domingo, 3 de julho de 2016

Judeus do gueto e judeus da corte

Judeus do gueto e judeus da corte
Depois de acompanhar, nos dois capítulos precedentes, a história dos judeus sefarditas após sua expulsão da Península Ibérica, vamos retornar agora à Europa Central, isto é, às regiões da Alemanha, Áustria, Checoslováquia e Hungria, que formavam o Sacro Império. Neste capítulo, examinaremos os processos econômicos, sociais e políticos pelos quais passaram os judeus asquenazitas durante os dois séculos e meio que vão de 1500 a 1750. Para compreendê-los bem, contudo, é preciso examinar rapidamente a situação da Europa Central no começo do século XVI.

A Alemanha em 1500: A Reforma
Ao contrário do que ocorreu na Europa Ocidental, onde no decorrer da Baixa Idade Média surgiram monarquias centralizadas em Portugal, na Espanha, França e Inglaterra, na Europa Central não se verificou a fusão dos pequenos estados feudais num único país. Vários fatores concorreram para isso: a extrema divisão territorial, que tornava impossível a um senhor impor seu domínio aos outros, porque nenhum feudo dispunha dos recursos necessários para tanto; o fato de o Imperador ser eleito, dependendo por isto dos senhores que o escolhiam, os quais não tinham nenhum interesse em fortalecer um poder central; e a existência de uma burguesia comercial forte nas cidades principais, que resistia a todas as medidas centralizadoras, por considerar que estas poderiam privá-la da sua autonomia. A força combinada destes fatores contribuiu para preservar na Europa Central um verdadeiro mosaico de principados, bispados, cidades livres e domínios imperiais, cada qual cioso de suas prerrogativas e procurando impedir que qualquer estado se tornasse suficientemente forte para unir sob seu comando todos os territórios da região.
Por outro lado, todas estas pessoas sentiam-se unidas pela língua alemã e pelos costumes, hábitos e ideias mais ou menos comuns em toda a área. Na impossibilidade de manifestar-se de forma política, através da constituição de um só país, este sentimento nacional alemão acabou por vir à tona sob uma forma religiosa. O nacionalismo germânico é um dos motivos que levaram à eclosão da Reforma Protestante. As transformações sociais e econômicas da Baixa Idade Média geraram a necessidade de novas formas religiosas. A partir de 1400, vários pensadores propuseram reformas na estrutura e na doutrina da Igreja, para adaptá-las a estas novas realidades.
Esta tendência a modificar certos aspectos da Igreja somou-se ao nacionalismo alemão de que falamos antes, para originar um movimento que, inicialmente religioso, acabou por se transformar numa força política de primeira grandeza: a Reforma Protestante. Iniciado em 1517 por Martinho Lutero, na Alemanha, o movimento logo se expandiu por todo o Norte da Europa, por intermédio de discípulos que nem sempre concordavam com as ideias daquele monge alemão. A história da Europa dos séculos XVI e XVII, e consequentemente a história dos judeus europeus desta época, só pode ser compreendida à luz dos conflitos desencadeados pela Reforma.
"As ideias de Lutero podem ser resumidas da seguinte maneira: Deus revelou ao homem, na Bíblia, tudo o que é necessário para a sua salvação. A Igreja, contudo, deturpou esta mensagem divina, tornando-se uma organização complexa, cujo objetivo principal consistia em aumentar sua influência política. Por isto, os cristãos deveriam abandonar a tutela da Igreja, e lançar-se à leitura e investigação da Bíblia, onde estão contidas todas as diretrizes para evitar o pecado e obter a salvação eterna. Cada pessoa, utilizando seu próprio raciocínio, poderia atingir este conhecimento, sem a intervenção da hierarquia da Igreja. Lutero modificou ainda certos aspectos da doutrina cristã, que não nos interessam neste momento; mas sua insistência na fé pessoal e no exame individual da Bíblia são as principais características do novo pensamento religioso.
Ao recusar obediência a Roma, os reformadores salientavam a necessidade de obedecer às autoridades locais alemãs. Ao afirmar que o clero não precisava de riquezas, permitiam que os numerosos bens da Igreja fossem transferidos para os príncipes alemães. Ao introduzir o alemão no culto, em vez, do latim, permitiam que todos os fiéis participassem das cerimônias religjosas. E, sobretudo, ao proclamar o direito de cada indivíduo a ler e meditar sobre a Bíblia, estimulavam o individualismo que começava a surgir nas cidades comerciais alemãs. Assim, fossem quais fossem os objetivos religiosos de Lutero e seus seguidores, as ideias por eles defendidas apresentavam uma excelente justificação para que os príncipes e as cidades da Alemanha pudessem manter e reforçar sua tradicional independência. Para cada setor da sociedade, a Reforma trazia um apelo eficaz: para a nobreza, o pretexto para se apossar das vastas riquezas da Igreja; para a burguesia, o reconhecimento do valor do indivíduo, do trabalho e da riqueza; para os pobres, a esperança de uma vida melhor; para os devotos, uma religião mais pura; para todo o povo alemão, uma expressão religiosa da sua particularidade nacional.
A situação política do Sacro Império complicou-se ainda mais com o surgimento do protestantismo. O Imperador, embora formalmente eleito pelos nobres, era sempre escolhido na família dos Habsburgos, cujos domínios abrangiam principalmente a Áustria. Um dos Habsburgos era o rei da Espanha, que, como vimos, havia se tornado o principal defensor da Igreja, criando inclusive a Inquisição. A família Habsburgo continuou católica, enquanto parte dos nobres alemães abraçava o protestantismo. A luta dos nobres para conservar sua independência frente ao Imperador assumiu assim um caráter religioso, além de político.
Em 1555, a Dieta ou Parlamento, reunida na cidade de Augsburgo, proclamou a primeira lei de tolerância religiosa no Império: cada estado poderia adotar a religião que quisesse, contanto que todos os seus habitantes a professassem. Era o reconhecimento de que nem católicos nem protestantes haviam vencido totalmente: cada lado reconhecia ao outro uma parcela de vitória. Mas era também um triunfo dos pequenos Estados contra o Imperador, já que este, apesar de católico, não conseguia impor suas ideias a todo o Império.
