Judeus do gueto e judeus da corte
Depois de
acompanhar, nos dois capítulos precedentes, a história dos judeus sefarditas
após sua expulsão da Península Ibérica, vamos retornar agora à Europa Central,
isto é, às regiões da Alemanha, Áustria, Checoslováquia e Hungria, que formavam
o Sacro Império. Neste capítulo, examinaremos os processos econômicos, sociais
e políticos pelos quais passaram os judeus asquenazitas durante os dois séculos
e meio que vão de 1500 a 1750. Para compreendê-los bem, contudo, é preciso
examinar rapidamente a situação da Europa Central no começo do século XVI.
A Alemanha em 1500: A Reforma
Ao contrário
do que ocorreu na Europa Ocidental, onde no decorrer da Baixa Idade Média
surgiram monarquias centralizadas em Portugal, na Espanha, França e Inglaterra,
na Europa Central não se verificou a fusão dos pequenos estados feudais num
único país. Vários fatores concorreram para isso: a extrema divisão
territorial, que tornava impossível a um senhor impor seu domínio aos outros,
porque nenhum feudo dispunha dos recursos necessários para tanto; o fato de o
Imperador ser eleito, dependendo por isto dos senhores que o escolhiam, os
quais não tinham nenhum interesse em fortalecer um poder central; e a
existência de uma burguesia comercial forte nas cidades principais, que
resistia a todas as medidas centralizadoras, por considerar que estas poderiam
privá-la da sua autonomia. A força combinada destes fatores contribuiu para
preservar na Europa Central um verdadeiro mosaico de principados, bispados,
cidades livres e domínios imperiais, cada qual cioso de suas prerrogativas e
procurando impedir que qualquer estado se tornasse suficientemente forte para
unir sob seu comando todos os territórios da região.
Por outro
lado, todas estas pessoas sentiam-se unidas pela língua alemã e pelos costumes,
hábitos e ideias mais ou menos comuns em toda a área. Na impossibilidade de
manifestar-se de forma política, através da constituição de um só país, este
sentimento nacional alemão acabou por vir à tona sob uma forma religiosa. O
nacionalismo germânico é um dos motivos que levaram à eclosão da Reforma
Protestante. As transformações sociais e econômicas da Baixa Idade Média
geraram a necessidade de novas formas religiosas. A partir de 1400, vários
pensadores propuseram reformas na estrutura e na doutrina da Igreja, para
adaptá-las a estas novas realidades.
Esta
tendência a modificar certos aspectos da Igreja somou-se ao nacionalismo alemão
de que falamos antes, para originar um movimento que, inicialmente religioso,
acabou por se transformar numa força política de primeira grandeza: a Reforma
Protestante. Iniciado em 1517 por Martinho Lutero, na Alemanha, o movimento
logo se expandiu por todo o Norte da Europa, por intermédio de discípulos que
nem sempre concordavam com as ideias daquele monge alemão. A história da Europa
dos séculos XVI e XVII, e consequentemente a história dos judeus europeus desta
época, só pode ser compreendida à luz dos conflitos desencadeados pela Reforma.
"As
ideias de Lutero podem ser resumidas da seguinte maneira: Deus revelou ao
homem, na Bíblia, tudo o que é necessário para a sua salvação. A Igreja,
contudo, deturpou esta mensagem divina, tornando-se uma organização complexa,
cujo objetivo principal consistia em aumentar sua influência política. Por
isto, os cristãos deveriam abandonar a tutela da Igreja, e lançar-se à leitura
e investigação da Bíblia, onde estão contidas todas as diretrizes para evitar o
pecado e obter a salvação eterna. Cada pessoa, utilizando seu próprio
raciocínio, poderia atingir este conhecimento, sem a intervenção da hierarquia
da Igreja. Lutero modificou ainda certos aspectos da doutrina cristã, que não
nos interessam neste momento; mas sua insistência na fé pessoal e no exame
individual da Bíblia são as principais características do novo pensamento
religioso.
Ao recusar
obediência a Roma, os reformadores salientavam a necessidade de obedecer às autoridades
locais alemãs. Ao afirmar que o clero não precisava de riquezas, permitiam que
os numerosos bens da Igreja fossem transferidos para os príncipes alemães. Ao
introduzir o alemão no culto, em vez, do latim, permitiam que todos os fiéis
participassem das cerimônias religjosas. E, sobretudo, ao proclamar o direito
de cada indivíduo a ler e meditar sobre a Bíblia, estimulavam o individualismo
que começava a surgir nas cidades comerciais alemãs. Assim, fossem quais fossem
os objetivos religiosos de Lutero e seus seguidores, as ideias por eles
defendidas apresentavam uma excelente justificação para que os príncipes e as
cidades da Alemanha pudessem manter e reforçar sua tradicional independência.
Para cada setor da sociedade, a Reforma trazia um apelo eficaz: para a nobreza,
o pretexto para se apossar das vastas riquezas da Igreja; para a burguesia, o
reconhecimento do valor do indivíduo, do trabalho e da riqueza; para os pobres,
a esperança de uma vida melhor; para os devotos, uma religião mais pura; para
todo o povo alemão, uma expressão religiosa da sua particularidade nacional.
A situação
política do Sacro Império complicou-se ainda mais com o surgimento do
protestantismo. O Imperador, embora formalmente eleito pelos nobres, era sempre
escolhido na família dos Habsburgos, cujos domínios abrangiam principalmente a
Áustria. Um dos Habsburgos era o rei da Espanha, que, como vimos, havia se
tornado o principal defensor da Igreja, criando inclusive a Inquisição. A
família Habsburgo continuou católica, enquanto parte dos nobres alemães
abraçava o protestantismo. A luta dos nobres para conservar sua independência
frente ao Imperador assumiu assim um caráter religioso, além de político.
Em 1555, a
Dieta ou Parlamento, reunida na cidade de Augsburgo, proclamou a primeira lei
de tolerância religiosa no Império: cada estado poderia adotar a religião que
quisesse, contanto que todos os seus habitantes a professassem. Era o
reconhecimento de que nem católicos nem protestantes haviam vencido totalmente:
cada lado reconhecia ao outro uma parcela de vitória. Mas era também um triunfo
dos pequenos Estados contra o Imperador, já que este, apesar de católico, não
conseguia impor suas ideias a todo o Império.
