domingo, 3 de julho de 2016

Ciência e valores

Ciência e valores
E CLARO QUE não devemos tomar como uma profecia séria tudo o que dissemos a respeito da sociedade científica que esboçamos nos capítulos desta parte. Trata-se de uma tentativa de retratar como seria o mundo se a técnica científica atuasse sem um controle de outra natureza. O leitor verificou que o resultado seria um emaranhado de características boas e de características repulsivas. A razão desse fato reside no havermos imaginado uma sociedade que se desenvolvesse de acordo com certos ingredientes da natureza humana, com a exclusão de todos os outros. Como ingredientes, eles são bons, mas como as únicas forças diretivas, seriam provavelmente desastrosos. O impulso em direção à construção científica é admirável quando ele não interfere com qualquer um dos grandes impulsos que dão sentido à vida; quando se permite a esse impulso excluir todos os outros, ele se transforma num tirano cruel. Penso que há um real perigo em permitir que o mundo possa vir a cair sob uma tirania dessa espécie, e foi por causa desse perigo que eu não hesitei em descrever as negras características do mundo que a manipulação científica incontrolada poderia desejar criar.
No decorrer dos seus poucos séculos de existência, a ciência conseguiu um desenvolvimento interno que ainda não parece estar completo. Poderíamos resumir esse desenvolvimento como sendo a passagem da contemplação à execução. O amor ao conhecimento, que é o responsável pelo desenvolvimento da ciência, resulta de um duplo impulso. Podemos querer conhecer algo porque o amamos, ou porque desejamos dominá-lo. No primeiro caso, teremos um conhecimento contemplativo, no segundo, um conhecimento prático. Durante o decurso do desenvolvimento científico, o impulso-poder prevaleceu cada vez mais sobre o impulso-amor. O impulso-poder está representado no industrialismo e na técnica governamental. Também podemos reconhecê-lo nas correntes filosóficas do pragmatismo e do instrumentalismo. Cada uma dessas filosofias afirma, falando em termos gerais, que as nossas crenças a respeito de qualquer objeto são verdadeiras na medida em que podemos manipular esse objeto de fornia proveitosa. É o que poderíamos denominar um ponto de vista governamental . a respeito da verdade. A ciência nos oferece um grande número de verdades dessa espécie, e, de fato, não parece existir limites para os seus triunfos. A ciência fornece meios surpreendentemente poderosos para o homem que deseje modificar o ambiente em que vive. Se definirmos o conhecimento como sendo o poder de produzir mudanças planejadas, não há dúvida de que a ciência nos dá conhecimentos em abundância.
Mas, o desejo de conhecimentos assume também outra forma, que pertence a um conjunto inteiramente diverso de emoções. O místico, o amoroso, o poeta também procuram obter conhecimentos; talvez não tenham muito êxito nas suas tentativas, mas, nem por isso, são menos dignos de respeito. Em todas as formas de amor, queremos conhecer o que amamos, não com finalidade de poder, mas para o êxtase da contemplação. "No conhecimento de Deus, reside a nossa vida eterna", mas não pelo fato de o conhecimento de Deus nos dar poder sobre ele. Sempre que algo nos possa oferecer êxtase, alegria ou satisfação, desejamos conhecer coisas a respeito desse objeto; conhecer, não no sentido manipulativo, que consiste em transformá-lo em algo diferente, mas conhecer no sentido de visão beatífica, porque ele em si e por si próprio propicia felicidade ao amoroso. Encontramos o impulso desta espécie de conhecimento tanto no amor sexual, quanto em outras formas de amor, a menos que se trate de um amor puramente físico ou prático. Ele pode, mesmo, transformar-se na pedra de toque de qualquer amor que tenha algum valor. O amor que tem valor contém um impulso para essa espécie de conhecimento que dá origem à união mística.
