terça-feira, 21 de junho de 2016

Racionalidade e mais Além

Racionalidade e mais Além
Porém será justo comparar-se o homem e os animais.na base de um ato tão relativamente simples como o de achar uma saída ou encontrar um objeto perdido? Poderemos generalizar entre achar a moeda e ler um livro? (Nenhum outro animal, senão o homem, será capaz de ler.) Alguns psicologistas acharam que se pode. Os behavioristas, dos quais o americano John Broadus Watson foi o mais proeminente, tendem a considerar toda a aprendizagem à luz dos reflexos condicionados.
Um reflexo condicionado difere de um reflexo comum porque, no condicionado, o cérebro entra em ação. Não que o cérebro seja inteiramente essencial, pois um animal com o cérebro alterado poderá ainda assim ser condicionado. Mas um animal de cérebro intacto será melhor condicionado especificamente. Se um animal levar um leve choque elétrico numa perna no momento em que uma campainha soar, o animal intacto poderá ser condicionado a levantar a perna toda vez em que a campainha soar, mesmo sem levar o choque elétrico. O animal descerebralizado responderá com tentativas generalizadas de fuga.
Se o cérebro acha-se envolvido no processo, então é razoável supor-se que quanto maior for sua massa e complexidade, também aumentar-se-à a complexidade dos reflexos condicionados. Mais e mais neurônios podem ir se engatando e formando "circuitos" que representarão combinações de condicionamentos. Mais e mais depósitos de unidades de memória poderão armazernar-se, de modo que experiência-e-êrro pode processar-se nestes armazenamentos de lembranças em vez de no mundo físico.
Considerado o armazenamento de unidades para a memória e bastante lugar para o condicionamento, nada mais é necessário para explicar o comportamento humano. Uma criança olha para a letra b e põe-se a associá-la com um determinado som. Olha depois para a combinação de letras "bolo" e começa a associá-la com uma determinada palavra que já tinha anteriormente associado a uma determinada coisa. Falar e ler transformam-se numa complexa série de respostas condicionadas, do mesmo modo como escrever a máquina, ou esculpir, ou uma infinidade de outras habilidades mecânicas. E o homem está apto a realizá-las não porque possua alguma coisa que os animais inferiores não possuem, mas por ter o que todos eles têm, — apenas muito mais do que eles.
Alguém poderá insistir em que os mais elevados atributos da mente humana — dedução lógica e mesmo a criatividade científica ou artística — podem reduzir-se à experiência-e-erro e condicionamento. O poema Kubla Khan, escrito por Samuel Taylor Coleridge, foi cuidadosamente analisado num livro de John Livingston Lowes chamado "O Caminho para Xanadu". Lowes conseguiu provar que cada palavra ou frase do poema originava-se de algum item nas antigas leituras ou experiências de Coleridge. Podemos focalizar Coleridge juntando todos os fragmentos de palavras e ideias em sua mente (automática e inconscientemente), como se fosse um gigantesco caleidoscópio mental, escolhendo as combinações por ele preferidas e com estas construindo o poema. Ainda o método de experiência-e-erro. Aliás, como o próprio Coleridge testemunhou, o poema surgiu-lhe na mente, linha por linha, num sonho. É presumível que, durante o sono, sua mente não perturbada pelas sensações da vigília e dos pensamentos, pudesse entrar mais livremente neste jogo de experiência-e-erro.
Se imaginarmos uma coisa destas se efetuando no cérebro humano, também temos de esperar que haja no cérebro humano vastas áreas que não recebem diretamente as sensações e nem dirigem respostas, porém se dedicam às associações, associações e mais associações. É exatamente assim.
Assim, a região perto da área auditiva no lobo temporal é a área de associação auditiva. Ali, certos sons são associados com os fenômenos físicos à luz de experiências passadas. Um ruído surdo e prolongado poderá trazer à mente a ideia de um caminhão, de um trovão distante ou então — se não houver associação nenhuma — ideia nenhuma. (Geralmente a associação "nenhuma" é a que mais nos atemoriza.) Há também uma área de associação visual no lobo occipital rodeando a atual área visual e uma área de associação somestética atrás da área somestética.
