quinta-feira, 7 de julho de 2016

Os foguetes sobem do deserto

Os foguetes sobem do deserto
HA POUCO MAIS de dez anos atrás, Cabo Canaveral era apenas uma área triangular de 15.000 acres de baixios desertos, infestada de serpentes e localizada no escassamente povoado Condado de Brevard, a meio caminho do litoral da Flórida. Havia lá tantas serpentes que os tratadores de animais do Zoo da Flórida e os caçadores da região costumavam ir a Cabo Canaveral por ocasião de fortes aguaceiros, porque então podiam apanhá-las facilmente no leito das estradas. Conheço um rapaz que num único dia conseguiu apanhar vinte e seis cobras de regular tamanho. Dentro dessa densa mata de palmitos, mirras, timos e pinheiros, proliferavam gambás, guaxinins, coelhos, veados, linces e uma surpreendente variedade de alguns dos mais antigos animais da terra: tatus, lagartos-de-chifre, jacarés e tartarugas gigantes.
Naqueles dias o único meio de atingir as tranquilas e primitivas praias do Cabo era seguir a estrada que leva ao farol e dali tomar um caminho de terra rumo aos palmitais. Numa visita que fiz ao local, em 1949, lembro-me de ter corrido mais de oito quilômetros para afugentar um enxame de abelhas selvagens que se havia instalado no farol esquerdo do meu carro, enquanto eu me achava entretido numa pescaria. Cerca de 13 quilômetros para o sul ficava a pequena e silenciosa comunidade de Cocoa Beach, lugar onde se conseguia um refrigerante, uma calça-esporte e se potliíi tomar os famosos camarões de Cabo Canaveral. O objeto que mais se aproximava de qualquer produto da era espacial e o dispositivo técnico mais complicado que se podia adquirir era um aquecedor elétrico. A única rodovia era virtualmente a US A1A, que se parecia com um fino tapete negro amolecido pelo sol escaldante Havia tão pouca água potável, e esta assim mesmo era tão ruim, que o café, embora feito na hora, parecia ter sido preparado com pó deteriorado.
Oito quilômetros mais para o sul ficava o que é hoje a Base Patrick, da Força Aérea, então um conjunto de edifícios e hangares, conhecido como Estação Aeronaval do Rio Banana.
Um dia, sem que os moradores da redondeza tivessem conhecimento, uma comissão altamente secreta de militares e civis recolheu amostras da água de Cocoa Beach e inspecionou as pistas em péssimo estado de conservação da Estação Aeronaval do Rio Banana. Objetivo da comissão: converter tudo aquilo na maior rampa de lançamento do mundo livre, no mais importante centro de desenvolvimento de mísseis do Ocidente.
A tarefa deve ter sido muito penosa para os membros da comissão, perseguidos a todo o momento por mosquitos impertinentes, tropeçando em touceiras de arbustos e respirando o odor pouco agradável dos vetustos edifícios. Quem dentre eles realmente pensaria que em menos de dez anos a silhueta do Cabo passaria a contar com enormes torres e guindastes para lançamentos de poderosos foguetes capazes de alcançar a costa da África em questão de minutos? Ou que a Base Patrick, da Força Aérea, se tornaria uma das mais modernas e completas instalações técnicas da nação?
Eram simplesmente desconcertantes alguns dos problemas que a comissão tinha diante de si. Uma das principais razoes para a escolha de Cabo Canaveral, em primeiro lugar, era o anel das ilhas que se estendem quase em linha reta através das Bahamas até as Pequenas Antilhas, ao largo da costa da América do Sul. Algumas dessas ilhas, contudo, eram britânicas, sendo outras repúblicas independentes. Obter permissão para montar estações de rastreio de mísseis demandava negociações detalhadas com três governos diferentes. Os naturais dessas ilhas, em sua maior parte, nunca tinham ouvido falar de mísseis e poderiam, portanto, entrar em pânico se vissem um deles riscando o céu ou precipitando-se no oceano. Para resolver este problema, decidiu-se constituir uma equipe de técnicos para prestar aos habitantes locais os necessários esclarecimentos, mostrando-lhes modelos plásticos de foguetes para convencê-los de que não ofereciam perigo se tomadas as devidas precauções. O governo dos Estados Unidos prometeu inclusive uma recompensa a todo o agricultor ou pescador que encontrasse um fragmento de projétil, por menor que fosse, devolvendo-o a Tio Sam para estudo e análise. Para muitos nativos a possibilidade de uma recompensa era toda a garantia que reclamavam. Hoje em dia eles estão de tal forma acostumados com os mísseis que raramente levantam a vista para acompanhar a passagem desses gigantes do espaço, cuja trajetória é assinalada pelo rasto luminoso que deixam na atmosfera.