A ciência foi devida nos seus primórdios a homens que amaram a natureza. Eles perceberam a beleza das estrelas e do mar, dos ventos e das montanhas. E porque amavam essas coisas, eles meditaram a respeito delas, desejaram conhecê-las mais intimamente do que a mera contemplação exterior permitiria. "O mundo", afirmou Heráclito, "é um fogo sempre vivo, com dimensões que se vão queimando e outras que vão desaparecendo." Tanto Heráclito, quanto outros filósofos jônicos, que foram os responsáveis pelo primeiro impulso recebido pelo conhecimento científico, sentiram a estranha beleza do mundo quase como uma loucura no sangue. Foram homens de intelecto extremamente apaixonado, e foi exatamente da intensidade da sua paixão intelectual que derivou todo o movimento do mundo moderno. Mas, passo a passo, à medida que a ciência progredia, o impulso-amor que deu origem à ciência foi sendo, cada vez mais, contrariado, ao passo que o impulso-poder, que, no início, era apenas secundário, foi gradualmente assumindo a direção dos acontecimentos por causa do seu imprevisível êxito. O amante da natureza foi enganado, ao passo que os que exercem poder sobre a natureza foram recompensados. À medida que se desenvolveu, a Física foi-nos espoliando, passo a passo, do que pensávamos que conhecíamos a respeito da natureza íntima do mundo inanimado. A cor e o som, a luz e a sombra, a forma e a contextura já não pertencem àquela natureza externa que os jônios buscavam como a senhora dos seus sonhos. Todas essas coisas foram transferidas da amada para o amante, isto é, da natureza para o observador, de tal modo que aquela ficou reduzida a um esqueleto de ossos gélidos e assustadores, ou, mesmo, a um simples fantasma. Aterrados diante do deserto que as suas fórmulas revelavam, os pobres físicos apelaram para Deus, em busca de conforto, mas como Deus também tem de partilhar a fantasmagoria da sua criação, a resposta que os físicos pensaram ter ouvido não foi mais do que o assustado batimento dos seus próprios corações. Desiludido de ser amante da natureza, o cientista passou a ser o seu tirano. Que importa que o mundo exterior exista realmente, ou que não passe de um sonho, diz o homem prático, desde que eu seja capaz de fazer com que ele se comporte como eu o desejo? E, assim, a ciência substituiu, cada vez mais, o conhecimento-amor, pelo conhecimento-poder, e à medida que esta substituição se torna mais completa, a ciência tende a se tornar cada vez mais sádica. Ã sociedade; científica do futuro, tal como a imaginamos em páginas anteriores, é uma sociedade em que o impulso-poder dominou completamente o impulso-amor, e esta é a fonte psicológica das crueldades que ela ameaça apresentar.
A ciência, que começou como a busca da verdade, está-se tornando incompatível com a veracidade, uma vez que a completa veracidade está tendendo, mais e mais, para o completo ceticismo científico. Quando a ciência é considerada contemplativamente, e não praticamente, verificamos que as nossas crenças são devidas à nossa fé animal, e que só as nossas descrenças são devidas à ciência. Por outro lado, quando consideramos a ciência como uma técnica para transformar o nosso meio-ambiente e a nós próprios, verificamos que ela nos oferece um poder bastante independente da sua validade metafísica. Mas, só podemos manejar esse poder quando cessamos de nos propor questões metafísicas relativas à natureza da realidade. E, no entanto, essas questões constituem um prova da existência de uma atitude de amante, em relação ao mundo. Portanto, é só na medida em que renunciamos ao mundo como seus amantes, que podemos conquistá-lo na qualidade de técnicos. Mas, essa divisão da alma é fatal para o que existe de melhor no homem: ao mesmo tempo que o malogro da ciência, considerada como metafísica, ocorre, o poder que a ciência como técnica nos confere só pode ser obtido por meio de manobras análogas à adoração de Satanás, isto é, pela renúncia ao amor.
Entre as razões que fazem com que encaremos com apreensão a perspectiva do aparecimento de uma sociedade científica, esta é a principal. A sociedade científica na sua forma pura, isto é, como a tentamos retratar, é incompatível com a busca da verdade, com o amor, com a arte, com o deleite espontâneo, com todos os ideais que o homem acalentou até agora, exceção feita apenas para a renúncia ascética. A fonte desse perigo não reside no conhecimento. O conhecimento é bom, e a ignorância é má; o amante do mundo não pode admitir nenhuma exceção a esse princípio. A fonte desse perigo também não reside no poder em si. O perigo reside exatamente no poder manejado pela ânsia de poder, não no poder que pretenda um bem genuíno. Os líderes do mundo moderno estão intoxicados pelo poder: para eles, o simples fato de poderem fazer hoje alguma coisa que antes ninguém sonhava ser possível é razão suficiente para tentarem realizá-la. O poder não é um dos objetivos da vida, mas apenas um meio de conseguir certos fins, e até que os homens se lembrem dos fins a que o poder deveria servir, a ciência não fará o que é capaz para a obtenção de uma boa vida.