A Reforma não se restringiu à Alemanha. A Inglaterra e os países escandinavos — Suécia, Noruega e Dinamarca — adotaram várias de suas versões antes de 1540. Parte da Suíça, influenciada por Calvino, também se tornou protestante. A Boêmia, que corresponde aproximadamente à Checoslováquia de hoje, aderiu em peso a ela, bem como largos setores da França, da Hungria e da Polônia. Para nosso estudo neste momento, todavia, basta recordar que a unidade religiosa se rompeu no Sacro Império, onde o protestantismo acabou por se tornar o veículo de expressão das tendências nacionalistas, e fortaleceu os pequenos estados contra a pressão centralizadora exercida pelos Habsburgos. Contudo, o verdadeiro terremoto político e religioso desencadeado por Lutero acabou por atingir também os judeus que viviam no Sacro Império. À luz do que acabamos de analisar, vamos ver agora em que situação eles se encontravam.
 A Imagem do Judeu: Reuchlin e Lutero
A importância da fragmentação política e religiosa da Europa Central para a História Judaica consiste no fato de que ela impediu uma expulsão completa dos judeus da região, já que seus numerosos estados, que não conseguiam pôr-se de acordo em questões muito mais importantes, jamais puderam concertar uma ação comum contra eles.
De forma geral, podemos dizer que, durante o século XV, a situação dos judeus na Europa Central foi da mais completa  insegurança, tendo-os expulsado, uma ou outra vez, quase todas as regiões. Além de estimular a emigração dos judeus para o Leste, onde a Polônia lhes estendia sua hospitalidade, como veremos no próximo capítulo deste livro, estas medidas tornaram mesquinha e insegura a vida dos poucos judeus que permaneceram na região centrai da Europa,
A imagem do judeu, alimentada pelos preconceitos da Baixa Idade Média, tinha três traços principais: ele era considerado deicida, estrangeiro e usurário, Deicida porque seus antepassados haviam crucificado Jesus; usurário porque, devido às restrições à sua participação nas profissões "decentes" do comércio e do artesanato, ele se havia encaminhado para o comércio de dinheiro a partir do século XIV. O curioso é que os principais banqueiros da época não eram judeus, mas cristãos fervorosos. Os judeus, empobrecidos pela situação instável a que se viam submetidos, formavam uma fração minúscula dos que se dedicavam ao negócio bancário , e não podiam nem de longe concorrer com os vastíssimos capitais dos Fugger ou dos Welser. Mas a força do preconceito impedia a compreensão deste fato, e o ódio aos ricos transferiu-se para os judeus, embora estes fossem na verdade um dos setores menos privilegiados da população. E por fim, o caráter de "estrangeiro", apesar de os judeus terem vivido por séculos a fio naquela área, baseava-se na diferença religiosa. Não sendo cristão, e vigorando a ideia de que num país só poderia existir uma religião, a conclusão de que o judeu era estrangeiro e se impunha como natural, A força combinada do ódio ao deicida, do ódio ao usurário e do ódio ao estrangeiro, herdados da Idade Média e aguçados pelas tensões sociais e religiosas do começo do século XVI, acabou por gerar um preconceito inteiramente desproporcional à quantidade e à influência dos judeus, que eram efetivamente muito pequenas. Este, aliás, é o mecanismo usual do antissemitismo: atribuir aos judeus, que raramente ultrapassam um ou dois por cento da população, uma força oculta extraordinária, sempre imaginada como voltada para o mal.
Esta imagem triplamente negativa dos judeus, contudo, não era tão coerente no tocante aos livros judaicos. Neste campo, as ideias medievais, que afirmavam serem o Talmude e a Cabala verdadeiros manuais de bruxaria, repletos de ofensas ao cristianismo, e que deveriam ser queimados pelas autoridades, começavam a ser contestada pelos humanistas. Vimos no capítulo 8 que estes se interessavam pelas civilizações antigas, procurando redescobrir o verdadeiro significado das obras gregas e latinas. Este interesse entendia-se também à Bíblia, e vários humanistas procuraram aprender o hebraico para estudá-la no original, Entraram assim em contato com a enorme literatura rabínica da Idade Média, sobre a qual já falamos várias vezes. Perceberam desta forma que o trabalho dos gramáticos e talmudistas judeus, longe de ser uma obra do Demônio, era um instrumento útil para a compreensão do texto bíblico. Isto não quer dizer que os humanistas apreciassem os judeus; apenas consideravam válidas algumas das ideias contidas em certas obras judaicas, mesmo porque lhes parecia, certa ou erradamente, que elas confirmavam a doutrina cristã.
Estas facetas ambíguas da imagem do judeu vieram à tona em 1509, quando um judeu convertido ao cristianismo, chamado Johannes Pfefferkorn, tornou a repetir as velhas noções medievais de que o Talmude era uma obra indecente e sacrílega. Pfefferkorn, com o apoio dos frades dominicanos, procurou o Imperador para pedir-lhe que mandasse queimar todos os exemplares do Talmude existentes no Império. O Imperador nomeou então uma comissão de hebraístas cristãos para examinar o Talmude e opinar sobre o seu conteúdo.
Desta comissão fazia parte o famoso humanista Johannes Reuchlin (1455-1522). Reuchlin havia estudado com rabinos, e era o principal hebraísta daquela época. Havia sido atraído pelas doutrinas da Cabala, porque acreditava que elas confirmavam os dogmas da Igreja. Embora não tivesse lido o Talmude, seu parecer foi favorável aos livros judaicos; tomou também a defesa dos judeus, afirmando que eles eram cidadãos do Sacro Império e que a violência usada contra eles era ilegal e contrária à caridade cristã. A posição liberal de Reuchlin encontrou vigorosa oposição por parte das Universidades mais conservadoras. A polêmica estendeu-se por toda a Europa, tendo os humanistas se aliado com o sábio alemão, mesmo que não apreciassem pessoalmente os judeus.
Mas esta decisão do Papa não significou muito no sentido de melhorar a posição dos judeus na Alemanha; enquanto se desenrolava a polêmica, com efeito, 38 judeus foram queimados em Berlim (1510) e a secular comunidade de Regensburg foi expulsa da cidade (1519).