A Reforma
não se restringiu à Alemanha. A Inglaterra e os países escandinavos — Suécia,
Noruega e Dinamarca — adotaram várias de suas versões antes de 1540. Parte da
Suíça, influenciada por Calvino, também se tornou protestante. A Boêmia, que
corresponde aproximadamente à Checoslováquia de hoje, aderiu em peso a ela, bem
como largos setores da França, da Hungria e da Polônia. Para nosso estudo neste
momento, todavia, basta recordar que a unidade religiosa se rompeu no Sacro
Império, onde o protestantismo acabou por se tornar o veículo de expressão das
tendências nacionalistas, e fortaleceu os pequenos estados contra a pressão
centralizadora exercida pelos Habsburgos. Contudo, o verdadeiro terremoto
político e religioso desencadeado por Lutero acabou por atingir também os
judeus que viviam no Sacro Império. À luz do que acabamos de analisar, vamos
ver agora em que situação eles se encontravam.
A
importância da fragmentação política e religiosa da Europa Central para a
História Judaica consiste no fato de que ela impediu uma expulsão completa dos
judeus da região, já que seus numerosos estados, que não conseguiam pôr-se de
acordo em questões muito mais importantes, jamais puderam concertar uma ação
comum contra eles.
De forma
geral, podemos dizer que, durante o século XV, a situação dos judeus na Europa
Central foi da mais completa insegurança,
tendo-os expulsado, uma ou outra vez, quase todas as regiões. Além de estimular
a emigração dos judeus para o Leste, onde a Polônia lhes estendia sua
hospitalidade, como veremos no próximo capítulo deste livro, estas medidas
tornaram mesquinha e insegura a vida dos poucos judeus que permaneceram na
região centrai da Europa,
A imagem do
judeu, alimentada pelos preconceitos da Baixa Idade Média, tinha três traços
principais: ele era considerado deicida, estrangeiro e usurário, Deicida porque
seus antepassados haviam crucificado Jesus; usurário porque, devido às
restrições à sua participação nas profissões "decentes" do comércio e
do artesanato, ele se havia encaminhado para o comércio de dinheiro a partir do
século XIV. O curioso é que os principais banqueiros da época não eram judeus,
mas cristãos fervorosos. Os judeus, empobrecidos pela situação instável a que
se viam submetidos, formavam uma fração minúscula dos que se dedicavam ao
negócio bancário , e não podiam nem de longe concorrer com os vastíssimos
capitais dos Fugger ou dos Welser. Mas a força do preconceito impedia a
compreensão deste fato, e o ódio aos ricos transferiu-se para os judeus, embora
estes fossem na verdade um dos setores menos privilegiados da população. E por
fim, o caráter de "estrangeiro", apesar de os judeus terem vivido por
séculos a fio naquela área, baseava-se na diferença religiosa. Não sendo
cristão, e vigorando a ideia de que num país só poderia existir uma religião, a
conclusão de que o judeu era estrangeiro e se impunha como natural, A força
combinada do ódio ao deicida, do ódio ao usurário e do ódio ao estrangeiro,
herdados da Idade Média e aguçados pelas tensões sociais e religiosas do começo
do século XVI, acabou por gerar um preconceito inteiramente desproporcional à
quantidade e à influência dos judeus, que eram efetivamente muito pequenas.
Este, aliás, é o mecanismo usual do antissemitismo: atribuir aos judeus, que
raramente ultrapassam um ou dois por cento da população, uma força oculta
extraordinária, sempre imaginada como voltada para o mal.
Esta imagem
triplamente negativa dos judeus, contudo, não era tão coerente no tocante aos
livros judaicos. Neste campo, as ideias medievais, que afirmavam serem o
Talmude e a Cabala verdadeiros manuais de bruxaria, repletos de ofensas ao
cristianismo, e que deveriam ser queimados pelas autoridades, começavam a ser
contestada pelos humanistas. Vimos no capítulo 8 que estes se interessavam
pelas civilizações antigas, procurando redescobrir o verdadeiro significado das
obras gregas e latinas. Este interesse entendia-se também à Bíblia, e vários
humanistas procuraram aprender o hebraico para estudá-la no original, Entraram
assim em contato com a enorme literatura rabínica da Idade Média, sobre a qual
já falamos várias vezes. Perceberam desta forma que o trabalho dos gramáticos e
talmudistas judeus, longe de ser uma obra do Demônio, era um instrumento útil
para a compreensão do texto bíblico. Isto não quer dizer que os humanistas apreciassem
os judeus; apenas consideravam válidas algumas das ideias contidas em certas
obras judaicas, mesmo porque lhes parecia, certa ou erradamente, que elas
confirmavam a doutrina cristã.
Estas
facetas ambíguas da imagem do judeu vieram à tona em 1509, quando um judeu
convertido ao cristianismo, chamado Johannes Pfefferkorn, tornou a repetir as
velhas noções medievais de que o Talmude era uma obra indecente e sacrílega.
Pfefferkorn, com o apoio dos frades dominicanos, procurou o Imperador para
pedir-lhe que mandasse queimar todos os exemplares do Talmude existentes no
Império. O Imperador nomeou então uma comissão de hebraístas cristãos para
examinar o Talmude e opinar sobre o seu conteúdo.
Desta
comissão fazia parte o famoso humanista Johannes Reuchlin (1455-1522). Reuchlin
havia estudado com rabinos, e era o principal hebraísta daquela época. Havia
sido atraído pelas doutrinas da Cabala, porque acreditava que elas confirmavam
os dogmas da Igreja. Embora não tivesse lido o Talmude, seu parecer foi favorável
aos livros judaicos; tomou também a defesa dos judeus, afirmando que eles eram
cidadãos do Sacro Império e que a violência usada contra eles era ilegal e
contrária à caridade cristã. A posição liberal de Reuchlin encontrou vigorosa
oposição por parte das Universidades mais conservadoras. A polêmica estendeu-se
por toda a Europa, tendo os humanistas se aliado com o sábio alemão, mesmo que
não apreciassem pessoalmente os judeus.
Mas esta
decisão do Papa não significou muito no sentido de melhorar a posição dos
judeus na Alemanha; enquanto se desenrolava a polêmica, com efeito, 38 judeus
foram queimados em Berlim (1510) e a secular comunidade de Regensburg foi
expulsa da cidade (1519).