Mas, dirá o leitor, quais são as finalidades da vida? Não creio que, neste campo, um homem tenha o direito de impor as suas ideias a outro homem. E isso porque as finalidades da vida são, para cada indivíduo, aquilo que ele deseja mais profundamente, aquelas coisas que lhe dariam paz, se existissem. Mas, se acharmos que exigir paz seja demasiado nesta vida terrena, modifiquemos a frase dizendo: os objetivos da vida devem dar-nos deleite, alegria ou êxtase. Nos desejos conscientes do homem que busca o poder em si há qualquer coisa errada: quando o obtém, ele deseja ainda mais poder, e não encontra paz na contemplação do que já foi conseguido. O amoroso, o poeta e o místico conseguem obter uma satisfação muito maior do que a que o indivíduo que busca o poder conseguirá jamais obter, porque eles podem contentar-se com a obtenção do objeto do seu amor, ao passo que o homem que busca o poder precisa estar perpetuamente envolvido em algum novo empreendimento, sob pena de sentir-se completamente vazio. Penso, portanto, que a satisfação obtida pelo amoroso, e uso esta palavra no seu sentido mais lato, é maior do que a conseguida pelo tirano, e ocupa um posto mais alto entre os objetivos da vida. Quando chegar a hora da minha morte, não terei a sensação de que vivi em vão. Eu vi crepúsculos purpurinos, assisti a auroras brilhantes, observei a neve brilhar sob um sol pálido, senti o cheiro da chuva depois da seca, ouvi o tempestuoso Atlântico, investindo contra os penedos de granito das costas de Cornwall. A ciência pode proporcionar essas e outras alegrias a mais pessoas do que as que poderiam gozá-las sem a sua ajuda. Se isso é verdade, o seu poder será sabiamente empregado. Mas, quando a ciência retira da vida os momentos que lhe dão valor, ela não merece admiração. Apesar de clara e bem elaborada, a ciência pode levar o homem pelo caminho do desespero. A esfera dos valores situa-se fora da ciência exceto na medida em que a ciência significa busca de conhecimento. A ciência como busca de poder não deve invadir a esfera dos valores; da mesma forma, se é verdade que a técnica científica deve enriquecer a vida humana, é preciso também que ela não esmague os fins a que deveria servir.
O número de homens que determinam o caráter de uma época é pequeno. Colombo, Lutero e Carlos V dominaram o século dezesseis; Galileu e Descartes governaram o século seguinte. Na época que findou por volta de 1930, os homens importantes foram Edison, Rockefeller, Lenine e Sun lat-Sen. dom exceção deste último, todos eles foram homem desprovidos de cultura, que pouco se incomodavam com o passado, que confiavam bastante em si próprios e impiedosos. A sabedoria tradicional não encontrava guarida nos seus sentimentos ou no seu pensamento; eles se interessavam apenas por mecanismos e organização. Uma educação diferente da que tiveram teria feito deles homens bem diversos do que foram. Edison poderia ter adquirido na sua juventude conhecimento de história, poesia e arte; a Rockefeller poderia ter sido ensinado de que modo Creso e Crasso foram seus antecessores; Lenine, ao invés de ter sido possuído pelo ódio por causa da execução do seu irmão, no seu tempo de estudante, poderia ter aprendido algo a respeito da expansão do Islã e do desenvolvimento do puritanismo, da piedade à plutocracia. Tal educação poderia ter instilado uma leve sombra de dúvida nas almas desses grandes homens. E, com isso, as suas obras teriam sido menores, mas de maior valor.