O debate sobre os judeus recebeu novo impulso com a Reforma Protestante. A princípio, Martinho Lutero procurou convertê-los, pensando que sua nova versão do cristianismo pudesse efetivamente parecer válida aos olhos dos judeus. Em 1523, seu panfleto "Que Jesus Cristo nasceu Judeu" acenava com a conversão e com a solução definitiva do problema judaico, e em geral era favorável ao povo de Israel. Mas os judeus não corresponderam às expectativas de Lutero, e muito poucos foram os que renunciaram ao judaísmo. Além disto, as posições políticas de Lutero o colocaram contra os judeus: enquanto estes permaneceram ao lado do Imperador, os príncipes luteranos utilizaram a Reforma para ampliar sua autonomia. O ódio de Lutero à usura, estimulado pelo fato de os grandes banqueiros não aderirem à Reforma, porque isto seria contrário a seus interesses — nada mais fácil que seus numerosos devedores católicos, que incluíam vários reis e príncipes, recusarem-se a pagar as dívidas em nome dos princípios religiosos — levou-o a ver no judeu um elemento nocivo à sociedade, dentro da imagem que já analisamos. Em seus últimos anos, Lutero foi assediado por pesadelos e visões, que lhe pareciam coisa do Diabo, em quem acreditava firmemente. Não podendo lutar contra o Príncipe das Trevas, escolheu combater seus aliados na terra — os judeus. Todos estes fatores psicológicos, religiosos, econômicos e políticos o levaram a publicar, entre 1538 e 1543, vários panfletos violentamente antissemitas, dos quais o mais importante é "Dos Judeus e suas Mentiras" (1542). Ao lado das acusações de sangue, o mito do demônio e o ódio ao usurário, os libelos de Lutero formam um dos principais componentes do arsenal do antissemitismo alemão.
Nem todos os Reformadores, porém, foram tão antijudaicos quanto seu mestre. Vários deles eram hebraístas eruditos e consideravam que o hebraico era indispensável para entender a Bíblia, que por sua vez era indispensável para obter a salvação. Embora quase todos procurassem converter os judeus, eram mais moderados em sua linguagem e em sua atitude do que Lutero. Mas isto tampouco influiu muito nas condições de vida dos judeus; durante o período que estamos analisando, elas continuavam a ser precárias, e a agitação religiosa e política desencadeada pela Reforma inicialmente contribuiu apenas para piorá-la.

Da Reforma à Guerra dos Trinta Anos
A enorme variedade das medidas que afetaram os judeus nos cem anos que vão de 1517 (início da Reforma) a 1618 (início da Guerra dos Trinta Anos) torna difícil qualquer generalização. Mas de uma maneira global, podemos dizer que três processos emergem com relativa clareza: a interiorização, a diversificação econômica e a transferência da soberania sobre eles, do Imperador para os pequenos estados.
Desde a Antiguidade grega e romana, os judeus da Diáspora haviam sido habitantes das cidades. Na Europa medieval, haviam sido em certas épocas os principais habitantes das cidades. Mas, com a série de expulsões do século XV, que os afastou de quase todos os centros urbanos importantes do Sacro Império, verifica-se um processo de interiorização da população judaica. Isto quer dizer que os judeus se dispersam por numerosos vilarejos e aldeias, passando a contar cada comunidade com pouquíssimas famílias, raramente mais de dez ou quinze. O nível cultural baixou muito, pois em lugares tão pequenos era quase impossível estudar; também diminuiu a intensidade da vida comunitária, que havia sido muito fecunda durante a Idade Média, pela simples razão de que com tão poucas pessoas — quase nunca chegavam a 100 os judeus de sua comunidade típica — não era preciso dispor das elaboradas estruturas comunitárias a que nos referimos no capítulo 6.
Do ponto de vista econômico, verifica-se uma diversificação nas ocupações dos judeus. Enquanto na Baixa Idade Média muitos se haviam dedicado ao comércio do dinheiro, a interiorização obrigou-os a encontrar outras profissões. Em 1530, a Dieta havia-lhes proibido a prática da usura; além disto, as gigantescas organizações bancárias dos Fugger e dos Welser preenchiam esta função muito melhor que os judeus, cujo capital se havia consumido em meio às expulsões e restrições do século XV.
Assim, passam eles maciçamente da usura para o comércio. Em contato com os produtores agrícolas, tornam-se comerciantes de cereais, gado, verduras e outros produtos semelhantes. Na direção contrária, da cidade para o campo, os judeus tornam-se distribuidores de produtos manufaturados, surgindo a figura do humilde mascate judeu, que, com sua mala de bugigangas às costas, ia de aldeia em aldeia, vendendo aqui um pente, acolá uma panela e mais adiante um paletó. O mascate, além de trazer ao campo os produtos das áreas urbanas, levava consigo também às informações do momento, numa época em que a inexistência de jornais tornava o mexerico a única forma de se saber o que ocorria no mundo. O mascate preenchia assim uma útil função social, entrando para o folclore judaico numerosas histórias acerca destes pitorescos viajantes. A liberdade de comerciar foi reassegurada aos judeus por um decreto imperial de 1544; mas apesar do decreto, os judeus continuaram pagando os numerosos impostos de entrada e saída nos territórios de cada Estado, o que dificultava sua vida ainda mais do que a intolerância religiosa.
Este decreto de 1544 constitui uma das últimas tentativas do Imperador, no sentido de assegurar sua soberania sobre os judeus. Devemos lembrar que, ao menos teoricamente, eles eram vassalos diretos do Imperador, sendo considerados "servos da câmara imperial". Mas com a crescente autonomia dos incontáveis territórios que formavam o Império, os príncipes e as cidades passaram a exercer sobre as comunidades judaicas um controle muito mais efetivo do que o do Imperador. Assim, em Frankfurt, os judeus viviam de acordo com os regulamentos da cidade, mas na Saxônia ou na Boêmia as normas poderiam ser completamente diferentes. As autoridades locais tendiam a ser mais intolerantes do que o remoto poder central, porque sofriam mais pressões da população, a qual manteve sistematicamente sua atitude contrária aos judeus, temendo que estes lhe fizessem concorrência.
