Para uma Definição de Sociologia; Ordem
Social, Desordem e Mudança
Se
quiséssemos exigir que o problema básico a que se dirige o sociólogo fosse
descrito em uma única frase, responderíamos; procura explicar a natureza da
ordem social e da desordem social.
A sociologia
aceita, como todas as outras perspectivas fundamentalmente científicas, a
suposição de que existe ordem na natureza, de que essa ordem pode ser
descoberta, descrita e compreendida. Assim como as leis da física descrevem a
ordem subjacente, que governa a relação dos objetos físicos, a astronomia a
ordem do sistema planetário, a geologia a ordem subjacente à história e à
estrutura atual da terra, também a sociologia procura descobrir, descrever e
explicar a ordem que caracteriza a vida social do homem.
Quando
falamos de ordem, queremos dizer que os acontecimentos ocorrem numa sequência
ou padrão mais ou menos regulares, de forma que podemos fazer uma afirmação
empiricamente verificável a respeito da relação entre dois acontecimentos, em
determinados momentos de tempo, sob condições especificadas. A sociologia lida
com muitas dessas formas de ordem, que variam grandemente em escala, mas onde
cada uma tem, fundamentalmente, o mesmo caráter.
O problema
talvez seja mais evidente no nível da maior unidade com que a sociologia
geralmente lida, isto é, a nação-estado ou outra forma de sociedade em larga
escala. Coletivamente, os membros de uma grande sociedade realizam milhões ou
mesmo bilhões de atos sociais, durante um único dia. Apesar disso, o resultado
não é tumulto, confusão total e caos, mas, ao contrário, uma razoável
aproximação de ordem. Esta ordem permite que cada indivíduo siga seu caminho
pessoal, sem interferir seriamente na busca que outros fazem de seus objetivos
e intenções. Na realidade, essa ordem geralmente assegura que cada um possa
efetivamente facilitar até certo ponto a realização, pelos outros, de seus
objetivos. O objeto fundamental da sociologia é explicar como ocorre isso, como
certo grau razoável de coordenação de ações de indivíduos tão diversos permite
a corrente rotineira da vida social. Quando dizemos que existe um sistema
social, referimo-nos à coordenação e à integração de atos sociais que permitem
a sua ocorrência de forma a provocar ordem e não caos.
Como a nossa
acentuação de ordem pode ser facilmente mal compreendida, apressamo-nos a
acrescentar, logo e enfaticamente, que delinear a natureza da ordem social não
é necessariamente aprová-la ou justificá-la. Um governo totalitário também
desenvolve uma ordem social. Um sociólogo que a estuda pode explicar o papel do
partido monolítico na monopolização do poder político. Pode mostrar como os
meios de comunicação de massa são empregados para mobilizar a opinião pública e
criar a aparência de acordo, ou expor o papel que o terror da polícia secreta
desempenha para permitir que a elite consiga o controle social. Ao fazê-lo
evidentemente não está justificando, desculpando, nem, na realidade, de
qualquer forma julgando a ordem social de que trata. Certamente, o sociólogo
pode ser estimulado, pelos seus valores, a estudar e acentuar um e não outro
problema em tal sistema. Ao fazer o trabalho de análise, também dá, aos que não
conhecem o sistema, uma base para formar seu julgamento moral e político. Mas
tal julgamento não deve ser confundido com a tarefa separada de descrever a
ordem básica, através da qual, bem ou mal, um sistema social específico se
mantém em operação.
O interesse
do sociólogo pelo problema da ordem não deve levar alguém a supor que ele não
tem interesse ou responsabilidade pelo estudo das manifestações de desordem.
Nenhum sistema social funciona impecavelmente, qualquer que seja a perspectiva
para vê-lo. Certamente, nenhum sistema social é perfeito do ponto de vista de
todos os seus membros. É endêmico na vida social que algumas normas não sejam
obedecidas, alguns valores não sejam satisfeitos, alguns objetivos não sejam
atingidos. Na realidade, em qualquer sociedade pode haver domínios importantes
em que a maioria transgride o padrão social ou legalmente aceito, e
frequentemente com grandes prejuízos de vida. Uma viagem em qualquer das
estradas dos Estados Unidos, num fim de semana do Dia do Trabalho, será
suficiente para esclarecer isso. Quase todas as sociedades conhecem períodos,
às vezes longos, de perturbações, guerra civil, violência de multidões, terror,
crime e desorganização geral. Cada uma dessas manifestações é um afastamento
com relação a uma ordem social já estabelecida, ou, no caso de uma contrarrevolução,
uma ordem que procura restabelecer-se. E mesmo a desordem não é necessariamente
caos.
Tanto na
vida individual quanto na vida coletiva existem forças "naturais" que
favorecem a ordem e a estabilidade, e outras forças igualmente
"naturais" que favorecem desordem, conflito e perturbação. O
equilíbrio entre tais forças pode ser muito diferente em diversas épocas. É
questão de preferência, de inclinação ou de orientação filosófica o fato de
você preferir ver o mundo como um lugar intrinsecamente num estado de desordem,
em luta para obter certa ordem, ou um lugar normalmente numa condição de ordem,
mas sujeito a constante perturbação e ameaça de desordem. Pessoalmente,
satisfaço-me com pensar que a suposição da ordem como a condição básica do
homem é mais adequada para os fatos existentes e para a análise real. Essa
suposição está muito longe de afastar a importância do estudo dos frequentes e
importantes mergulhos do homem em um estado de relativa desordem. Acentuo
"relativa", pois sem certa ordem, mesmo em condições de aparente
desordem geral, o homem deixaria de sobreviver. Algumas sociedades
persistentemente deixaram de resolver o problema da manutenção da ordem e se
dissolveram, os seus membros se dispersaram,, absorvidos em outros lugares, ou
desapareceram. Mas sempre tem havido outro sistema social em que predomina a
ordem e os homens sobrevivem.
Uma
sociologia que ignora completamente as manifestações de desordem na vida social
é, evidentemente, uma sociologia inadequada e incompleta. Não se pode -dizer
menos de quem nega os fatos básicos da ordem social e volta as costas para os
mecanismos que a garantem, interessando-se apenas pelos problemas de
desorganização social. É estéril o conflito entre os que sustentam uma
"teoria de equilíbrio" e que os que nos solicitam a adoção de uma
"teoria do conflito", pois uma sociologia completa precisa incluir o
estudo da ordem e da desordem, bem como da mudança, organizada e desorganizada.
Arnold Feldman e Wilbert Moore nos oferecem uma concepção mais dinâmica e ampla
da sociedade como um "sistema de controle de tensão." "A 'ordem'
característica de qualquer sistema social consiste,, portanto, em padrões
regularizados de ação e em instituições que controlam, melhoram ou canalizam o
conflito provocado por tensões persistentes. Uma sociedade contém conflito e a
mudança a ele associada, bem como uma ordem social que abrange recursos e sistemas
de prevenção e controle de tensão."
O
delineamento do sistema social através da definição das relações subjacentes
entre um complexo conjunto de atos sociais é talvez a responsabilidade
principal do sociólogo, mas evidentemente é apenas um começo. Na realidade,
alguns sociólogos sustentam que é menos importante do que outra tarefa, isto é,
explicar a persistência dos sistemas sociais no tempo. A coordenação, num único
momento do tempo, de milhares e mesmo milhões de atos individuais em um sistema
mais ou menos estável de ação social, é talvez milagrosa. Todavia, essa ordem
de curto prazo é apenas uma maravilha secundária, quando comparada ao grande
milagre representado pela persistência, em períodos relativamente longos de
tempo, de tais sistemas de ação. Grupos de animais — até de cães e elefantes —
podem ser treinados para coordenar O seu comportamento em padrões muito
complexos de ação. No entanto, sem o seu treinador, tais animais não têm meios
para transmitir, a gerações seguintes, as proezas que aprenderam. A complexa
coordenação de ação humana que todo sistema social representa é quase sempre
prolongada no tempo, além das vidas de qualquer conjunto isolado de
participantes. Tal continuidade é também encontrada em colônias de insetos
sociais, mas no seu caso sabemos que o instinto assegura o resultado adequado.
Como a regulação instintiva do comportamento não é igualmente importante no
homem, a continuidade da ordem social precisa ser explicada através de outros
mecanismos.
Portanto, a
sociologia procura explicar a continuidade, no .tempo, dos sistemas sociais.
Todavia, a continuidade precisa ser reconhecida como relativa. A sua ocorrência
não pode ser considerada como assegurada, mas, ao contrário, deve ser
reconhecida como problemática. Existe, razão para acreditar que algumas
sociedades extraordinariamente estáveis continuaram imutáveis em todos os
aspectos essenciais, frequentemente até as menores minúcias, geração após
geração, talvez, por centenas de anos. Nossa impressão da natureza relativamente
imutável de tais sociedades pode ser, principalmente, um artifício da
inadequação do registro histórico. De qualquer modo, quase todas as sociedades
que fazem parte da história mais recente do homem parecem, ter passado por um
processo contínuo, difuso e às vezes muito acelerado de mudança. No entanto, no
caso da mudança, tal como no caso da continuidade, o sociólogo supõe que a sequência
de acontecimentos é intrinsecamente ordenada. O processo de mudança não é
casual, embora às vezes pareça caótico, e frequentemente esteja fora do
controle consciente de indivíduos e da sociedade como um todo. Portanto, a
sociologia também descreve a mudança nos sistemas sociais, e procura descobrir
os processos básicos através dos quais, sob condições especificadas, um estado
do sistema leva a outro, incluindo-se, potencialmente, o estado de
desorganização e dissolução.
Em resumo,
portanto, podemos dizer que a sociologia é o estudo da ordem social, o que
significa a regularidade subjacente do comportamento social humano. O conceito
de ordem inclui os esforços para atingi-la, bem como os afastamentos com
relação a ela. A sociologia procura definir as unidades de ação social humana e
descobrir o padrão na relação de tais unidades — isto é, saber como se
organizam em sistemas de ação. Ao trabalhar com tais sistemas de ação, a
sociologia procura explicar a sua continuidade no tempo, bem como compreender
como e por que tais unidades e suas relações mudam ou deixam de existir.
---
Fonte:
O que é Sociologia?, por: Alex Inkles. Tradução de: Dante Moreira Leite. Pioneira Editora. São Paulo, 1971, págs. 46-51.
Excelente explicação dos conceitos. Obrigada
ResponderExcluir