As diferentes áreas de associações sensoriais coordenam seu funcionamento numa parte do cérebro na proximidade do começo do sulco lateral, no hemisfério cerebral esquerdo. Neste ponto, as áreas de associação auditiva, visual somestética juntam-se todas. A este ponto de reunião dá-se o nome de área gnóstica ("conhecimento" G). Esta reunião de associações ativa-se na área logo em frente, a área ideomotora que as traduz numa resposta adequada. Esta informação é desviada para a área premotora (que fica bem antes da área motora, no lobo frontal) que coordena a atividade muscular necessária para produzir a desejada resposta. É a área motora que realiza esta atividade.
Mesmo quando todas as áreas de associação, as áreas sensoriais e as áreas motoras são levadas em conta, ainda sobra uma área do cérebro sem uma função específica e facilmente ou capaz de ser medida. É a área do lobo frontal que fica logo antes das áreas motora e premotora e por isso se chama lobo pré-frontal. O desconhecimento de suas funções fez com que seja designada como "área silenciosa". Houve casos de tumores que exigiram a remoção de grandes áreas do lobo pré-frontal sem que houvesse consequências de monta, porém, é certamente um tecido nervoso que deve ter alguma utilidade.
Manifesta-se uma tendência para considerá-la como a mais significativa dentre todas as seções do cérebro. De um modo geral, a trama evolutiva no desenvolvimento do sistema nervoso humano baseou-se em empilhar complicações na extremidade dianteira do cordão. Passando pelos cordatos primitivos, como o anfioxo, para o subfilo dos vertebrados, vai-se de um cordão nervoso não-especializado para um no qual a extremidade anterior se transformou num cérebro. Também, quando se sobe na escala dos vertebrados, passando dos peixes aos mamíferos, a parte fronteiriça do encéfalo é que sofre maior desenvolvimento e o cérebro torna-se dominante. Passando dos insetívoros aos primatas e, dentro da ordem dos primatas, do macaco ao homem, nota-se desenvolvimento sucessivo no lobo frontal do cérebro.
Nos primeiros hominídeos, mesmo depois que o encéfalo atingiu o seu completo tamanho humano, os lobos frontais continuaram se desenvolvendo. O homem de Neandertal tinha um cérebro do tamanho do nosso, porém nosso lobo frontal ganhou em detrimento do lobo occipital. O peso total é o mesmo, mas a distribuição do peso é outra. Pode-se, pois, presumir que os lobos pré-frontais, longe de ficarem sem uso, são uma espécie de volume extra para depósito de associações, representando a verdadeira condensação do cérebro.
Lá por 1930, um cirurgião português, António Egas Moniz achou que, quando um doente mental estava no fim de suas possibilidades de cura, quando os métodos comuns na psiquiatria e na terapêutica não adiantavam mais nada, poder-se-ia recorrer à medida extrema se operar os lobos pré-frontais, separando-os do cérebro. O cirurgião português imaginava que, desta forma, o doente se libertaria das associações que criara. Em se tratando de um doente mental, tais associações deveriam ser mais nocivas do que desejáveis e, portanto, havia vantagem em suprimi-las. Esta operação, lobotonua prefrontal, foi realizada pela primeira vez em 1935 e numa porção de casos deu certo. Em 1949, o Dr. Egas Moniz recebeu o Premio Nobel por este feito. Mas esta operação nunca se tornou muito popular e nem se tornará, decerto. Leva a modificações na personalidade, quase tão indesejáveis como a própria doença que se pretende curar.
Mesmo se admitindo que o ponto de vista dos behavioristas é correto em princípio e que todo o comportamento humano, por mais complexo que seja, possa reduzir-se a um plano mecânico de células nervosas (e hormônios)  resta-nos saber se convém deixar as especulações ficarem por aqui.
Suponha-se que nos satisfaz a ideia de que Coleridge compôs seu poema Kubla Khan por experiência-e-erro. Isso nos ajudaria? Se assim foi, porque nós não compomos poemas do porte do Kubla Khan? Como foi que Coleridge escolheu justamente este plano de poema no meio da infinidade de outros existentes no seu caleidoscópio mental? Como foi que saiu um poema tão admiravelmente belo? E como pôde ser escrito num prazo tão curto de tempo?