Esta dispersão da influência sobre os judeus em mãos de dezenas de autoridades locais, ou no máximo regionais, tornou possível o surgimento de uma figura nova: a do Shtadlan. Este era um judeu que, por seus dotes de orador e sua intimidade com os novos senhores, procurava impedir que fossem adotadas medidas antijudaicas nos vários estados. Ó primeiro deles foi Josel de Rosheim, que viveu entre 1478 e 1544. Josel não era um rabino, mas um homem do mundo que viajava incessantemente pelo Império, procurando defender os judeus. Josel recebeu o título de "chefe dos judeus", embora tal honra apenas nominal equivalesse a um esforço do Imperador para reter o controle dos judeus contra as tendências desagregadoras que então se verificam.
Em 1555, o Império passou por uma modificação importante: a família dos Habsburgos tornou-se herdeira do título imperial. Ao contrário de vários de seus predecessores, os Habsburgos tinham domínios próprios, que correspondiam a amplas regiões da Áustria. O centro do Império desloca-se para Viena, e durante as décadas seguintes os Habsburgos tentam repetir o que os reis da França haviam realizado no século XIII: a efetiva unificação do país numa monarquia centralizada. Seu êxito foi apenas parcial: na Áustria e nas áreas próximas, efetivamente se implantou um regime mais centralizado; mas no atual território alemão, a incontável quantidade de poderes locais impediu a unificação, permanecendo o domínio do Imperador puramente nominal. Em consequência disto, os judeus que residiam na Áustria e nas áreas adjacentes permaneceram sob a suserania do Imperador, mas os que viviam na Alemanha continuaram sob o domínio das autoridades locais. Vamos mencionar agora os principais processos que os afetaram em cada uma das regiões principais.
Na Áustria-, o Imperador estava interessado em proteger os judeus por duas razões: porque eram seus servos pessoais e porque, estando em toda parte, servir-lhe-iam como uma espécie de elemento unificador de suas possessões. O principal inimigo da Áustria nesta época era o Império Otomano, então em sua fase de maior expansão. O Imperador necessitava dos impostos judaicos para equipar seu exército, o que o levou a estimular a volta dos judeus a várias cidades de onde haviam sido expulsos durante o século XV, incluindo Viena. Os impostos altíssimos obrigavam os judeus a exercer a usura, cobrando juros igualmente elevados para poder pagá-los. Isto despertou a ira dos burgueses, cujo órgão representativo, os Estados Gerais, pressionaram os vários imperadores para que expulsas-' sem os judeus ou limitassem sua atividade econômica. A título de exemplo, em 1599 as 31 famílias judaicas de Viena contribuíram com a enorme soma de 17.000 florins para o custeio da guerra, enquanto, para dar uma comparação, o salário de um
rabino girava em torno de 1.000 florins por ano. Durante todo o século XVI, a contradição entre o interesse dos burgueses e. a utilidade dos judeus para o Imperador fez que a política da Áustria para com eles oscilasse entre a tolerância e as ameaças de expulsão.
A maior concentração judaica localizava-se na Boêmia, cuja capital, Praga, fora a sede de uma antiga comunidade desde a Alta Idade Média. Em 1542, os judeus são expulsos de Praga, mas concede-se a muitos deles o direito de residência temporária, mediante o pagamento de certas taxas. Em 1546, há perto de 1.000 judeus em Praga. A maior parte da população da Boêmia era protestante, criando problemas para os católicos Habsburgos. Os judeus, com sua neutralidade religiosa, eram um instrumento útil para preservar o equilíbrio, e, sendo diretamente dependentes do Imperador, forneciam-lhe um pretexto para intervir na região. Em 1577, confere-se aos judeus da Boêmia novos direitos, incluindo o de viajar sem restrições e sem impostos por todo o Império. A tolerância atraiu para a Boêmia grande número de judeus, possibilitando o surgimento de uma forte organização comunitária e a transformação de Praga num dos principais centros de cultura judaica na época. O cronista David Gans deixou-nos um vívido relato das condições de vida na Boêmia quinhentista, embora não tão analítico quanto os escritores da escola historiográfica italiana. Os rabinos de Praga alcançaram renome internacional, o que é notável numa época tão conturbada para os judeus quanto esta que estamos analisando.
A comunidade da Hungria, que contava em 1524 com cerca de 15.000 pessoas, foi atingida pela invasão otomana em 1526. A maior parte dos judeus húngaros passou assim ao controle do Império Otomano, gozando dos mesmos direitos a que nos referimos no capítulo 8. Os que permaneceram no Império viveram nas mesmas condições que os judeus da Boêmia, dedicando-se ao comércio de gêneros alimentícios, a mascatear, a emprestar a juros. É importante notar que em nenhum ponto do Império os judeus podiam possuir terras, sendo-lhes vedada, portanto, a prática da agricultura. Tampouco eram admitidos na Universidade, o que lhes fechava a porta das profissões, como a medicina e a advocacia. E muito menos poderiam fazer carreira na burocracia governamental, que começava a se organizar na Áustria, na Boêmia e na Hungria durante o século XVI, acompanhando o esforço de centralização de que falamos atrás. Sobrava apenas o comércio, e mesmo este encontrava as restrições dos burgueses cristãos. A vida dos judeus destas regiões era, assim, bastante difícil, contrastando com a liberdade de que gozavam no Império Otomano, do outro lado da fronteira.
Por outro lado, no centro e no norte do Império, o poder da autoridade central era muito limitado. Entre as poucas cidades em que eram admitidos os judeus, Frankfurt abrigava a principal comunidade, com cerca de 2.000 judeus por volta de 1600. Em Frankfurt os judeus viviam no gueto local, que, originando-se do antigo Judenviertel ou bairro judaico, havia sido murado durante o século XVI, a exemplo do que ocorrera na Itália. Frankfurt era um ativo centro comercial, localizando-se a meio caminho da Itália e do mar do Norte; e os judeus, na medida em que lhes era permitido, participavam destas atividades econômicas. A onda de expulsões, atraindo para a cidade numerosos judeus, provocara a ampliação do gueto, que se tornou um dos maiores da Europa, tendo, em 1600, umas 200 casas.
