma das principais funções da música nas sociedades primitivas era celebrar os rituais de sexo e fertilidade. Segundo Darwin, a fala humana não antecedeu a música, mas derivou dela. O canto, para Darwin, era um dos meios de atração "galanteio" visando ao acasalamento; a fala só veio depois, como um desenvolvimento socialmente disciplinado do que no início era apenas linguagem sexual. Assim, a música seria o código de comunicação sexual por excelência, e a fala um mero derivado desse código, sua versão amenizada para fins de organização coletiva.

O grito africano, a tradição europeia
O  rock  é  dionisíaco,  diz Salvador  Dali. Nietzsche — que foi quem lançou sem querer essa brincadeira de dividir tudo em dois times, apolíneos e dionisíacos — escreveu, quando Wagner trovejava nos céus da Europa, que "a arte deve sua evolução contínua à dualidade apolíneo-dionisíaca, assim como a propagação da espécie depende da dualidade dos sexos". Para Nietzsche, Apoio é o domínio do sonho, Dionísio o da intoxicação. E foi a fusão dos dois domínios, operada pela música, que conduziu ao apogeu da tragédia grega. Dionísio está no grito que o africano trouxe para a América. Apoio, na tradição musical europeia que o negro encontrou na sua nova terra. Da fusão do grito africano com a tradição europeia nasceu este equivalente moderno da tragédia grega: o blues. E a dualidade apolíneo-dionisíaca no rock, extensão natural do blues. O interessante é que, na transição de Elvis para os Beatles, o rock perdeu sua função de dança, ou seja, passou de dionisíaco para apolíneo.
O líder dos Panteras Negras, Eldridge Cleaver, assim definiu o efeito do rock sobre a cultura americana: "Foi um míssil teleguiado lançado do gueto em cheio no coração da subúrbia. Deu aos brancos a possibilidade de reivindicar de novo seus corpos, depois de gerações de existência alienada e incorpórea". Com Elvis, a dança dionisíaca do rock'n roll se apoderou dos corpos da juventude da classe média branca da América. Nos anos de 1960, porém, a ênfase foi apolínea. Mas a força dionisíaca persiste, embora a canção-de-protesto de Bob Dylan e o rock dos Beatles não sejam mais música de dança.
Cleaver explica: "Os Beatles ignoravam o corpo no plano visual, enquanto sua música, pelo contrário, estava cheia de corpo. Para os fãs, alienados por tanto tempo e tão profundamente de seus corpos, o efeito desses ritmos eróticos potentes foi elétrico. Nesta música o negro projetou — quase sugada, como o pus de uma ferida — uma sensualidade poderosa, sua dor e seu desejo, seu amor e seu ódio, sua ambição e seu desespero. O negro projetou em sua música seu próprio corpo. Os Beatles, os quatro garotos cabeludos de Liverpool, ofereceram como sua dádiva o corpo do negro e, ao fazerem isso, estabeleceram uma comunicação rítmica entre o ouvinte e sua própria mente e corpo".