Evidentemente temos muito mais que procurar, além da simples "experiência-e-erro" ao nosso alcance. Em resumo, quando uma transformação vai se efetuando progressivamente chega-se a um ponto (por vezes um ponto bem agudo) em que é preciso mudar-se de perspectiva, quando uma diferença em grau subitamente se equivale a uma diferença em espécie. Por analogia no mundo das ciências físicas, consideremos o gelo. Sua estrutura está muito bem conhecida no nível molecular. Se se aquecer o gelo, as moléculas irão vibrando cada vez mais até que, a uma certa temperatura, as vibrações tornam-se bastante enérgicas para dominar as atrações intermoleculares. As moléculas então se desordenam e passam a distribuir-se caprichosamente, de um modo que, com o tempo, produz uma modificação também caprichosa. Deu-se uma "fase de mutação"; o gelo derreteu-se e transformou-se em água. As moléculas da água líquida são as mesmas do gelo. Podem-se estabelecer regras para o comportamento destas moléculas, tanto no gelo como na água. Mas a fase de mudança é tão aguda que nos faz descrever água e gelo em termos bem diferentes, relacionando a água com outros líquidos e o gelo com outros sólidos.
Da mesma forma, quando o processo de sublimação de experiência-e-êrro torna-se tão intricado como acontece na mente humana, poderá ser inútil a tentativa de interpretar-se a atividade mental em termos de behaviorismo. Entretanto ninguém sabe qual a forma de interpretação que será mais útil!
O conceito da fase de mudança pode também ser usado em resposta à questão de o que é que fixa o abismo separando o homem de todas as outras criaturas. Visto como não é apenas a razão, deve haver mais alguma coisa. Uma fase de mutação precisa realizar-se não apenas no momento em que a razão é introduzida, mas quando a razão atinge um determinado ponto de intensidade. É de supor-se que o ponto seja quando a razão se torna suficientemente complexa para permitir abstrações, quando permite o estabelecimento de símbolos para estatuir conceitos, quando em troca prepara colações de coisas ou ações ou qualidades. O som da palavra "mesa" representa não esta ou aquela mesa, mas um conceito de "todas as coisas parecidas com mesa", um conceito que não existe fisicamente. O som "mesa" é, pois, uma abstração de uma abstração.
Desde que seja possível conceber-se uma abstração e representá-la por meio de sons, torna-se possível a comunicação de um nível de complexidade e compreensão muito além do que se conseguiria sem isso. As áreas motoras do cérebro desenvolveram-se a ponto de tornar possível a existência de centro da palavra. Vão se emitindo diferentes sons, de um modo fácil e seguro, para que os conceitos se revistam na forma de palavras faladas. No cérebro há bastante lugar para as unidades da memória, — um cérebro cuja complexidade permite todas as necessárias associações de sons e conceito, firmando-as na mente humana.
A palavra falada, mais do que a razão em si, marca a fase de mutação, fixando o abismo que separa o homem do não-homem. Como já frisei à página 238, a existência da palavra significa que a reunião da experiência e o delineamento de conclusões não é mais uma função simplesmente individual. A experiência é compartilhada. A tribo torna-se menos ignorante e mais apta a aprender que qualquer indivíduo nela. Ainda mais: a experiência vai unificando a tribo no decorrer do tempo como através do espaço. Cada geração que surge não precisa começar do comecinho, como sucede a todas as outras criaturas. Os pais humanos podem transmitir sua experiência e conhecimentos aos filhos, não apenas pela demonstração, mas pela palavra que explica os conceitos. Não apenas fatos e técnicas mas ainda pensamentos e deduções vão sendo transmitidos.
Talvez que o abismo que nos separa das outras criaturas vivas não nos parecesse tão grande se soubéssemos mais sobre os vários hominídeos pré-humanos que nos mostrariam os vários estágios que devem ter enchido o abismo. Infelizmente quase nada sabemos. Ignoramos completamente em que estágio de desenvolvimento ou em que espécie de hominídeos deu-se a fase de mutação.


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Fonte:
O Cérebro Humano: suas capacidades e funções, por: Isaac Asimov. Tradução: Virgínia Lefevre. Hemus Editora. São Paulo, s/d, 307-312.

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