Como em outras cidades alemãs, o surto econômico trazido pelo comércio havia beneficiado apenas uma minoria de ricos burgueses, enquanto os pequenos comerciantes e artesãos se viam marginalizados. A violenta inflação europeia do século XVI, criada pelo afluxo de ouro e prata da América, contribuiu para acentuar estas tensões sociais, bem como a desvalorização das moedas, efetivada para fornecer fundos aos tesouros dos príncipes alemães. Alguns judeus, na qualidade de moedeiros reais, haviam colaborado para implementar estas desvalorizações. O ressentimento dos pequenos burgueses contra os mais ricos explodiu numa revolta aberta em 1612, que afetou também a população judaica relativamente numerosa de Frankfurt.
Liderados pelo salsicheiro Vincent Fettmilch, os pequenos burgueses conseguem obter o controle da cidade, através de uma modificação no sistema de escolha dos conselheiros municipais. Uma das exigências do partido popular era a expulsão dos judeus, a quem Fettmilch acusava de estarem roubando o povo. Num ataque ao gueto, em 1614, os populares irritados pilharam as casas, levando os poucos objetos de valor que encontravam. Em seguida, a comunidade de cerca de 2.000 pessoas foi solenemente expulsa da cidade. O Imperador, que pretendia ainda manter seu controle sobre os judeus, expediu um decreto ordenando a sua imediata reintegração na cidade, e punindo severamente Fettmilch e seus adeptos, tanto por estimularem a revolta do povo, quanto por tocar nos "servos da câmara imperial", cuja exploração Sua Majestade reservava para si. A data da reintegração dos judeus na cidade passou a ser celebrada anualmente, tornando o nome de "Purim de Frankfurt". Um incidente parecido ocorreu em Worms, tendo o Imperador igualmente ordenado a volta dos judeus. Tanto num caso como no outro, porém os decretos de retorno continham cláusulas novas, que nunca haviam sido promulgadas durante a Idade Média. No gueto de Frankfurt, não poderia haver mais de 500 família. Permitiam-se 12 casamentos por ano, e apenas 6 judeus de outras cidades poderiam visitar o gueto por tempo mais longo, no decurso de um ano. Estas medidas, que visavam limitar o aumento da população judaica, correspondiam à pressão dos burgueses no sentido de evitar a concorrência dos judeus. Logo copiada por outras regiões, com variações mais ou menos cruéis, a limitação dos casamentos e do número de filhos que cada judeu podia ter tornaram impossível a vida normal às comunidades alemãs, de onde muitos membros emigraram para a Áustria, para a Boêmia e para a Polônia.
Sumarizando as condições da vida judaica no Sacro Império durante o século XVI, podemos ver quão mesquinha e estreita ela se havia tornado, dentro dos guetos fétidos e escuros que abrigavam a maioria dos judeus nesta região. As principais comunidades localizavam-se nas áreas católicas, onde o poder do Imperador era perceptível; se havia judeus em muitíssimos lugares, na quase totalidade dos casos tratava-se de minúsculas kehilot, incapazes de produzir sequer o seu próprio sustento, quanto mais criar obras culturais dignas do passado fecundo do povo judeu.

A Guerra dos Trinta Anos
Entre 1618 e 1648, um conflito de grandes proporções abalou o equilíbrio político e econômico da Europa: a Guerra dos Trinta Anos, em que a França, a Holanda e a Suécia aliaram-se contra a Espanha e o Sacro Império. Aparentemente uma guerra de religião, em que protestantes e católicos procuraram varrer do mapa seus respectivos adversários, a Guerra dos Trinta Anos continha também elementos políticos e econômicos, que você estudará no curso da História Geral.
Tudo começou com um obscuro incidente na Boêmia, que se recusou a aceitar a autoridade do Imperador. Este deslocou para lá seus exércitos, que, após seis anos de luta, esmagaram os tchecos em 1624; em seguida, os jesuítas reconverteram o país ao catolicismo. O Imperador, estimulado por sua vitória, quis extirpar o protestantismo de seu território, e marchou para os estados alemães que aceitavam a doutrina de Lutero. Assim fazendo, rompia a Paz de Augsburgo, de 1555, que, como já observamos, estimulava a convivência de católicos e protestantes no Império. A aliança da Áustria e da Espanha, em nome do catolicismo, levou a França a se aliar aos outros inimigos do Império e a iniciar a guerra. No contexto das hostilidades entre a Espanha, aliada da Áustria, e a Holanda, aliada da França, foi que os holandeses resolveram tomar o Brasil, que pertencia então à coroa espanhola (1630-1654).
O palco das batalhas foi a Alemanha. Durante anos a fio, soldados de todas as nações atravessaram os territórios germânicos, saqueando, pilhando e massacrando a população. O esforço econômico necessário para sustentar exércitos enormes, que se moviam lentamente e necessitavam de suprimentos em quantidades nunca vistas, acabou por arruinar o país. Quando a guerra acabou, em 1648, os estados alemães estavam em condição desesperadora: seus campos incendiados, sua população faminta, seu comércio arruinado, suas manufaturas incapazes de concorrer com as da França e da Holanda.
Os judeus, vivendo em plena zona de conflito, isto é, na Boêmia, Áustria e Alemanha, foram afetados decisivamente pelo seu desenvolvimento. A Guerra dos Trinta Anos marca o início de novos processos sociais na História Judaica, que vamos analisar agora.