O debate
sobre os judeus recebeu novo impulso com a Reforma Protestante. A princípio,
Martinho Lutero procurou convertê-los, pensando que sua nova versão do
cristianismo pudesse efetivamente parecer válida aos olhos dos judeus. Em 1523,
seu panfleto "Que Jesus Cristo nasceu Judeu" acenava com a conversão
e com a solução definitiva do problema judaico, e em geral era favorável ao
povo de Israel. Mas os judeus não corresponderam às expectativas de Lutero, e
muito poucos foram os que renunciaram ao judaísmo. Além disto, as posições
políticas de Lutero o colocaram contra os judeus: enquanto estes permaneceram
ao lado do Imperador, os príncipes luteranos utilizaram a Reforma para ampliar
sua autonomia. O ódio de Lutero à usura, estimulado pelo fato de os grandes
banqueiros não aderirem à Reforma, porque isto seria contrário a seus
interesses — nada mais fácil que seus numerosos devedores católicos, que
incluíam vários reis e príncipes, recusarem-se a pagar as dívidas em nome dos
princípios religiosos — levou-o a ver no judeu um elemento nocivo à sociedade,
dentro da imagem que já analisamos. Em seus últimos anos, Lutero foi assediado
por pesadelos e visões, que lhe pareciam coisa do Diabo, em quem acreditava
firmemente. Não podendo lutar contra o Príncipe das Trevas, escolheu combater
seus aliados na terra — os judeus. Todos estes fatores psicológicos,
religiosos, econômicos e políticos o levaram a publicar, entre 1538 e 1543,
vários panfletos violentamente antissemitas, dos quais o mais importante é
"Dos Judeus e suas Mentiras" (1542). Ao lado das acusações de sangue,
o mito do demônio e o ódio ao usurário, os libelos de Lutero formam um dos
principais componentes do arsenal do antissemitismo alemão.
Nem todos os
Reformadores, porém, foram tão antijudaicos quanto seu mestre. Vários deles
eram hebraístas eruditos e consideravam que o hebraico era indispensável para
entender a Bíblia, que por sua vez era indispensável para obter a salvação.
Embora quase todos procurassem converter os judeus, eram mais moderados em sua
linguagem e em sua atitude do que Lutero. Mas isto tampouco influiu muito nas
condições de vida dos judeus; durante o período que estamos analisando, elas
continuavam a ser precárias, e a agitação religiosa e política desencadeada
pela Reforma inicialmente contribuiu apenas para piorá-la.
Da Reforma à Guerra dos Trinta Anos
A enorme
variedade das medidas que afetaram os judeus nos cem anos que vão de 1517
(início da Reforma) a 1618 (início da Guerra dos Trinta Anos) torna difícil
qualquer generalização. Mas de uma maneira global, podemos dizer que três
processos emergem com relativa clareza: a interiorização, a diversificação econômica
e a transferência da soberania sobre eles, do Imperador para os pequenos
estados.
Desde a
Antiguidade grega e romana, os judeus da Diáspora haviam sido habitantes das
cidades. Na Europa medieval, haviam sido em certas épocas os principais habitantes das cidades. Mas,
com a série de expulsões do século XV, que os afastou de quase todos os centros
urbanos importantes do Sacro Império, verifica-se um processo de interiorização
da população judaica. Isto quer dizer que os judeus se dispersam por numerosos
vilarejos e aldeias, passando a contar cada comunidade com pouquíssimas
famílias, raramente mais de dez ou quinze. O nível cultural baixou muito, pois
em lugares tão pequenos era quase impossível estudar; também diminuiu a
intensidade da vida comunitária, que havia sido muito fecunda durante a Idade
Média, pela simples razão de que com tão poucas pessoas — quase nunca chegavam
a 100 os judeus de sua comunidade típica — não era preciso dispor das
elaboradas estruturas comunitárias a que nos referimos no capítulo 6.
Do ponto de
vista econômico, verifica-se uma diversificação nas ocupações dos judeus.
Enquanto na Baixa Idade Média muitos se haviam dedicado ao comércio do
dinheiro, a interiorização obrigou-os a encontrar outras profissões. Em 1530, a
Dieta havia-lhes proibido a prática da usura; além disto, as gigantescas
organizações bancárias dos Fugger e dos Welser preenchiam esta função muito
melhor que os judeus, cujo capital se havia consumido em meio às expulsões e
restrições do século XV.
Assim,
passam eles maciçamente da usura para o comércio. Em contato com os produtores
agrícolas, tornam-se comerciantes de cereais, gado, verduras e outros produtos
semelhantes. Na direção contrária, da cidade para o campo, os judeus tornam-se
distribuidores de produtos manufaturados, surgindo a figura do humilde mascate
judeu, que, com sua mala de bugigangas às costas, ia de aldeia em aldeia,
vendendo aqui um pente, acolá uma panela e mais adiante um paletó. O mascate,
além de trazer ao campo os produtos das áreas urbanas, levava consigo também às
informações do momento, numa época em que a inexistência de jornais tornava o
mexerico a única forma de se saber o que ocorria no mundo. O mascate preenchia
assim uma útil função social, entrando para o folclore judaico numerosas
histórias acerca destes pitorescos viajantes. A liberdade de comerciar foi
reassegurada aos judeus por um decreto imperial de 1544; mas apesar do decreto,
os judeus continuaram pagando os numerosos impostos de entrada e saída nos
territórios de cada Estado, o que dificultava sua vida ainda mais do que a
intolerância religiosa.
Este decreto
de 1544 constitui uma das últimas tentativas do Imperador, no sentido de
assegurar sua soberania sobre os judeus. Devemos lembrar que, ao menos teoricamente,
eles eram vassalos diretos do Imperador, sendo considerados "servos da
câmara imperial". Mas com a crescente autonomia dos incontáveis territórios
que formavam o Império, os príncipes e as cidades passaram a exercer sobre as
comunidades judaicas um controle muito mais efetivo do que o do Imperador.
Assim, em Frankfurt, os judeus viviam de acordo com os regulamentos da cidade,
mas na Saxônia ou na Boêmia as normas poderiam ser completamente diferentes. As
autoridades locais tendiam a ser mais intolerantes do que o remoto poder
central, porque sofriam mais pressões da população, a qual manteve
sistematicamente sua atitude contrária aos judeus, temendo que estes lhe
fizessem concorrência.
