Ciência e valores
E CLARO QUE
não devemos tomar como uma profecia séria tudo o que dissemos a respeito da
sociedade científica que esboçamos nos capítulos desta parte. Trata-se de uma
tentativa de retratar como seria o mundo se a técnica científica atuasse sem um
controle de outra natureza. O leitor verificou que o resultado seria um
emaranhado de características boas e de características repulsivas. A razão
desse fato reside no havermos imaginado uma sociedade que se desenvolvesse de
acordo com certos ingredientes da natureza humana, com a exclusão de todos os
outros. Como ingredientes, eles são bons, mas como as únicas forças diretivas,
seriam provavelmente desastrosos. O impulso em direção à construção científica
é admirável quando ele não interfere com qualquer um dos grandes impulsos que
dão sentido à vida; quando se permite a esse impulso excluir todos os outros,
ele se transforma num tirano cruel. Penso que há um real perigo em permitir que
o mundo possa vir a cair sob uma tirania dessa espécie, e foi por causa desse
perigo que eu não hesitei em descrever as negras características do mundo que a
manipulação científica incontrolada poderia desejar criar.
No decorrer
dos seus poucos séculos de existência, a ciência conseguiu um desenvolvimento
interno que ainda não parece estar completo. Poderíamos resumir esse
desenvolvimento como sendo a passagem da contemplação à execução. O amor ao
conhecimento, que é o responsável pelo desenvolvimento da ciência, resulta de
um duplo impulso. Podemos querer conhecer algo porque o amamos, ou porque
desejamos dominá-lo. No primeiro caso, teremos um conhecimento contemplativo,
no segundo, um conhecimento prático. Durante o decurso do desenvolvimento
científico, o impulso-poder prevaleceu cada vez mais sobre o impulso-amor. O
impulso-poder está representado no industrialismo e na técnica governamental.
Também podemos reconhecê-lo nas correntes filosóficas do pragmatismo e do
instrumentalismo. Cada uma dessas filosofias afirma, falando em termos gerais,
que as nossas crenças a respeito de qualquer objeto são verdadeiras na medida
em que podemos manipular esse objeto de fornia proveitosa. É o que poderíamos
denominar um ponto de vista governamental . a respeito da verdade. A ciência
nos oferece um grande número de verdades dessa espécie, e, de fato, não parece
existir limites para os seus triunfos. A ciência fornece meios
surpreendentemente poderosos para o homem que deseje modificar o ambiente em
que vive. Se definirmos o conhecimento como sendo o poder de produzir mudanças
planejadas, não há dúvida de que a ciência nos dá conhecimentos em abundância.
Mas, o
desejo de conhecimentos assume também outra forma, que pertence a um conjunto
inteiramente diverso de emoções. O místico, o amoroso, o poeta também procuram
obter conhecimentos; talvez não tenham muito êxito nas suas tentativas, mas,
nem por isso, são menos dignos de respeito. Em todas as formas de amor,
queremos conhecer o que amamos, não com finalidade de poder, mas para o êxtase
da contemplação. "No conhecimento de Deus, reside a nossa vida
eterna", mas não pelo fato de o conhecimento de Deus nos dar poder sobre
ele. Sempre que algo nos possa oferecer êxtase, alegria ou satisfação,
desejamos conhecer coisas a respeito desse objeto; conhecer, não no sentido
manipulativo, que consiste em transformá-lo em algo diferente, mas conhecer no
sentido de visão beatífica, porque ele em si e por si próprio propicia
felicidade ao amoroso. Encontramos o impulso desta espécie de conhecimento
tanto no amor sexual, quanto em outras formas de amor, a menos que se trate de
um amor puramente físico ou prático. Ele pode, mesmo, transformar-se na pedra
de toque de qualquer amor que tenha algum valor. O amor que tem valor contém um
impulso para essa espécie de conhecimento que dá origem à união mística.