Já nascemos embotados
A ligação entre música e percepção é o tema central da ópera-rock Tommy, do grupo inglês The Who. Composta pelo guitarrista Pete Townshend, Tommy é a história de um garoto que nasce cego-surdo-mudo, com os sentidos bloqueados, alusão clara aos condicionamentos que desde cedo nos reprimem: já nascemos embotados, ou quase. A família leva Tommy a dezenas de médicos, curandeiros e milagreiros. Nada acontece. Um dia, porém, ele sorve uma porção lisérgica e passa imediatamente a ver-ouvir-falar-sentir.
O refrão cantado por Roger Daltry, See me, feel me, touch me, heal me, é um apelo em favor da abertura das percepções, do descondicionamento e da libertação dos sentidos. Nota-se na frase uma superposição dos diversos "modos" sensoriais, efeito conhecido como sinestesia. A sinestesia ocorre quando o estímulo que atua sobre um canal sensorial parece evocar imagens de outro canal tão prontamente como se fossem sensações do mesmo "modo". O mecanismo da sinestesia ocupa o centro de uma das grandes discussões que marcaram certa etapa da música pop: o problema das drogas.
E a época que começa com o aparecimento eufórico e florido dos hippies em Haight-Ashbury ao som do "rock de San Francisco", (1967), conhece o seu apogeu em Woodstock no verão dos festivais (1969) c declina rapidamente com o desastre dos Rolling Stones em Altamont, o assassinato de Sharon Tate pela "família Manson" e as mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin (1970) e Jim Morrison (1971). Em seu estudo Music and Communication, Terence McLaughlin define a sinestesia como "qualquer erro do cérebro na sua interpretação da massa de dados sensoriais que nossos olhos, ouvidos, órgãos do tato, do olfato etc., enviam continuamente para os centros cerebrais".
Na vida "normal" a sinestesia se manifesta sob a forma de pequenas alucinações, como a sensação muito comum de queda física que se tem ao adormecer. Essas manifestações de certa forma equivalem, no plano sensorial, aos atos-falhos e lapsos-de-linguagem que Freud observou em seus estudos sobre a "psicopatologia do cotidiano". Prossegue McLaughlin: "É provável que as drogas psicotrópicas como LSD atuem, pelo menos parcialmente, inibindo a ação daqueles censores mentais que nos impedem de dar atenção a nossas visões. A associação sinestésica entre a música e os outros modos sensoriais há muito tempo vem sendo reconhecida e discutida".

Os efeitos sensoriais
Aldous Huxley trouxe prestígio científico e validade literária ao debate das drogas com seu livro As Portas da Percepção (The Doors of Perception, 1954) e dizem até que o grupo The Doors escolheu esse nome para de 1968 e John Lennon, cujos pronunciamentos sempre causaram impacto na contracultura, definiu sua posição na canção I Found Out, do famoso LP-sem-título, cuja letra em tradução livre diz: "Saquei qual f rã dos drogados, passei por tudo isso / Vi religião de Jesus a Paul / Não deixe que o enganem com droga e cocaína / Não lhe fará nenhum mal assumir sua própria dor". Para Jimi Hendrix, quem está entorpecido, narcotizado pelo consumo, é o homem unidimensional da sociedade repressiva, que não pensou sequer em abrir as portas da percepção. Hendrix tentou arrombá-las com o seu som frenético, obsessivo, lírico. A libertação dos canais sensoriais da raça humana é uma das principais funções da música. Pode-se mesmo falar de um inconsciente auditivo, que apenas começa a ser trabalhado pelo homem. Nietzsche aludia a "pessoas que se comunicam com as coisas quase que inteiramente através de relações musicais inconscientes".
E o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss afirma: "Todos sabem que a música é um meio de comunicação. Quando ouvimos música comunicamos com o compositor; comunicamos com os músicos; e comunicamos, juntos, partilhando a mesma emoção, com os membros da audiência. Mas esse tipo de linguagem não pode ser traduzido em nenhuma coisa senão em si mesma. Pode-se traduzir música em música. Pode-se modular a melodia de maior para menor. Pode-se até chegar a uma equação matemática que permita modificar segundo uma certa regra o intervalo das notas de uma melodia e obter assim uma nova tradução. Mas não se pode traduzir a música em palavras; se se tentar fazer isso, resultará uma fraseologia que nada transmite da mensagem musical. Também não se pode traduzir o mito. Mitos são traduções uns dos outros e a única maneira de entender um mito é mostrar como uma tradução dele é oferecida por outro mito diferente. Por isso, existe algo muito semelhante entre mitologia e música". Atuando sobre o inconsciente auditivo, o rock elabora a mitologia do seu tempo. Não foi à toa que chamaram a música de Bob Dylan e dos Beatles de "as canções de gesta da era espacial". Mas o guitarrista Eric Clapton é quem define a questão por meio de palavras bem mais simples: "Nosso problema é universal: como encontrar a paz numa sociedade hostil. Queremos exprimir essa busca através de nossa música, pois ela é a nossa voz mais eloquente".


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Fonte:
Planeta, nº 10. Editora Três. São Paulo, junho de 1973, págs. 21-29.

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