quinta-feira, 7 de julho de 2016

Freud e a herança de caracteres adquiridos

Freud e a herança de caracteres adquiridos
Como referimos anteriormente, a herança de caracteres adquiridos não foi completamente rejeitada por biólogos até 1930. Freud aparentemente não teve ciência da mudança até 1938, quando Jones chamou sua atenção para a mudança resultante na "atual atitude da ciência biológica, que se recusa a ouvir falar em herança de caracteres adquiridos por sucessivas gerações". Até então, Freud não "estivera claramente ciente de minha ousadia em descuidar" de fazer uma "distinção entre... uma tradição herdada" e "uma transmitida por comunicação" (1939 [1934-38] SE 23:110). Ele reconheceu que "com maior reflexão devo admitir que me comportei por muito tempo como se a herança de traços de memória da experiência de nossos ancestrais, independentemente de comunicação direta e da influência da educação pelo estabelecimento de um exemplo, estivesse estabelecida de modo inquestionável" (23: 99).
Confrontado no fim da vida com essa mudança no pensamento biológico, daquilo que lhe era familiar a partir dos textos de Darwin e de sua formação universitária em biologia evolucionista (a ser abordada na parte II), Freud percebeu que não podia "trabalhar sem esse fator da evolução biológica". Necessitava dele para transpor o hiato entre a psicologia individual e a de grupo. Utilizara-o para esse propósito em Totem e Tabu (1913) e em Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921) aparentemente sem objeção de ninguém. "Se supusermos a sobrevivência desses traços de memória na herança arcaica, teremos transposto o hiato entre a psicologia individual e a de grupo: podemos lidar com povos como lidamos com neuróticos isolados." Sem isto, "não avançaremos um passo sequer ao longo do caminho que seguimos, seja na análise seja na psicologia de grupo. A ousadia não pode ser evitada".
E assim, a despeito de apelos de seus colegas, Freud continuou em Moisés e o Monoteísmo com a linha de pensamento com que ele iniciara esse livro — sob a forma de conferência, em Viena, em 1934 — até que o completou, na condição de refugiado de Hitler, em Londres, em 1938. A mais forte evidência que podia oferecer em apoio da "presença de traços de memória na herança arcaica" eram "os fenômenos residuais do trabalho de análise que pedem uma derivação filogenética" (23: 100). Ele sustentou sua alegação com um parágrafo que tem associações com a teoria darwiniana da descendência, a qual, na concepção de Freud, demole a barreira que fora arrogantemente erguida entre o homem e o animal (1925, SE 19: 221). Supondo a presença de traços de memória na herança arcaica, "estamos diminuindo o hiato que períodos anteriores de arrogância humana alargaram excessivamente entre a humanidade e os animais". Essa passagem também revela a aceitação por parte de Freud do instinto animal, tal como definido e tratado por
Darwin em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais: "Se há alguma explicação a ser encontrada para os chamados instintos [instinkt] dos animais, que lhes permite comportarem-se desde o início em uma nova situação na vida, como se fosse antiga e conhecida — se há alguma explicação afinal a ser encontrada para essa vida instintiva dos animais, só pode ser a de que trazem as experiências de suas espécies com eles para sua nova existência — isto é, preservaram lembranças do que foi experimentado por seus ancestrais. A situação no animal humano no fundo não seria diferente. Sua própria herança arcaica corresponde aos instintos dos animais, embora seja diferente em seu âmbito e conteúdo" (SE 23: 100).


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Fonte:
A influência de Darwin sobre Freud: Um conto de duas ciências", por: Lucille B. Ritvo. Tradução: Júlio César Castañon Guimarães. Imago Editora. Rio de Janeiro, 1992, págs. 99-101.

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