Esta
dispersão da influência sobre os judeus em mãos de dezenas de autoridades
locais, ou no máximo regionais, tornou possível o surgimento de uma figura
nova: a do Shtadlan. Este era um
judeu que, por seus dotes de orador e sua intimidade com os novos senhores,
procurava impedir que fossem adotadas medidas antijudaicas nos vários estados.
Ó primeiro deles foi Josel de Rosheim, que viveu entre 1478 e 1544. Josel não
era um rabino, mas um homem do mundo que viajava incessantemente pelo Império,
procurando defender os judeus. Josel recebeu o título de "chefe dos
judeus", embora tal honra apenas nominal equivalesse a um esforço do
Imperador para reter o controle dos judeus contra as tendências desagregadoras
que então se verificam.
Em 1555, o
Império passou por uma modificação importante: a família dos Habsburgos
tornou-se herdeira do título imperial. Ao contrário de vários de seus
predecessores, os Habsburgos tinham domínios próprios, que correspondiam a
amplas regiões da Áustria. O centro do Império desloca-se para Viena, e durante
as décadas seguintes os Habsburgos tentam repetir o que os reis da França
haviam realizado no século XIII: a efetiva unificação do país numa monarquia
centralizada. Seu êxito foi apenas parcial: na Áustria e nas áreas próximas,
efetivamente se implantou um regime mais centralizado; mas no atual território
alemão, a incontável quantidade de poderes locais impediu a unificação,
permanecendo o domínio do Imperador puramente nominal. Em consequência disto,
os judeus que residiam na Áustria e nas áreas adjacentes permaneceram sob a
suserania do Imperador, mas os que viviam na Alemanha continuaram sob o domínio
das autoridades locais. Vamos mencionar agora os principais processos que os
afetaram em cada uma das regiões principais.
Na Áustria-,
o Imperador estava interessado em proteger os judeus por duas razões: porque
eram seus servos pessoais e porque, estando em toda parte, servir-lhe-iam como
uma espécie de elemento unificador de suas possessões. O principal inimigo da
Áustria nesta época era o Império Otomano, então em sua fase de maior expansão.
O Imperador necessitava dos impostos judaicos para equipar seu exército, o que
o levou a estimular a volta dos judeus a várias cidades de onde haviam sido
expulsos durante o século XV, incluindo Viena. Os impostos altíssimos obrigavam
os judeus a exercer a usura, cobrando juros igualmente elevados para poder
pagá-los. Isto despertou a ira dos burgueses, cujo órgão representativo, os
Estados Gerais, pressionaram os vários imperadores para que expulsas-' sem os
judeus ou limitassem sua atividade econômica. A título de exemplo, em 1599 as
31 famílias judaicas de Viena contribuíram com a enorme soma de 17.000 florins
para o custeio da guerra, enquanto, para dar uma comparação, o salário de um
rabino
girava em torno de 1.000 florins por ano. Durante todo o século XVI, a
contradição entre o interesse dos burgueses e. a utilidade dos judeus para o
Imperador fez que a política da Áustria para com eles oscilasse entre a
tolerância e as ameaças de expulsão.
A maior
concentração judaica localizava-se na Boêmia, cuja capital, Praga, fora a sede
de uma antiga comunidade desde a Alta Idade Média. Em 1542, os judeus são
expulsos de Praga, mas concede-se a muitos deles o direito de residência
temporária, mediante o pagamento de certas taxas. Em 1546, há perto de 1.000
judeus em Praga. A maior parte da população da Boêmia era protestante, criando
problemas para os católicos Habsburgos. Os judeus, com sua neutralidade
religiosa, eram um instrumento útil para preservar o equilíbrio, e, sendo diretamente
dependentes do Imperador, forneciam-lhe um pretexto para intervir na região. Em
1577, confere-se aos judeus da Boêmia novos direitos, incluindo o de viajar sem
restrições e sem impostos por todo o Império. A tolerância atraiu para a Boêmia
grande número de judeus, possibilitando o surgimento de uma forte organização
comunitária e a transformação de Praga num dos principais centros de cultura
judaica na época. O cronista David Gans deixou-nos um vívido relato das
condições de vida na Boêmia quinhentista, embora não tão analítico quanto os
escritores da escola historiográfica italiana. Os rabinos de Praga alcançaram
renome internacional, o que é notável numa época tão conturbada para os judeus
quanto esta que estamos analisando.
A comunidade
da Hungria, que contava em 1524 com cerca de 15.000 pessoas, foi atingida pela
invasão otomana em 1526. A maior parte dos judeus húngaros passou assim ao
controle do Império Otomano, gozando dos mesmos direitos a que nos referimos no
capítulo 8. Os que permaneceram no Império viveram nas mesmas condições que os
judeus da Boêmia, dedicando-se ao comércio de gêneros alimentícios, a
mascatear, a emprestar a juros. É importante notar que em nenhum ponto do
Império os judeus podiam possuir terras, sendo-lhes vedada, portanto, a prática
da agricultura. Tampouco eram admitidos na Universidade, o que lhes fechava a
porta das profissões, como a medicina e a advocacia. E muito menos poderiam
fazer carreira na burocracia governamental, que começava a se organizar na
Áustria, na Boêmia e na Hungria durante o século XVI, acompanhando o esforço de
centralização de que falamos atrás. Sobrava apenas o comércio, e mesmo este
encontrava as restrições dos burgueses cristãos. A vida dos judeus destas
regiões era, assim, bastante difícil, contrastando com a liberdade de que
gozavam no Império Otomano, do outro lado da fronteira.
Por outro
lado, no centro e no norte do Império, o poder da autoridade central era muito
limitado. Entre as poucas cidades em que eram admitidos os judeus, Frankfurt
abrigava a principal comunidade, com cerca de 2.000 judeus por volta de 1600.
Em Frankfurt os judeus viviam no gueto local, que, originando-se do antigo Judenviertel ou bairro judaico, havia
sido murado durante o século XVI, a exemplo do que ocorrera na Itália.
Frankfurt era um ativo centro comercial, localizando-se a meio caminho da
Itália e do mar do Norte; e os judeus, na medida em que lhes era permitido,
participavam destas atividades econômicas. A onda de expulsões, atraindo para a
cidade numerosos judeus, provocara a ampliação do gueto, que se tornou um dos
maiores da Europa, tendo, em 1600, umas 200 casas.