O nosso mundo tem uma herança de cultura e de beleza mas, infelizmente, só os membros menos ativos e menos importantes de cada geração têm-se incomodado com isso. O governo do mundo — não os homens que ocupam os postos ministeriais, mas os que ocupam os postos-chave do poder — tem estado nas mãos de homens que ignoram o passado, de homens que não sentem nenhum sentimento terno para com o que é tradicional, de homens que não compreendem o que estão destruindo. Não há nenhuma razão essencial para que isso deva ser assim. Prevenir a repetição desses fatos constitui um problema educacional e, por sinal, um problema relativamente simples. Os homens do passado eram limitados espacialmente, ao passo que os homens que hoje dominam o mundo são limitados temporalmente. Eles sentem para com o passado um desprezo imerecido, ao mesmo tempo que sentem para com o presente um respeito que este ainda merece menos. As antigas máximas foram postas de lado, mas é necessário que estabeleçamos outras para substituí-las. Eu sugeriria como a primeira delas a seguinte: "É melhor fazer um pouco de bem, do que muito de mal." Para dar conteúdo a essa máxima, seria evidentemente necessário instilar nas novas gerações algumas ideias a respeito do que seja o bem. Poucos são os homens dos nossos dias que poderiam ser levados a acreditar que não há nada de intrinsecamente bom na locomoção rápida, por exemplo. Ascender do inferno aos teus é bom, ainda que se trate de um processo lento e laborioso, ao passo que despencar dos céus para o inferno é mau, mesmo que essa queda se dê com a velocidade do Satanás de Milton. Também não podemos afirmar que o simples aumento da produção de bens materiais seja, em si, de grande valor. Impedir a pobreza extrema é importante, mas aumentar as posses dos que já possuem demais constitui um dispêndio inútil de esforço. Prevenir crimes pode ser necessário, mas inventar novos crimes para que a polícia possa demonstrar a sua capacidade de preveni-los já é menos admirável. Os novos poderes que a ciência deu ao homem só podem ser manejados de maneira segura por aqueles indivíduos que, através do estudo da História ou da sua própria experiência de vida, conseguiram adquirir certo respeito para com os sentimentos humanos e alguma ternura para com as emoções que dão colorido à existência quotidiana de todos nós. Não quero, com isso, afirmar que a técnica científica não chegará a construir um mundo artificial que seja, em todos os sentidos, preferível ao mundo em que temos vivido até agora. Quero, isso sim, dizer que, se tal mundo tiver de ser realizado, é preciso que as coisas sejam feitas com cuidado e com a noção de que o objetivo do governo não reside meramente em obter prazer para os governantes, mas em tornar tolerável a vida dos governados. É preciso não mais permitirmos que a técnica científica constitua a cultura única dos detentores do poder; ao mesmo tempo, é necessário fazermos com que se torne parte integrante da perspectiva ética da humanidade a ideia de que apenas a vontade é incapaz de tornar boa a vida. O conhecimento e os sentimentos constituem ingredientes igualmente necessários, tanto na vida do indivíduo, quanto na da comunidade. O conhecimento, quando amplo e profundo, traz consigo a compreensão de épocas e lugares longínquos, a consciência de que o indivíduo não é onipotente ou imprescindível, ao mesmo tempo que uma perspectiva em que os valores são mais claramente percebidos do que por aqueles para quem é impossível uma visão de longo alcance. A existência das emoções é ainda mais importante do que o conhecimento. Um mundo desprovido, de afeição c de deleites é um mundo desprovido de valor. O manipulador científico não pode esquecer-se desses fatos, e quando ele os tem presentes, a sua atuação pode ser inteiramente benéfica. É apenas necessário que os homens não fiquem tão intoxicados com o novo poder, a ponto de se esquecerem das verdades que foram familiares a todas as gerações do passado. Nem todo conhecimento é novo; nem todas as tolices pertencem ao passado,
Até agora, o homem tem sido disciplinado pela sua sujeição à natureza. Tendo conseguido emancipar-se dessa sujeição, o homem está começando a apresentar alguns dos defeitos do escravo que se tornou patrão. É necessário que surja uma nova perspectiva moral, que pregue a substituição da submissão aos poderes da natureza, pelo respeito ao que o homem tem de melhor. É exatamente onde falta este respeito que a técnica científica se torna perigosa. Mas, enquanto ele existir, a ciência, depois de ter conseguido libertar o homem das algemas da natureza, poderá prosseguir em sua obra e libertar o homem do cativeiro em que a sua parte servil o mantém. O perigo existe, mas não é inevitável, e ter esperança no futuro é, ao menos, tão racional, quanto ter medo.


---
Fonte:
A Perspectiva Científica, por: Bertrand Russel. Companhia Editora Nacional, 4ª Edição. São Paulo, 1977, págs. 201-208. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário