quinta-feira, 7 de julho de 2016

"Et in Arcadia Ego"

"Et in Arcadia Ego"
Nas "arcádicas" Éclogas de Virgílio há um poema em que dois pastores trocam canções para assinalar a morte do arquetípico cantor mítico Dafne, que os inspira. A segunda dessas canções, que constitui a segunda parte do poema, eleva Dafne às estrelas, onde ele cruza o limiar do Olimpo para juntar-se aos deuses, começando então nova era de paz para os campos, eternamente gratos. A canção promete louvor até que o tempo estanque. O primeiro cantor chora a prematura passagem do jovem Dafne, celebra seus ensinamentos e lamenta a devastação do campo. Sua nênia termina, no meio do poema de Virgílio, com a construção de um túmulo para Dafne e um epitáfio a ser inscrito ali. Este poemeto é uma canção dentro da canção do pastor, ela mesma inscrita na cancão-poema de Virgílio:
DAPHNIS ECO IN SILVIS HINC USQUE AD SIDERA NOTUS
 FORMOSl PECORIS CUSTOS, FORMOSIOR IPSE.
EU, DAFNE, CONHECIDO NA FLORESTA DAQUI
ÀS ESTRELAS,
PASTOR DE
FORMOSO REBANHO E AINDA MAIS
FORMOSO PASTOR.
Em Roma, no início do século XVII, um cardeal humanista que mais tarde se tornaria papa com o nome de Clemente IX inspirou-se na orgulhosa fragilidade desse epitáfio e rivalizou com sua persistente incompletude gramatical ao cunhar a frase proverbial que dá título a este capítulo: ET IN ARCÁDIA EGO (as palavras dizem literalmente: E/ATÉ NA ARCÁDIA EU) cativou desde então a imaginação de artistas c poetas em toda a cultura ocidental. O caso, como veremos, é de morte e paraíso. Trata-se de uma imagem clássica da nossa inclusão no — e de nossa exclusão do — passado. Ao mesmo tempo, é uma imagem clássica da inclusão e exclusão do mundo clássico no e do mundo arcádico que ele deslocou, esqueceu e depois lembrou, quando estava virtualmente perdido. Sim, queremos que os leitores refluam o que essa eliqueia em latim está fazendo no título deste último capítulo. Em 1786, o polígrafo e classicista Goethe (Johann Wolfgang von Goethe, então com 37 anos) abandonou seu cargo no governo de Weimar para uma viagem de dois anos pela Itália, onde viveu um intenso despertar, acompanhado de febril eclosão literária. Essa experiência e o impulso que deu a sua vida são narrados em Viagens pela Itália, com pungente capítulo intitulado Auch ich in Arkadien ("Também eu na Arcádia", versão alemã da famosa frase). Agora um entusiástico colecionador de lembranças e objetos clássicos, ele verteu rios de Elegias romanas para sua jovem amante Christiane, que encontrou, no regresso da Itália, trabalhando — nada mais adequado — numa fábrica de flores artificiais. Goethe continuou a representar o papel de funcionário dedicado, mas seu coração estava sempre a infinita distância da rotina de príncipes e guerras revolucionárias e contrarrevolucionárias da Europa central. No curso de sua longa vida ele iria inspirar a tendência helenística do romantismo, que fez jovens partirem para redescobrir e suspirar pela paisagem grega, pelos vestígios e ruínas do passado — entre eles Byron e Cockerell com seu grupo. Goethe também não deixa de assinalar sua ligação romântica e nostálgica com o mundo clássico no título desse capítulo.
Uma versão posterior dessa nostalgia aparece na tradição do jovem e insensato libertino que faz das suas e, mais tarde, sentimental, recorda com saudades a juventude perdida. A frase lapidar do cardeal traduz essa ideia para o século XX quando, por exemplo, os rapazes de Oxford no romance Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh, fazem macaquices pelos quartos com um crânio que leva na testa a inscrição ET IN ARCÁDIA EGO (que é também o título do "Livro Um" do romance). Pensavam estar zombando de um velho clichê, mas na retrospectiva que o narrador Charles Ryder faz da Idade Média a frase sinistra acaba zombando deles, do clichê em que se transformara de repente a sua vida. Coloquemos o círculo de amizade do segundo filho de lorde Marchmain, Sebastian Flyte, no contexto do romance em 1945, ao término da Segunda Guerra Mundial, e poderemos saborear a arcádica ironia quando um esteta amigo do grupo, Anthony B.H. Blanche, recita para os rapazes versos clássicos de desespero de A terra devastada, de T.S. Eliot. Tudo os ultrapassara, nada fazia caso deles.
Muitas das mais famosas explorações da famosa frase foram, no entanto, na pintura. A mais famosa de todas é Na Arcádia, do mestre Nicolas Poussin, encomendada pelo mesmo cardeal que cunhou a frase. A tela mostra um grupo de jovens árcades reunidos em volta de uma lápide tumular, examinando atentamente as palavras mal decifráveis nela inscritas — aparentemente transmitindo o que conseguem ler a uma majestosa figura feminina ao lado. Mas por ora concentremo-nos em uma pintura posterior, um quadro que introduziu o gênero  na arte britânica: o retrato das sras. Bouverie e Crewe pintado por sir Joshua Reynolds em 1769.
Reynolds faz uma das senhoras apontar de forma indagadora a inscrição numa lápide, enquanto a outra a examina em profunda contemplação: ET IN ARCÁDIA EGO ataca novamente. A tela fazia parte de uma das primeiras fornadas de quadros do Reynolds como presidente da Real Academia (instituição que fora idealizada por ele e acabara de ser formalmente criada em 1768 com o objetivo de organizar a educação artística da alta sociedade britânica). Coma se que ele mostrou o quadro ao amigo Johnson (primeiro professor de literatura antiga da Real Academia, a partir de 1770) e que este fitou intrigado, achando "sem sentido [a frase] 'estou na Arcádia'". O que aquilo queria dizer? O artista replicou que o rei Jorge III tinha imediatamente captado o sentido no dia anterior: "Ai, ai", exclamara, "a morte está até na Arcádia."
Essa instrutiva anedota mostra que o lema proverbial é mais do que gramaticalmente incompleto. Seu significado deve ser fornecido, seja por quem o recita, seja pelos que o ouvem ou leem ou por ambas as partes. Por um lado, há o alegre entusiasmo que Goethe orgulhosamente proclamaria: na sua versão, encarou o EGO como referindo-se a si mesmo, imaginou um verbo na primeira pessoa e produziu o significado EU TAMBÉM ESTIVE NA ARCÁDIA — querendo dizer EU TAMBÉM ESTIVE NO PARAÍSO. Isso redunda numa nostalgia romântica que situa lembranças da arcádica bem-aventurança acima da melancolia do presente. O dr. Johnson, por outro lado, representa o papel que lhe é atribuído, de crítico acadêmico obcecado por palavras (afinal, é de sua autoria o primeiro dicionário sistemático da língua inglesa) e cego para o significado pictórico. Não conseguiu ver na tela nenhum dos sinais que levaram o rei (condenado a uma longa caduquice, à demência senil) a perceber de imediato que havia alguém mais a quem o EGO da inscrição podia se referir.
A voz, na visão do rei, vem da tumba. Deve ser, portanto, a Morte falando: ATÉ NO PARAÍSO ESTOU. Assim, NÃO HA COMO ESCAPAR DA MORTE - MESMO NA ARCÁDIA. Essa interpretação tem a vantagem de combinar com a colocação da frase no túmulo. E também constrói corretamente o latim (acrescentando SUM, SOU, ESTOU). Mas o quadro não quer apenas que captemos o sentido e pronto, podendo então partir com mais um memento mori para a nossa coleção de ditos clássicos. Em primeiro lugar, deveríamos também nos lembrar do Dafne morto das Éclogas de Virgílio quando lemos essa frase e contemplar a ele como o EGO. Se o pastor morto está dizendo ATÉ NA ARCÁDIA FUI, então o sentido deve ser: MESMO NA ARCÁDIA, ONDE VIVI, ENCONTREI A MORTE E AÇORA JÁ NÃO SOU. (Acrescentar FUI, no sentido de ESTOU MORTO, também é correto em latim.) Mesmo o mais encantador dos pastores, o mais adorável cantor, é mortal; e assim temos todos que morrer um dia.
Cada leitura dessas quatro palavras latinas, aparentemente simples, é problemática. E é isso, na verdade, que nos diz o quadro. Pois a cena que Poussin concebeu e Reynolds tomou emprestado para inaugurar um respeitoso classicismo investigador na cultura britânica tem muito a ver com a origem de um provérbio segundo o qual não se deve tomar o escrito como certo. Uma das damas de Reynolds precisa que a outra interprete para ela a inscrição na tumba: sua companheira pode muito bem entender, mas pode também estar atrapalhada — ou ainda tentando decifrar. Seja qual for o caso, a diferença entre as duas figuras no quadro leva os que o observam a perceber como a dificuldade de ler intervém entre nós e o significado da tela.
Para saber o que a pintura contém, o observador deve reconhecer que o quadro dramatiza a fórmula ET IN ARCÁDIA EGO. Para saber o que a tumba contém, estas senhoras na tela têm que ler sua inscrição e, particularmente, têm que conhecer uni pouco de latim. Mas têm que conhecer também que gênero de pintura é esse. Pois estão fazendo o papel dos pastores árcades de Poussin, que apontam as letras no túmulo deles para outra imponente espectadora. Dificilmente alguém esperaria encontrar pastores alfabetizados na Arcádia; no entanto, a Arcádia é essencialmente o nosso conhecido "alhures" virgiliano — e conhecido também das damas de Reynolds — dos textos poéticos clássicos. E entre esses textos, como vimos no início deste capítulo, está aquele destinado ao túmulo de Dafne.
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Fonte:
Antiguidade Clássica, por: Mary Beard e John Henderson.  Tradução: Marcus Penchel. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1995, págs. 139-145.

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