Como em
outras cidades alemãs, o surto econômico trazido pelo comércio havia
beneficiado apenas uma minoria de ricos burgueses, enquanto os pequenos
comerciantes e artesãos se viam marginalizados. A violenta inflação europeia do
século XVI, criada pelo afluxo de ouro e prata da América, contribuiu para
acentuar estas tensões sociais, bem como a desvalorização das moedas, efetivada
para fornecer fundos aos tesouros dos príncipes alemães. Alguns judeus, na
qualidade de moedeiros reais, haviam colaborado para implementar estas
desvalorizações. O ressentimento dos pequenos burgueses contra os mais ricos
explodiu numa revolta aberta em 1612, que afetou também a população judaica
relativamente numerosa de Frankfurt.
Liderados
pelo salsicheiro Vincent Fettmilch, os pequenos burgueses conseguem obter o
controle da cidade, através de uma modificação no sistema de escolha dos
conselheiros municipais. Uma das exigências do partido popular era a expulsão
dos judeus, a quem Fettmilch acusava de estarem roubando o povo. Num ataque ao
gueto, em 1614, os populares irritados pilharam as casas, levando os poucos
objetos de valor que encontravam. Em seguida, a comunidade de cerca de 2.000
pessoas foi solenemente expulsa da cidade. O Imperador, que pretendia ainda
manter seu controle sobre os judeus, expediu um decreto ordenando a sua
imediata reintegração na cidade, e punindo severamente Fettmilch e seus
adeptos, tanto por estimularem a revolta do povo, quanto por tocar nos
"servos da câmara imperial", cuja exploração Sua Majestade reservava
para si. A data da reintegração dos judeus na cidade passou a ser celebrada
anualmente, tornando o nome de "Purim de Frankfurt". Um incidente
parecido ocorreu em Worms, tendo o Imperador igualmente ordenado a volta dos
judeus. Tanto num caso como no outro, porém os decretos de retorno continham
cláusulas novas, que nunca haviam sido promulgadas durante a Idade Média. No
gueto de Frankfurt, não poderia haver mais de 500 família. Permitiam-se 12
casamentos por ano, e apenas 6 judeus de outras cidades poderiam visitar o
gueto por tempo mais longo, no decurso de um ano. Estas medidas, que visavam
limitar o aumento da população judaica, correspondiam à pressão dos burgueses
no sentido de evitar a concorrência dos judeus. Logo copiada por outras regiões,
com variações mais ou menos cruéis, a limitação dos casamentos e do número de
filhos que cada judeu podia ter tornaram impossível a vida normal às
comunidades alemãs, de onde muitos membros emigraram para a Áustria, para a Boêmia
e para a Polônia.
Sumarizando
as condições da vida judaica no Sacro Império durante o século XVI, podemos ver
quão mesquinha e estreita ela se havia tornado, dentro dos guetos fétidos e
escuros que abrigavam a maioria dos judeus nesta região. As principais
comunidades localizavam-se nas áreas católicas, onde o poder do Imperador era
perceptível; se havia judeus em muitíssimos lugares, na quase totalidade dos
casos tratava-se de minúsculas kehilot,
incapazes de produzir sequer o seu próprio sustento, quanto mais criar obras culturais
dignas do passado fecundo do povo judeu.
A Guerra dos Trinta Anos
Entre 1618 e
1648, um conflito de grandes proporções abalou o equilíbrio político e econômico
da Europa: a Guerra dos Trinta Anos, em que a França, a Holanda e a Suécia
aliaram-se contra a Espanha e o Sacro Império. Aparentemente uma guerra de
religião, em que protestantes e católicos procuraram varrer do mapa seus
respectivos adversários, a Guerra dos Trinta Anos continha também elementos
políticos e econômicos, que você estudará no curso da História Geral.
Tudo começou
com um obscuro incidente na Boêmia, que se recusou a aceitar a autoridade do
Imperador. Este deslocou para lá seus exércitos, que, após seis anos de luta,
esmagaram os tchecos em 1624; em seguida, os jesuítas reconverteram o país ao
catolicismo. O Imperador, estimulado por sua vitória, quis extirpar o
protestantismo de seu território, e marchou para os estados alemães que
aceitavam a doutrina de Lutero. Assim fazendo, rompia a Paz de Augsburgo, de
1555, que, como já observamos, estimulava a convivência de católicos e
protestantes no Império. A aliança da Áustria e da Espanha, em nome do
catolicismo, levou a França a se aliar aos outros inimigos do Império e a
iniciar a guerra. No contexto das hostilidades entre a Espanha, aliada da
Áustria, e a Holanda, aliada da França, foi que os holandeses resolveram tomar
o Brasil, que pertencia então à coroa espanhola (1630-1654).
O palco das
batalhas foi a Alemanha. Durante anos a fio, soldados de todas as nações
atravessaram os territórios germânicos, saqueando, pilhando e massacrando a
população. O esforço econômico necessário para sustentar exércitos enormes, que
se moviam lentamente e necessitavam de suprimentos em quantidades nunca vistas,
acabou por arruinar o país. Quando a guerra acabou, em 1648, os estados alemães
estavam em condição desesperadora: seus campos incendiados, sua população
faminta, seu comércio arruinado, suas manufaturas incapazes de concorrer com as
da França e da Holanda.
Os judeus,
vivendo em plena zona de conflito, isto é, na Boêmia, Áustria e Alemanha, foram
afetados decisivamente pelo seu desenvolvimento. A Guerra dos Trinta Anos marca
o início de novos processos sociais na História Judaica, que vamos analisar
agora.
Quando, a
partir de 1625, os exércitos franceses e suecos começaram a penetrar na
Alemanha, os judeus da região viram-se envolvidos na campanha. Não houve
perseguições contra eles, pois os protestantes estavam ocupados em matar os
católicos e vice-versa. O principal prejuízo para estas comunidades foi
representado pelas pilhagens e pela devastação que vieram com os combates. A
insegurança das áreas rurais estimulou a volta dos judeus para as cidades
principais, como Frankfurt e Hamburgo, invertendo o processo de interiorização
que se havia verificado no século anterior. Cada vez que uma cidade trocava de
mãos, era obrigada a hospedar os soldados invasores e a pagar pesados tributos
para manter em paz as tropas estrangeiras. Naturalmente, os judeus contribuíram
com parcelas consideráveis destes tributos, o que acelerou seu processo de
empobrecimento. A população judaica também diminuiu, em parte devido à fome, às
epidemias e à insegurança geral, e em parte porque poucos se arriscavam a ter
filhos em meio ao ambiente turbulento da guerra. Em 1638, as principais
comunidades eram a de Praga, com 8.000 almas, a de Viena, com cerca de 2.500, e
a de Frankfurt, com perto de 2.000. As três viviam nos limites dos respectivos
guetos, sendo Praga a mais importante, pelo número e pela relativa tranquilidade
de que desfrutou após os primeiros anos de guerra, já que o teatro de operações
se havia deslocado para a Alemanha.
A invasão da
zona costeira do Báltico pelos suecos acarretou a ruína das cidades alemãs
daquela região; como consequência, a liderança econômica da área passou para a
cidade de Hamburgo, que, por se localizar na costa do mar do Norte, permaneceu
relativamente a salvo da devastação trazida pela luta, que se desenvolvia em
outras regiões. O mar do Norte — que banha as costas da Inglaterra, França e
Holanda — havia-se tornado o centro do comércio internacional, em consequência
do extraordinário desenvolvimento da República holandesa a que nos referimos no
capítulo anterior. Ali começou-se a constituir uma comunidade judaica diferente
de todas as outras então existentes no Sacro Império: formada por sefarditas
provenientes da Holanda, logo tomou a liderança do judaísmo alemão.
Os judeus
portugueses e espanhóis que se estabeleceram em Hamburgo, a partir de 1612,
eram comerciantes e banqueiros com vastos capitais e experiência no comércio
internacional. Esta característica, que os distinguia dos judeus paupérrimos do
resto da Alemanha, tornou-os bem-vindos ao porto de Hamburgo, que então
começava a se desenvolver. As principais famílias sefarditas, como a dos
Teixeiras, participaram da fundação do Banco de Hamburgo, efetivada em 1619 nos
mesmos moldes do Banco de Amsterdã. Estabeleceram na cidade sua primeira
refinaria de açúcar, bem como as fábricas de óleo, sabão e de outros produtos
que requeriam investimentos consideráveis. Hamburgo tornou-se a primeira cidade
alemã a conceder plena liberdade aos judeus, beneficiando-se disto como já
ocorrera com sua vizinha e competidora, a Holanda. Os judeus hamburgueses
destacaram-se também fora do comércio: o médico Rodrigo de Castro, ex-marrano
espanhol, escreveu ali seu famoso "Tratado sobre a Peste", em que
afirmava pela primeira vez na Europa que a peste era transmitida por organismos
minúsculos.
Três outras
consequências advieram para os judeus do terremoto político e religioso
desencadeado pela guerra, além das que já mencionamos, isto é: a inversão do
processo de interiorização e a ascensão de comunidade de Hamburgo. Em primeiro
lugar, os judeus deixaram de ser a única minoria perseguida, pois os progressos
da tolerância acabaram, embora muito lentamente, por se estender também a eles.
Em segundo lugar, a derrocada do poder imperial sobre os territórios alemães
fez que terminasse definitivamente a aliança entre os judeus e o Imperador, que
vinha, como vimos, desde a época dos carolíngios. Com sua paulatina readmissão
nas áreas protestantes, como Hamburgo e Berlim, o controle sobre os judeus
destes estados passou a ser exercido definitivamente pelos príncipes e
conselhos municipais de cada estado. Mas a mais importante consequência da
guerra foi a descoberta de que os judeus podiam ser úteis aos governos dos
territórios onde habitavam, surgindo assim a figura nova — pelo menos na Europa
Central — do "judeu da Corte".
Os Judeus da Corte
A Guerra dos
Trinta. Anos exigiu um enorme esforço econômico. As técnicas militares estavam
mudando rapidamente, com a criação de exércitos regulares pagos pelos governos,
ao invés dos grupos armados pelos senhores feudais que haviam caracterizado as
lutas medievais. A invenção da pólvora tornou obsoletos os regimentos de
arqueiros e os lanceiros que combatiam corpo a corpo. Como é possível atirar de
uma distância relativamente grande — e esta distância foi aumentando à medida
que se aperfeiçoaram novos tipos de mosquetes e canhões — os exércitos podiam
ficar longe uns dos outros, desgastando o adversário e esperando o momento mais
adequado para atacar com a cavalaria.
Campanhas
mais demoradas e exércitos mais numerosos criaram o problema do abastecimento.
Esta gente toda, que se contava por milhares, precisava de alimentos, roupas,
munição e outros artigos. Surge então a oportunidade, para os comerciantes
empreendedores, de se tornarem fornecedores militares, comprando grandes
quantidades destes produtos e vendendo-os aos exércitos. E, desconfiando os
católicos dos protestantes e vice-versa, ambos acabaram permitindo aos judeus,
religiosamente neutros, que passassem a desempenhar o papel de fornecedores a
seus respectivos exércitos. Dispersos por todos os pontos do Império, tendo-se
dedicado nas décadas anteriores ra servir como intermediários entre o campo e a
cidade, os judeus possuíam bons contatos comerciais com os camponeses e
artesãos das pequenas aldeias. Muitos deles entraram para o novo ramo, provendo
as tropas de trigo, sal, carne, vinho, capotes, botas, balas de fuzil, e
praticamente tudo o que pudesse ser consumido pelos soldados.
Terminada a
guerra, vários príncipes acharam vantajoso continuar utilizando os serviços
destes judeus para fornecer gêneros e mercadorias a suas cortes. A habilidade
comercial destes homens e o fato de poderem apresentar os produtos requeridos a
preços menores, dadas suas amplas conexões, levou os governantes de quase todos
os estados do Sacro Império a confiar-lhes, em poucos anos, as principais
tarefas administrativas de seus territórios. A estes judeus, que passaram a
desempenhar funções semelhantes às que seus correligionários da Espanha,
Portugal e Turquia já haviam executado, deu-se o nome de Hofjuden, ou
"judeus da corte".