Quando, a partir de 1625, os exércitos franceses e suecos começaram a penetrar na Alemanha, os judeus da região viram-se envolvidos na campanha. Não houve perseguições contra eles, pois os protestantes estavam ocupados em matar os católicos e vice-versa. O principal prejuízo para estas comunidades foi representado pelas pilhagens e pela devastação que vieram com os combates. A insegurança das áreas rurais estimulou a volta dos judeus para as cidades principais, como Frankfurt e Hamburgo, invertendo o processo de interiorização que se havia verificado no século anterior. Cada vez que uma cidade trocava de mãos, era obrigada a hospedar os soldados invasores e a pagar pesados tributos para manter em paz as tropas estrangeiras. Naturalmente, os judeus contribuíram com parcelas consideráveis destes tributos, o que acelerou seu processo de empobrecimento. A população judaica também diminuiu, em parte devido à fome, às epidemias e à insegurança geral, e em parte porque poucos se arriscavam a ter filhos em meio ao ambiente turbulento da guerra. Em 1638, as principais comunidades eram a de Praga, com 8.000 almas, a de Viena, com cerca de 2.500, e a de Frankfurt, com perto de 2.000. As três viviam nos limites dos respectivos guetos, sendo Praga a mais importante, pelo número e pela relativa tranquilidade de que desfrutou após os primeiros anos de guerra, já que o teatro de operações se havia deslocado para a Alemanha.
A invasão da zona costeira do Báltico pelos suecos acarretou a ruína das cidades alemãs daquela região; como consequência, a liderança econômica da área passou para a cidade de Hamburgo, que, por se localizar na costa do mar do Norte, permaneceu relativamente a salvo da devastação trazida pela luta, que se desenvolvia em outras regiões. O mar do Norte — que banha as costas da Inglaterra, França e Holanda — havia-se tornado o centro do comércio internacional, em consequência do extraordinário desenvolvimento da República holandesa a que nos referimos no capítulo anterior. Ali começou-se a constituir uma comunidade judaica diferente de todas as outras então existentes no Sacro Império: formada por sefarditas provenientes da Holanda, logo tomou a liderança do judaísmo alemão.
Os judeus portugueses e espanhóis que se estabeleceram em Hamburgo, a partir de 1612, eram comerciantes e banqueiros com vastos capitais e experiência no comércio internacional. Esta característica, que os distinguia dos judeus paupérrimos do resto da Alemanha, tornou-os bem-vindos ao porto de Hamburgo, que então começava a se desenvolver. As principais famílias sefarditas, como a dos Teixeiras, participaram da fundação do Banco de Hamburgo, efetivada em 1619 nos mesmos moldes do Banco de Amsterdã. Estabeleceram na cidade sua primeira refinaria de açúcar, bem como as fábricas de óleo, sabão e de outros produtos que requeriam investimentos consideráveis. Hamburgo tornou-se a primeira cidade alemã a conceder plena liberdade aos judeus, beneficiando-se disto como já ocorrera com sua vizinha e competidora, a Holanda. Os judeus hamburgueses destacaram-se também fora do comércio: o médico Rodrigo de Castro, ex-marrano espanhol, escreveu ali seu famoso "Tratado sobre a Peste", em que afirmava pela primeira vez na Europa que a peste era transmitida por organismos minúsculos.
Três outras consequências advieram para os judeus do terremoto político e religioso desencadeado pela guerra, além das que já mencionamos, isto é: a inversão do processo de interiorização e a ascensão de comunidade de Hamburgo. Em primeiro lugar, os judeus deixaram de ser a única minoria perseguida, pois os progressos da tolerância acabaram, embora muito lentamente, por se estender também a eles. Em segundo lugar, a derrocada do poder imperial sobre os territórios alemães fez que terminasse definitivamente a aliança entre os judeus e o Imperador, que vinha, como vimos, desde a época dos carolíngios. Com sua paulatina readmissão nas áreas protestantes, como Hamburgo e Berlim, o controle sobre os judeus destes estados passou a ser exercido definitivamente pelos príncipes e conselhos municipais de cada estado. Mas a mais importante consequência da guerra foi a descoberta de que os judeus podiam ser úteis aos governos dos territórios onde habitavam, surgindo assim a figura nova — pelo menos na Europa Central — do "judeu da Corte".

Os Judeus da Corte
A Guerra dos Trinta. Anos exigiu um enorme esforço econômico. As técnicas militares estavam mudando rapidamente, com a criação de exércitos regulares pagos pelos governos, ao invés dos grupos armados pelos senhores feudais que haviam caracterizado as lutas medievais. A invenção da pólvora tornou obsoletos os regimentos de arqueiros e os lanceiros que combatiam corpo a corpo. Como é possível atirar de uma distância relativamente grande — e esta distância foi aumentando à medida que se aperfeiçoaram novos tipos de mosquetes e canhões — os exércitos podiam ficar longe uns dos outros, desgastando o adversário e esperando o momento mais adequado para atacar com a cavalaria.
Campanhas mais demoradas e exércitos mais numerosos criaram o problema do abastecimento. Esta gente toda, que se contava por milhares, precisava de alimentos, roupas, munição e outros artigos. Surge então a oportunidade, para os comerciantes empreendedores, de se tornarem fornecedores militares, comprando grandes quantidades destes produtos e vendendo-os aos exércitos. E, desconfiando os católicos dos protestantes e vice-versa, ambos acabaram permitindo aos judeus, religiosamente neutros, que passassem a desempenhar o papel de fornecedores a seus respectivos exércitos. Dispersos por todos os pontos do Império, tendo-se dedicado nas décadas anteriores ra servir como intermediários entre o campo e a cidade, os judeus possuíam bons contatos comerciais com os camponeses e artesãos das pequenas aldeias. Muitos deles entraram para o novo ramo, provendo as tropas de trigo, sal, carne, vinho, capotes, botas, balas de fuzil, e praticamente tudo o que pudesse ser consumido pelos soldados.
Terminada a guerra, vários príncipes acharam vantajoso continuar utilizando os serviços destes judeus para fornecer gêneros e mercadorias a suas cortes. A habilidade comercial destes homens e o fato de poderem apresentar os produtos requeridos a preços menores, dadas suas amplas conexões, levou os governantes de quase todos os estados do Sacro Império a confiar-lhes, em poucos anos, as principais tarefas administrativas de seus territórios. A estes judeus, que passaram a desempenhar funções semelhantes às que seus correligionários da Espanha, Portugal e Turquia já haviam executado, deu-se o nome de Hofjuden, ou "judeus da corte".
O primeiro a utilizar abertamente os serviços de um "Hofjude" foi o Imperador da Áustria. Tendo expulsado os judeus de Viena em 1670, ele logo se viu em dificuldades para levantar os fundos necessários às guerras contra a França e a Turquia, então os principais inimigos do Império. O judeu Samuel Oppenheimer passou a ser o encarregado das finanças imperiais, cargo que exerceu de 1673 a 1703. Além de reorganizar o sistema de impostos e encarregar-se de sua cobrança, Oppenheimer ajudou o Imperador a estabilizar a moeda, instalar fábricas, e prover o material necessário ao exército austríaco. Financiou também a campanha de 1683 contra o Império Otomano, cujos exércitos, depois de terem cercado Viena, foram expulsos graças à eficiente linha de abastecimento organizada por Samuel Oppenheimer, que permitiu às tropas imperiais lutarem durante o inverno. Quando morreu, porém, o Imperador recusou-se a saldar suas dívidas com os herdeiros, arrastando à bancarrota o banco fundado por ele.
A falência do Banco Oppenheimer ilustra bem a insegurança que rondava os Judeus da Corte. Por um lado, podiam viajar por onde quisessem, podiam morar em palácios luxuosos e enriquecer fabulosamente com os contratos do governo. Mas, por outro lado, dependiam exclusivamente da boa-vontade dos soberanos que os empregavam, os quais, por qualquer motivo, podiam levá-los à ruína. O caso mais espetacular desta ascensão e queda dos Hofjuden é o de Joseph Süss Oppenheimer, que serviu ao duque de Württemberg durante trinta anos. O "Jud Süss", como ficou conhecido, instalou no ducado uma fábrica de porcelana que mais tarde se tornaria uma das primeiras da Europa; estimulou a produção de tecidos de seda, então muito requisitados; organizou a administração do país, criando impostos sobre o tabaco e sobre o sal; e, durante o período em que serviu ao duque, implantou solidamente o poder deste através da sua habilidade econômica. Entretanto, uma obscura intriga palaciana o fez cair em desgraça, e em 1738 o "Jud Süss" foi enforcado numa praça pública, sendo todas as suas propriedades confiscadas. Embora nem todos os judeus da corte acabassem seus dias de maneira tão trágica, o espectro da ira real pairava constantemente sobre suas cabeças.
Os judeus da corte formam um capítulo importante da história financeira alemã, entre os Fugger do século XVI e os Rothschild do séculos XIX. O papel que desempenharam na consolidação do absolutismo nos pequenos estados foi considerável, e a eficiência administrativa de que deram provas foi um fator importante para reerguer os principados germânicos, após o desastre da Guerra dos Trinta Anos.
Para a História Judaica, a importância dos Hofjuden não é menor. As comunidades judaicas, encerradas nos guetos ou vivendo em condições precárias nas cidadezinhas do interior, passaram a ver neles seus protetores e representantes junto aos governos locais. Dada a influência de que dispunha esta minoria privilegiada, ela naturalmente passou a ter um peso desproporcional na condução dos negócios comunitários. A antiga estrutura democrática das kehilot alemãs, que examinamos no capítulo 6, já não podia ser mantida, frente à influência decisiva dos judeus da corte, porque estes arcavam com quase todos os impostos devidos às autoridades cristãs. O parnás, ou financiador, começa a ter um papel mais decisivo do que o rabino nas decisões comunitárias. Este fato é importantíssimo, porque toda a teoria judaica do governo repousava sobre a ideia de que os líderes comunitários deveriam ser homens de saber e não homens de poder. O processo de transferência do controle comunitário para os parnassim, gerado pelo aparecimento dos Hofjuden, demonstra que a democracia política só é possível quando há uma relativa igualdade econômica, como era o caso nas kehilot asquenazitas medievais. Quando esta igualdade relativa desaparece, ou porque a maioria se torna miserável, ou porque uns poucos enriquecem demasiado, o sistema democrático se torna inviável. Assim se repetiu no Sacro Império o mesmo fenômeno que ocorrera na Espanha e na Itália, mas de forma ainda mais aguda, dada a imensa diferença de posses que separava o judeu da corte da maioria dos seus correligionários.
Além disto, os judeus da corte foram utilizados pelos monarcas para limitar a autonomia das comunidades judaicas, fazendo que cada Hofjude — e os havia em quase todos os estados — participasse dos tribunais rabínicos, que eram a principal expressão daquela autonomia. Isto se explica pela política absolutista destes governantes, para quem a existência de ilhas autônomas ou semi-autônomas em seus territórios parecia cada vez mais intolerável.

Sob os Déspotas Esclarecidos
O século XVIII não começou bem para os judeus do Sacro Império. Em 1700, em Frankfurt, um teólogo chamado Johannes Eisenmenger escreveu mais um dos livros da inesgotável literatura antissemita alemã. Chamava-se "O Judaísmo Descoberto", e nele se repetiam os mais surrados mitos da Idade Média, desde o caráter pernicioso do Talmude até a acusação de bruxaria, de usura e do assassinato ritual. A coleção de livros antissemitas do século XVII inclui obras com os amistosos títulos de "A Peste dos Judeus", "Estudo sobre a Vida ímpia dos Judeus", "O Veneno das Serpentes Judaicas", e outras do mesmo gênero. Por certo, o progresso dos estudos hebraicos sérios produziu livros menos absurdos, como o "Lexicon Tal-mudicum" de Buxtorf (1632), que era um dicionário do Talmude, a "História dos Judeus" do francês Jacques Barnage, em que pela primeira vez um cristão procurava compreender cientificamente a trajetória do povo judeu, e a primeira tradução para o latim da Mishná, realizada em 1698, em Amsterdã, Mas estas obras tinham alcance apenas entre os eruditos, enquanto os livros antijudaicos, escritos em alemão e repetindo todos os preconceitos contra a imagem do judeu que tanto agradavam o público da época, tinham difusão muito mais ampla. O livro de Eisenmenger é apenas mais um exemplo da série.
Na Áustria, a situação judaica piora sensivelmente. Já não há mais judeus da corte como no século anterior, pois a administração suficientemente organizada os tornava dispensáveis. Os reis desta época são chamados "déspotas esclarecidos"; déspotas porque governavam sem qualquer representação popular, e esclarecidos porque procuravam desenvolver seus países, criando indústrias e aperfeiçoando a administração. No referente aos judeus, porém, os déspotas não foram nada esclarecidos. Pelo contrário, em 1745 a Imperatriz Maria Teresa os expulsa da Boêmia, onde constituíam a maior comunidade do Império, forçando-os a buscar refúgio na Polônia.
Outro grande "déspota esclarecido", o rei da Prússia Frederico II, deu mostras de barbarismo ainda maior. Os judeus haviam emigrado para a Prússia — que é a região ao redor de Berlim — nos fins do século XVII, ao serem expulsos de Viena; havia também refugiados da Polônia. Em 1671, fora promulgada uma lei razoavelmente tolerante, que estimulara a vinda dos judeus. A Prússia também teve os seus Hofjuden, que desempenharam um papel razoável na organização do abastecimento ao exército prussiano, que começava a se formar naquela época.
Os "Regulamentos" de Frederico II, expedidos em 1730 e 1750, eram de uma meticulosidade e de uma insensibilidade tipicamente prussianas. Limitavam a permanência no país aos judeus que possuíssem mais do que uma certa quantia, restringiam o número de casamentos por ano, criavam impostos absurdos, proibiam o exercício de numerosas profissões. O rei Frederico, porém, durante cujo governo a Prússia se converteu num Estado militar e economicamente poderoso, não hesitava em solicitar os serviços de judeus ricos: David Hirsh instala uma fábrica de veludo, Moisés Gumperz é o banqueiro da corte, e assim por diante.
Em 1770, a população judaica dos territórios alemães e austríacos deveria orçar pelos 200.000; constituíam cerca de 1% da população total, e sua participação na vida cultural e política desses países era perfeitamente nula. Encerrados nos guetos ou vivendo em esquecidas vilas provincianas, os judeus da Europa Central eram um monumento à brutalidade humana, depois de sete séculos de massacres, perseguições e discriminações, que começaram com as Cruzadas e só se irão aliviar com a Emancipação.
Mas, lentamente, novos processos começam a operar. Enquanto Frederico II se preocupava com o número de filhos que cada judeu poderia ter, o jovem Moisés Mendelssohn começava a despontar como um pioneiro do Iluminismo judaico. Eruditos alemães, influenciados pelo movimento de ideias do século XVIII, começavam a sugerir que talvez os judeus não fossem tão animalescos quanto se pensava. Iniciava-se a gestação da Revolução Francesa, em cujo bojo os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade prometiam uma vida menos mesquinha para os judeus da Europa. Todos estes processos, que representam o começo"de uma nova era para os judeus do Ocidente, culminaram na Emancipação, e marcam, a partir da década de 1790, o final da longa Idade Média Judaica. Eles serão estudados no próximo volume deste livro, que se ocupará da Idade Contemporânea.

Síntese
Neste capítulo, você estudou os principais processos sociais por que passaram os judeus da Europa Central entre 1500 e 1750. Vamos agora fazer uma recapitulacão sumária deles.
a) A extrema divisão territorial da região, herdada da Idade Média, perdurou durante a Idade Moderna. Reforçada pela Reforma, que objetivamente fortaleceu os estados alemães contra o poder central do Imperador, ela é o fato fundamental para compreender a história judaica deste período.
b) Os judeus continuam a ser expulsos das áreas germânicas e, naquelas em que são tolerados, verifica-se uma forte discriminação contra eles. Proibidos de exercer a usura em 1530, tornam-se principalmente comerciantes e mascates. Dirigem-se às pequenas vilas do interior, onde formam comunidades minúsculas, incapazes de produzir cultura no mesmo ritmo e qualidade da época medieval. A estrutura comunitária, desnecessária diante do pequeno número de judeus em cada kehilá, sofre um retrocesso da relação à que observamos durante a Idade Média. Formam-se guetos nas principais cidades, como Frankfurt, Viena e Praga.
c)    A Guerra dos Trinta Anos, embora tenha prejudicado os judeus devido à devastação e epidemias que acarretou, acabou sendo benéfica para eles.   Na qualidade de fornecedores dos exércitos em luta, muitos judeus retornam às cidades, invertendo o processo de interiorização verificado no século XVI. Surge a figura do Judeu da Corte, no período posterior à guerra (1670-1740). Os Hofjuden desempenham funções administrativas importantes, ajudando a consolidar o poder real e contribuindo para criar as estruturas fiscais do estado moderno. Sua influência nas kehilot é muito grande, levando à desaparição do velho modelo democrático e ao aparecimento de uma estrutura com bases mais fortes no poder do dinheiro,
d) A imagem do judeu continua a ser abominável perante o público alemão e austríaco. Começando com a polêmica entre Pfefferkorn e Reuchlin (1509-1516), ela continua a ser divulgada nas obras de Lutero. O século XVI! é especialmente prolífico em obras antissemitas, que caracterizam o judeu como deicida, usurário, assassino, ladrão, feiticeiro, aliado do Demônio, e outras qualidades igualmente apreciáveis. Estas obras contribuem para alimentar o antissemitismo das populações da Europa Central, que já viam nele um perigoso concorrente econômico. Os livros menos desfavoráveis atingem apenas uma pequena faixa de intelectuais, interessados na cultura judaica por razões religiosas,
e) O século XVIII não melhora muito a situação do judeu, presenciando várias expulsões e a edição dos draconianos regulamentos de Frederico II. No entanto, lentamente se vão originando os processos que comandarão, a partir de 1789, a Emancipação dos judeus e sua relativa integração nas sociedades alemãs'.
Em suma, as condições religiosas e políticas da Europa Central fazem a vida judaica, durante o período que estudamos, insegura, mesquinha. Não obstante, a diversificação econômica e o episódio dos judeus da corte são os primeiros indícios de que os judeus, se libertados das restrições esmagadoras que pesavam sobre eles, poderiam vir a contribuir para o progresso e o desenvolvimento da sociedade global, bem como retomar o ímpeto cultural de que haviam dado provas durante a Idade Média.


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Fonte:
O Caminho do Povo Judeu - Volume III, por: Renato Mezan. Federação Israelita do Estado de São Paulo, 2ª Edição. São Paulo, 1982, págs. 251-275.

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