A ciência
foi devida nos seus primórdios a homens que amaram a natureza. Eles perceberam
a beleza das estrelas e do mar, dos ventos e das montanhas. E porque amavam
essas coisas, eles meditaram a respeito delas, desejaram conhecê-las mais
intimamente do que a mera contemplação exterior permitiria. "O
mundo", afirmou Heráclito, "é um fogo sempre vivo, com dimensões que
se vão queimando e outras que vão desaparecendo." Tanto Heráclito, quanto outros
filósofos jônicos, que foram os responsáveis pelo primeiro impulso recebido
pelo conhecimento científico, sentiram a estranha beleza do mundo quase como
uma loucura no sangue. Foram homens de intelecto extremamente apaixonado, e foi
exatamente da intensidade da sua paixão intelectual que derivou todo o
movimento do mundo moderno. Mas, passo a passo, à medida que a ciência
progredia, o impulso-amor que deu origem à ciência foi sendo, cada vez mais,
contrariado, ao passo que o impulso-poder, que, no início, era apenas
secundário, foi gradualmente assumindo a direção dos acontecimentos por causa
do seu imprevisível êxito. O amante da natureza foi enganado, ao passo que os
que exercem poder sobre a natureza foram recompensados. À medida que se
desenvolveu, a Física foi-nos espoliando, passo a passo, do que pensávamos que
conhecíamos a respeito da natureza íntima do mundo inanimado. A cor e o som, a
luz e a sombra, a forma e a contextura já não pertencem àquela natureza externa
que os jônios buscavam como a senhora dos seus sonhos. Todas essas coisas foram
transferidas da amada para o amante, isto é, da natureza para o observador, de
tal modo que aquela ficou reduzida a um esqueleto de ossos gélidos e
assustadores, ou, mesmo, a um simples fantasma. Aterrados diante do deserto que
as suas fórmulas revelavam, os pobres físicos apelaram para Deus, em busca de
conforto, mas como Deus também tem de partilhar a fantasmagoria da sua criação,
a resposta que os físicos pensaram ter ouvido não foi mais do que o assustado
batimento dos seus próprios corações. Desiludido de ser amante da natureza, o
cientista passou a ser o seu tirano. Que importa que o mundo exterior exista
realmente, ou que não passe de um sonho, diz o homem prático, desde que eu seja
capaz de fazer com que ele se comporte como eu o desejo? E, assim, a ciência
substituiu, cada vez mais, o conhecimento-amor, pelo conhecimento-poder, e à
medida que esta substituição se torna mais completa, a ciência tende a se
tornar cada vez mais sádica. Ã sociedade; científica do futuro, tal como a
imaginamos em páginas anteriores, é uma sociedade em que o impulso-poder
dominou completamente o impulso-amor, e esta é a fonte psicológica das
crueldades que ela ameaça apresentar.
A ciência,
que começou como a busca da verdade, está-se tornando incompatível com a
veracidade, uma vez que a completa veracidade está tendendo, mais e mais, para
o completo ceticismo científico. Quando a ciência é considerada
contemplativamente, e não praticamente, verificamos que as nossas crenças são
devidas à nossa fé animal, e que só as nossas descrenças são devidas à ciência.
Por outro lado, quando consideramos a ciência como uma técnica para transformar
o nosso meio-ambiente e a nós próprios, verificamos que ela nos oferece um
poder bastante independente da sua validade metafísica. Mas, só podemos manejar
esse poder quando cessamos de nos propor questões metafísicas relativas à
natureza da realidade. E, no entanto, essas questões constituem um prova da
existência de uma atitude de amante, em relação ao mundo. Portanto, é só na
medida em que renunciamos ao mundo como seus amantes, que podemos conquistá-lo
na qualidade de técnicos. Mas, essa divisão da alma é fatal para o que existe
de melhor no homem: ao mesmo tempo que o malogro da ciência, considerada como
metafísica, ocorre, o poder que a ciência como técnica nos confere só pode ser
obtido por meio de manobras análogas à adoração de Satanás, isto é, pela
renúncia ao amor.
Entre as
razões que fazem com que encaremos com apreensão a perspectiva do aparecimento
de uma sociedade científica, esta é a principal. A sociedade científica na sua
forma pura, isto é, como a tentamos retratar, é incompatível com a busca da
verdade, com o amor, com a arte, com o deleite espontâneo, com todos os ideais
que o homem acalentou até agora, exceção feita apenas para a renúncia ascética.
A fonte desse perigo não reside no conhecimento. O conhecimento é bom, e a
ignorância é má; o amante do mundo não pode admitir nenhuma exceção a esse
princípio. A fonte desse perigo também não reside no poder em si. O perigo
reside exatamente no poder manejado pela ânsia de poder, não no poder que pretenda
um bem genuíno. Os líderes do mundo moderno estão intoxicados pelo poder: para
eles, o simples fato de poderem fazer hoje alguma coisa que antes ninguém
sonhava ser possível é razão suficiente para tentarem realizá-la. O poder não é
um dos objetivos da vida, mas apenas um meio de conseguir certos fins, e até
que os homens se lembrem dos fins a que o poder deveria servir, a ciência não
fará o que é capaz para a obtenção de uma boa vida.