Mas havia problemas maiores. Para que as estações de rastreio fossem realmente eficientes na pilotagem dos foguetes, tinham que ficar em contato permanente umas com as outras e todas com Cabo Canaveral. Para ligar distâncias tão grandes o rádio não inspira confiança, sobretudo sabendo-se que aquela área era sujeita a tempestades tropicais e furacões. A solução consistiu em fazer a ligação por meio de um cabo submarino, operação que durou sete anos e custou, ao contribuinte norte-americano 18 milhões de dólares. Mas hoje os operadores de qualquer estação até Porto Rico podem tirar o telefone do gancho e falar com as outras estações com a mesma facilidade com que o piloto de uma aeronave fala com os seus passageiros pelo telefone interno. O cabo comporta simultaneamente doze conversações.
Esse cabo submarino desempenhou outra função da mais alta utilidade. No início as estações de rastreio insulares tinham dificuldade de localizar no horizonte os pequenos projéteis Matador. Inventou-se por isso um dispositivo de radar em cadeia que, com a ajuda do cabo, permitia que a antena de rastreamento das estações bloqueasse antecipadamente o ponto exato no horizonte onde deveria aparecer o míssil. Para o fim de registrar dados, precisava-se de um método de sincronização do tempo em todas as estações por milésimos de segundo. Inventou-se assim um gerador de tempo, que recebe um sinal do Escritório de Padrões (Bureau of Standards) e gera o tempo no cabo submarino em precisas frações de segundos. E para analisar ou reduzir rapidamente todos esses dados concebeu-se um computador especial, o chamado Comomputador Automático Flórida, ou FLAC, sigla inglesapela qual é  mais conhecido. O FLAC ocupa atualmente todo um salão do novo Laboratório de Pesquisas Técnicas e é tão bem construído que possui uma memória eletrônica para 4.906 palavras.
Por volta de 1950 os trabalhadores puseram abaixo densas florestas de pinheiros para construir pistas e abrir clareiras para a construção de hangares, depósitos de combustíveis e plataformas de lançamento. Tanto foram os homens contratados para trabalhar em Cocoa Beach que muitos não achavam acomodações e eram obrigados a dormir com suas famílias em automóveis estacionados na estrada.
Para proporcionar ao local abastecimento de água adequado foram estendidos sobre a estrada condutores de 24 polegadas de diâmetro. Muitos operários, sem acomodações, não hesitavam em dormir nas seções dos condutores de água usando pilhas de jornais como travesseiros.
Um dia aproximei-me de um desses operários pela manhã e pilheriei: "Você arrumou mesmo uma casa, hein, companheiro? Não leva a mal que eu tire uma fotografia?"
O trabalhador olhou para mim de alto a baixo e observou:
"Escute, meu caro, levo a mal sim. Então você acha que eu estou orgulhoso de dormir num cano de esgoto?"
Gradualmente as primeiras obras foram ficando prontas tanto no Cabo como nas duas primeiras ilhas, isto é, a Grande Bahama, chamada GBI, a 280 quilômetros a sudoeste, e a Ilha Eleutera, 190 quilômetros ao sul da GB1. A grande base de mísseis do mundo livre estava ficando pronta para entrar em funcionamento.


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Fonte:
A História de Cabo Canaveral, por: William Roy Shelton.Tradução: Count Down. Editora Fundo de Cultura. Rio de Janeiro, 1960, págs. 28-34.

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