O primeiro a
utilizar abertamente os serviços de um "Hofjude" foi o Imperador da
Áustria. Tendo expulsado os judeus de Viena em 1670, ele logo se viu em
dificuldades para levantar os fundos necessários às guerras contra a França e a
Turquia, então os principais inimigos do Império. O judeu Samuel Oppenheimer
passou a ser o encarregado das finanças imperiais, cargo que exerceu de 1673 a
1703. Além de reorganizar o sistema de impostos e encarregar-se de sua
cobrança, Oppenheimer ajudou o Imperador a estabilizar a moeda, instalar
fábricas, e prover o material necessário ao exército austríaco. Financiou
também a campanha de 1683 contra o Império Otomano, cujos exércitos, depois de
terem cercado Viena, foram expulsos graças à eficiente linha de abastecimento
organizada por Samuel Oppenheimer, que permitiu às tropas imperiais lutarem
durante o inverno. Quando morreu, porém, o Imperador recusou-se a saldar suas
dívidas com os herdeiros, arrastando à bancarrota o banco fundado por ele.
A falência
do Banco Oppenheimer ilustra bem a insegurança que rondava os Judeus da Corte.
Por um lado, podiam viajar por onde quisessem, podiam morar em palácios
luxuosos e enriquecer fabulosamente com os contratos do governo. Mas, por outro
lado, dependiam exclusivamente da boa-vontade dos soberanos que os empregavam,
os quais, por qualquer motivo, podiam levá-los à ruína. O caso mais espetacular
desta ascensão e queda dos Hofjuden é o de Joseph Süss Oppenheimer, que serviu
ao duque de Württemberg durante trinta anos. O "Jud Süss", como ficou
conhecido, instalou no ducado uma fábrica de porcelana que mais tarde se
tornaria uma das primeiras da Europa; estimulou a produção de tecidos de seda,
então muito requisitados; organizou a administração do país, criando impostos
sobre o tabaco e sobre o sal; e, durante o período em que serviu ao duque,
implantou solidamente o poder deste através da sua habilidade econômica.
Entretanto, uma obscura intriga palaciana o fez cair em desgraça, e em 1738 o
"Jud Süss" foi enforcado numa praça pública, sendo todas as suas
propriedades confiscadas. Embora nem todos os judeus da corte acabassem seus
dias de maneira tão trágica, o espectro da ira real pairava constantemente
sobre suas cabeças.
Os judeus da
corte formam um capítulo importante da história financeira alemã, entre os
Fugger do século XVI e os Rothschild do séculos XIX. O papel que desempenharam
na consolidação do absolutismo nos pequenos estados foi considerável, e a
eficiência administrativa de que deram provas foi um fator importante para
reerguer os principados germânicos, após o desastre da Guerra dos Trinta Anos.
Para a
História Judaica, a importância dos Hofjuden não é menor. As comunidades
judaicas, encerradas nos guetos ou vivendo em condições precárias nas cidadezinhas
do interior, passaram a ver neles seus protetores e representantes junto aos
governos locais. Dada a influência de que dispunha esta minoria privilegiada,
ela naturalmente passou a ter um peso desproporcional na condução dos negócios
comunitários. A antiga estrutura democrática das kehilot alemãs, que examinamos no capítulo 6, já não podia ser
mantida, frente à influência decisiva dos judeus da corte, porque estes arcavam
com quase todos os impostos devidos às autoridades cristãs. O parnás, ou financiador,
começa a ter um papel mais decisivo do que o rabino nas decisões comunitárias.
Este fato é importantíssimo, porque toda a teoria judaica do governo repousava
sobre a ideia de que os líderes comunitários deveriam ser homens de saber e não
homens de poder. O processo de transferência do controle comunitário para os
parnassim, gerado pelo aparecimento dos Hofjuden, demonstra que a democracia
política só é possível quando há uma relativa igualdade econômica, como era o
caso nas kehilot asquenazitas medievais.
Quando esta igualdade relativa desaparece, ou porque a maioria se torna
miserável, ou porque uns poucos enriquecem demasiado, o sistema democrático se
torna inviável. Assim se repetiu no Sacro Império o mesmo fenômeno que ocorrera
na Espanha e na Itália, mas de forma ainda mais aguda, dada a imensa diferença
de posses que separava o judeu da corte da maioria dos seus correligionários.
Além disto,
os judeus da corte foram utilizados pelos monarcas para limitar a autonomia das
comunidades judaicas, fazendo que cada Hofjude — e os havia em quase todos os
estados — participasse dos tribunais rabínicos, que eram a principal expressão
daquela autonomia. Isto se explica pela política absolutista destes
governantes, para quem a existência de ilhas autônomas ou semi-autônomas em
seus territórios parecia cada vez mais intolerável.
Sob os Déspotas Esclarecidos
O século
XVIII não começou bem para os judeus do Sacro Império. Em 1700, em Frankfurt,
um teólogo chamado Johannes Eisenmenger escreveu mais um dos livros da
inesgotável literatura antissemita alemã. Chamava-se "O Judaísmo
Descoberto", e nele se repetiam os mais surrados mitos da Idade Média,
desde o caráter pernicioso do Talmude até a acusação de bruxaria, de usura e do
assassinato ritual. A coleção de livros antissemitas do século XVII inclui
obras com os amistosos títulos de "A Peste dos Judeus", "Estudo
sobre a Vida ímpia dos Judeus", "O Veneno das Serpentes
Judaicas", e outras do mesmo gênero. Por certo, o progresso dos estudos
hebraicos sérios produziu livros menos absurdos, como o "Lexicon
Tal-mudicum" de Buxtorf (1632), que era um dicionário do Talmude, a
"História dos Judeus" do francês Jacques Barnage, em que pela
primeira vez um cristão procurava compreender cientificamente a trajetória do povo
judeu, e a primeira tradução para o latim da Mishná, realizada em 1698, em
Amsterdã, Mas estas obras tinham alcance apenas entre os eruditos, enquanto os
livros antijudaicos, escritos em alemão e repetindo todos os preconceitos
contra a imagem do judeu que tanto agradavam o público da época, tinham difusão
muito mais ampla. O livro de Eisenmenger é apenas mais um exemplo da série.
Na Áustria,
a situação judaica piora sensivelmente. Já não há mais judeus da corte como no
século anterior, pois a administração suficientemente organizada os tornava
dispensáveis. Os reis desta época são chamados "déspotas
esclarecidos"; déspotas porque governavam sem qualquer representação
popular, e esclarecidos porque procuravam desenvolver seus países, criando
indústrias e aperfeiçoando a administração. No referente aos judeus, porém, os
déspotas não foram nada esclarecidos. Pelo contrário, em 1745 a Imperatriz
Maria Teresa os expulsa da Boêmia, onde constituíam a maior comunidade do
Império, forçando-os a buscar refúgio na Polônia.
Outro grande
"déspota esclarecido", o rei da Prússia Frederico II, deu mostras de
barbarismo ainda maior. Os judeus haviam emigrado para a Prússia — que é a
região ao redor de Berlim — nos fins do século XVII, ao serem expulsos de
Viena; havia também refugiados da Polônia. Em 1671, fora promulgada uma lei
razoavelmente tolerante, que estimulara a vinda dos judeus. A Prússia também
teve os seus Hofjuden, que desempenharam um papel razoável na organização do
abastecimento ao exército prussiano, que começava a se formar naquela época.
Os
"Regulamentos" de Frederico II, expedidos em 1730 e 1750, eram de uma
meticulosidade e de uma insensibilidade tipicamente prussianas. Limitavam a
permanência no país aos judeus que possuíssem mais do que uma certa quantia,
restringiam o número de casamentos por ano, criavam impostos absurdos, proibiam
o exercício de numerosas profissões. O rei Frederico, porém, durante cujo
governo a Prússia se converteu num Estado militar e economicamente poderoso,
não hesitava em solicitar os serviços de judeus ricos: David Hirsh instala uma
fábrica de veludo, Moisés Gumperz é o banqueiro da corte, e assim por diante.
Em 1770, a
população judaica dos territórios alemães e austríacos deveria orçar pelos
200.000; constituíam cerca de 1% da população total, e sua participação na vida
cultural e política desses países era perfeitamente nula. Encerrados nos guetos
ou vivendo em esquecidas vilas provincianas, os judeus da Europa Central eram
um monumento à brutalidade humana, depois de sete séculos de massacres,
perseguições e discriminações, que começaram com as Cruzadas e só se irão
aliviar com a Emancipação.
Mas,
lentamente, novos processos começam a operar. Enquanto Frederico II se
preocupava com o número de filhos que cada judeu poderia ter, o jovem Moisés
Mendelssohn começava a despontar como um pioneiro do Iluminismo judaico.
Eruditos alemães, influenciados pelo movimento de ideias do século XVIII,
começavam a sugerir que talvez os judeus não fossem tão animalescos quanto se pensava.
Iniciava-se a gestação da Revolução Francesa, em cujo bojo os ideais de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade prometiam uma vida menos mesquinha para os
judeus da Europa. Todos estes processos, que representam o começo"de uma
nova era para os judeus do Ocidente, culminaram na Emancipação, e marcam, a
partir da década de 1790, o final da longa Idade Média Judaica. Eles serão
estudados no próximo volume deste livro, que se ocupará da Idade Contemporânea.
Síntese
Neste
capítulo, você estudou os principais processos sociais por que passaram os
judeus da Europa Central entre 1500 e 1750. Vamos agora fazer uma recapitulacão
sumária deles.
a) A extrema
divisão territorial da região, herdada da Idade Média, perdurou durante a Idade
Moderna. Reforçada pela Reforma, que objetivamente fortaleceu os estados
alemães contra o poder central do Imperador, ela é o fato fundamental para
compreender a história judaica deste período.
b) Os judeus
continuam a ser expulsos das áreas germânicas e, naquelas em que são tolerados,
verifica-se uma forte discriminação contra eles. Proibidos de exercer a usura
em 1530, tornam-se principalmente comerciantes e mascates. Dirigem-se às
pequenas vilas do interior, onde formam comunidades minúsculas, incapazes de
produzir cultura no mesmo ritmo e qualidade da época medieval. A estrutura
comunitária, desnecessária diante do pequeno número de judeus em cada kehilá, sofre um retrocesso da relação à
que observamos durante a Idade Média. Formam-se guetos nas principais cidades,
como Frankfurt, Viena e Praga.
c) A Guerra dos Trinta Anos, embora tenha
prejudicado os judeus devido à devastação e epidemias que acarretou, acabou
sendo benéfica para eles. Na qualidade
de fornecedores dos exércitos em luta, muitos judeus retornam às cidades, invertendo
o processo de interiorização verificado no século XVI. Surge a figura do Judeu
da Corte, no período posterior à guerra (1670-1740). Os Hofjuden desempenham
funções administrativas importantes, ajudando a consolidar o poder real e
contribuindo para criar as estruturas fiscais do estado moderno. Sua influência
nas kehilot é muito grande, levando à
desaparição do velho modelo democrático e ao aparecimento de uma estrutura com
bases mais fortes no poder do dinheiro,
d) A imagem
do judeu continua a ser abominável perante o público alemão e austríaco.
Começando com a polêmica entre Pfefferkorn e Reuchlin (1509-1516), ela continua
a ser divulgada nas obras de Lutero. O século XVI! é especialmente prolífico em
obras antissemitas, que caracterizam o judeu como deicida, usurário, assassino,
ladrão, feiticeiro, aliado do Demônio, e outras qualidades igualmente
apreciáveis. Estas obras contribuem para alimentar o antissemitismo das
populações da Europa Central, que já viam nele um perigoso concorrente econômico.
Os livros menos desfavoráveis atingem apenas uma pequena faixa de intelectuais,
interessados na cultura judaica por razões religiosas,
e) O século
XVIII não melhora muito a situação do judeu, presenciando várias expulsões e a
edição dos draconianos regulamentos de Frederico II. No entanto, lentamente se
vão originando os processos que comandarão, a partir de 1789, a Emancipação dos
judeus e sua relativa integração nas sociedades alemãs'.
Em suma, as
condições religiosas e políticas da Europa Central fazem a vida judaica,
durante o período que estudamos, insegura, mesquinha. Não obstante, a
diversificação econômica e o episódio dos judeus da corte são os primeiros
indícios de que os judeus, se libertados das restrições esmagadoras que pesavam
sobre eles, poderiam vir a contribuir para o progresso e o desenvolvimento da
sociedade global, bem como retomar o ímpeto cultural de que haviam dado provas
durante a Idade Média.
---
Fonte:
O Caminho do Povo Judeu - Volume III, por: Renato Mezan. Federação Israelita do Estado de São Paulo, 2ª Edição. São Paulo, 1982, págs. 251-275.
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