Mas, dirá o
leitor, quais são as finalidades da vida? Não creio que, neste campo, um homem
tenha o direito de impor as suas ideias a outro homem. E isso porque as
finalidades da vida são, para cada indivíduo, aquilo que ele deseja mais
profundamente, aquelas coisas que lhe dariam paz, se existissem. Mas, se
acharmos que exigir paz seja demasiado nesta vida terrena, modifiquemos a frase
dizendo: os objetivos da vida devem dar-nos deleite, alegria ou êxtase. Nos
desejos conscientes do homem que busca o poder em si há qualquer coisa errada:
quando o obtém, ele deseja ainda mais poder, e não encontra paz na contemplação
do que já foi conseguido. O amoroso, o poeta e o místico conseguem obter uma
satisfação muito maior do que a que o indivíduo que busca o poder conseguirá
jamais obter, porque eles podem contentar-se com a obtenção do objeto do seu
amor, ao passo que o homem que busca o poder precisa estar perpetuamente
envolvido em algum novo empreendimento, sob pena de sentir-se completamente
vazio. Penso, portanto, que a satisfação obtida pelo amoroso, e uso esta
palavra no seu sentido mais lato, é maior do que a conseguida pelo tirano, e
ocupa um posto mais alto entre os objetivos da vida. Quando chegar a hora da
minha morte, não terei a sensação de que vivi em vão. Eu vi crepúsculos
purpurinos, assisti a auroras brilhantes, observei a neve brilhar sob um sol
pálido, senti o cheiro da chuva depois da seca, ouvi o tempestuoso Atlântico,
investindo contra os penedos de granito das costas de Cornwall. A ciência pode
proporcionar essas e outras alegrias a mais pessoas do que as que poderiam
gozá-las sem a sua ajuda. Se isso é verdade, o seu poder será sabiamente empregado.
Mas, quando a ciência retira da vida os momentos que lhe dão valor, ela não
merece admiração. Apesar de clara e bem elaborada, a ciência pode levar o homem
pelo caminho do desespero. A esfera dos valores situa-se fora da ciência exceto
na medida em que a ciência significa busca de conhecimento. A ciência como
busca de poder não deve invadir a esfera dos valores; da mesma forma, se é
verdade que a técnica científica deve enriquecer a vida humana, é preciso
também que ela não esmague os fins a que deveria servir.
O número de
homens que determinam o caráter de uma época é pequeno. Colombo, Lutero e
Carlos V dominaram o século dezesseis; Galileu e Descartes governaram o século
seguinte. Na época que findou por volta de 1930, os homens importantes foram
Edison, Rockefeller, Lenine e Sun lat-Sen. dom exceção deste último, todos eles
foram homem desprovidos de cultura, que pouco se incomodavam com o passado, que
confiavam bastante em si próprios e impiedosos. A sabedoria tradicional não
encontrava guarida nos seus sentimentos ou no seu pensamento; eles se
interessavam apenas por mecanismos e organização. Uma educação diferente da que
tiveram teria feito deles homens bem diversos do que foram. Edison poderia ter
adquirido na sua juventude conhecimento de história, poesia e arte; a
Rockefeller poderia ter sido ensinado de que modo Creso e Crasso foram seus
antecessores; Lenine, ao invés de ter sido possuído pelo ódio por causa da
execução do seu irmão, no seu tempo de estudante, poderia ter aprendido algo a
respeito da expansão do Islã e do desenvolvimento do puritanismo, da piedade à
plutocracia. Tal educação poderia ter instilado uma leve sombra de dúvida nas
almas desses grandes homens. E, com isso, as suas obras teriam sido menores,
mas de maior valor.
O nosso
mundo tem uma herança de cultura e de beleza mas, infelizmente, só os membros
menos ativos e menos importantes de cada geração têm-se incomodado com isso. O
governo do mundo — não os homens que ocupam os postos ministeriais, mas os que
ocupam os postos-chave do poder — tem estado nas mãos de homens que ignoram o
passado, de homens que não sentem nenhum sentimento terno para com o que é
tradicional, de homens que não compreendem o que estão destruindo. Não há
nenhuma razão essencial para que isso deva ser assim. Prevenir a repetição
desses fatos constitui um problema educacional e, por sinal, um problema
relativamente simples. Os homens do passado eram limitados espacialmente, ao
passo que os homens que hoje dominam o mundo são limitados temporalmente. Eles
sentem para com o passado um desprezo imerecido, ao mesmo tempo que sentem para
com o presente um respeito que este ainda merece menos. As antigas máximas
foram postas de lado, mas é necessário que estabeleçamos outras para
substituí-las. Eu sugeriria como a primeira delas a seguinte: "É melhor
fazer um pouco de bem, do que muito de mal." Para dar conteúdo a essa
máxima, seria evidentemente necessário instilar nas novas gerações algumas
ideias a respeito do que seja o bem. Poucos são os homens dos nossos dias que
poderiam ser levados a acreditar que não há nada de intrinsecamente bom na locomoção
rápida, por exemplo. Ascender do inferno aos teus é bom, ainda que se trate de
um processo lento e laborioso, ao passo que despencar dos céus para o inferno é
mau, mesmo que essa queda se dê com a velocidade do Satanás de Milton. Também
não podemos afirmar que o simples aumento da produção de bens materiais seja,
em si, de grande valor. Impedir a pobreza extrema é importante, mas aumentar as
posses dos que já possuem demais constitui um dispêndio inútil de esforço.
Prevenir crimes pode ser necessário, mas inventar novos crimes para que a
polícia possa demonstrar a sua capacidade de preveni-los já é menos admirável.
Os novos poderes que a ciência deu ao homem só podem ser manejados de maneira
segura por aqueles indivíduos que, através do estudo da História ou da sua
própria experiência de vida, conseguiram adquirir certo respeito para com os
sentimentos humanos e alguma ternura para com as emoções que dão colorido à
existência quotidiana de todos nós. Não quero, com isso, afirmar que a técnica
científica não chegará a construir um mundo artificial que seja, em todos os
sentidos, preferível ao mundo em que temos vivido até agora. Quero, isso sim,
dizer que, se tal mundo tiver de ser realizado, é preciso que as coisas sejam
feitas com cuidado e com a noção de que o objetivo do governo não reside
meramente em obter prazer para os governantes, mas em tornar tolerável a vida
dos governados. É preciso não mais permitirmos que a técnica científica
constitua a cultura única dos detentores do poder; ao mesmo tempo, é necessário
fazermos com que se torne parte integrante da perspectiva ética da humanidade a
ideia de que apenas a vontade é incapaz de tornar boa a vida. O conhecimento e
os sentimentos constituem ingredientes igualmente necessários, tanto na vida do
indivíduo, quanto na da comunidade. O conhecimento, quando amplo e profundo,
traz consigo a compreensão de épocas e lugares longínquos, a consciência de que
o indivíduo não é onipotente ou imprescindível, ao mesmo tempo que uma
perspectiva em que os valores são mais claramente percebidos do que por aqueles
para quem é impossível uma visão de longo alcance. A existência das emoções é
ainda mais importante do que o conhecimento. Um mundo desprovido, de afeição c
de deleites é um mundo desprovido de valor. O manipulador científico não pode
esquecer-se desses fatos, e quando ele os tem presentes, a sua atuação pode ser
inteiramente benéfica. É apenas necessário que os homens não fiquem tão
intoxicados com o novo poder, a ponto de se esquecerem das verdades que foram
familiares a todas as gerações do passado. Nem todo conhecimento é novo; nem
todas as tolices pertencem ao passado,
Até agora, o
homem tem sido disciplinado pela sua sujeição à natureza. Tendo conseguido
emancipar-se dessa sujeição, o homem está começando a apresentar alguns dos
defeitos do escravo que se tornou patrão. É necessário que surja uma nova
perspectiva moral, que pregue a substituição da submissão aos poderes da
natureza, pelo respeito ao que o homem tem de melhor. É exatamente onde falta
este respeito que a técnica científica se torna perigosa. Mas, enquanto ele
existir, a ciência, depois de ter conseguido libertar o homem das algemas da
natureza, poderá prosseguir em sua obra e libertar o homem do cativeiro em que
a sua parte servil o mantém. O perigo existe, mas não é inevitável, e ter
esperança no futuro é, ao menos, tão racional, quanto ter medo.
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Fonte:
A Perspectiva Científica, por: Bertrand Russel. Companhia Editora Nacional, 4ª Edição. São Paulo, 1977, págs. 201-208.
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