terça-feira, 21 de junho de 2016

Análise de "São Bernardo", de Graciliano Ramos

São Bernardo - Graciliano Ramos

Uma alma calcificada
Publicado em 1934, São Bernardo é o segundo volume do escritor, sua segunda experiência na narrativa em primeira pessoa, já que Caetés (1933) também apresenta um narrador-personagem.
Livro vazado em linguagem direta, seca, traz perfeita sincronia entre o meio bruto e o personagem que nele vive. A economia de meios aliada à simplicidade dos períodos curtos apresenta a força da expressão de Graciliano Ramos. Prevalece a substantivação em detrimento do adjetivo - escasso, mas necessário para expressar a rudeza do ambiente e a sequidão do personagem. À lucidez e ao equilíbrio da narrativa contrapõe-se o caos interior do personagem.

Sob o signo da posse
O volume gira em torno de Paulo Honório, homem psicologicamente dominador em cujas mãos os outros personagens tornam-se joguetes. O fator "posse" surge desde as primeiras linhas, quando o narrador se propõe a escrever um livro de memórias e colocar o seu nome na capa, embora, inicialmente, pretendesse construí-lo pela divisão de trabalho.
"Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa.
Estive uma semana bastante animado, em conferências com os principais colaboradores, e já via os volumes expostos, um milheiro vendido graças aos elogios que, agora com a morte do Costa Brito, eu meteria na esfomeada Gazeta, mediante lambujem. Mas o otimismo levou água na fervura, compreendi que não nos entendíamos.
João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem.
Padre Silvestre recebeu-me friamente. Depois da revolução de outubro, tornou-se urna fera, exige devassas rigorosas e castigos para os que não usaram lenços vermelhos. Trocou-me a cara. E éramos amigos. Patriota. Está direito: cada qual tem as suas manias.
Afastei-o da combinação e concentrei as minhas esperanças em Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, periodista de boa índole e que escreve o que lhe mandam.
Trabalhamos alguns dias.(...)
A princípio tudo correu bem, não houve entre nós nenhuma divergência. A conversa era longa, mas cada um prestava atenção às próprias palavras, sem ligar importância ao que o outro dizia. Eu por mim, entusiasmado com o assunto, esquecia constantemente a natureza do Gondim e chegava a considerá-lo uma espécie de folha de papel destinada a receber as ideias confusas que me fervilhavam na cabeça.
O resultado foi um desastre.(...)
Abandonei a empresa, mas um dia destes ouvi novo pio de coruja - e iniciei a composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer vantagem, direta ou indireta."
Quase patogenicamente, o personagem persegue o dinheiro, relatando os infortúnios por que passou e traçando o quadro de sua ascensão social.

Das origens à ascensão
Paulo Honório nasceu pobre, filho de pais que ele não conheceu e, desde cedo, toma contato com a aspereza da vida. Criado pela negra Margarida, lembra-se de ter sido guia de cego, mas o contato com o amargo do trabalho surge quando trabalha no eito da fazenda São Bernardo. Por ter esfaqueado um homem, foi preso. Na prisão aprende a ler. Ao sair, pede dinheiro emprestado e estuda aritmética para "não ser roubado além da conveniência". Fez de tudo na vida, tudo em função do dinheiro.
De posse de bom capital, volta para Viçosa (AL), aí entrando em contato com Luís Padilha. herdeiro da fazenda São Bernardo. Padilha era jogador e bêbado, pessoa sem grandes ambições, presa fácil para Paulo Honório. O narrador começou a rodeá-lo; travando amizade, empresta-lhe dinheiro. Incentiva-o a cultivar a fazenda e empresta-lhe mais dinheiro. Agora, com o homem endividado, tinha-o nas mãos, pois a fazenda estava hipotecada. Propõe-se a arrematar a fazenda, que acaba sendo sua por uma quantia irrisória.
Já dono de São Bernardo, Paulo Honório luta muito, trabalha de sol a sol, até se tornar o mais próspero fazendeiro da região. É o sentido patriarcal do personagem que clama por um herdeiro para suas terras, fazendo-o pensar em casamento.
Casa-se com Madalena, professora primária recém-chegada à Viçosa. Apesar de a moça ter tido um curso brilhante, como professora não havia conseguido classe na capital por faltar-lhe a influência, as mãos protetoras de políticos. Instruída, chega a assinar alguns artigos para o jornal. Era socialista, achava que a vida não era concebida como um equilíbrio entre o possuidor e a coisa possuída. Não afinava com a ordem política estabelecida, participava, com maturidade, de conversas políticas e, por interesse não totalmente definido, une-se a Paulo Honório. O narrador embora tenha se casado sem amor, acaba por se apaixonar pela mulher, mas o amor não lhe traz tranquilidade, pelo contrário, mostra-se desde o início incompatível com o seu sentido de propriedade. Para se adaptar, Paulo Honório necessitaria de uma reeducação afetiva, que é impossível, pois sua mentalidade já está formada (ou deformada).

O início da decadência
Após o casamento, viveram bem durante um mês; depois, começaram os atritos. Madalena, pela manhã, trabalhava na contabilidade da fazenda e, à tarde, passeava. Um dia foi à escola, encontrou muitas falhas, requisitou inúmeros materiais que custaram a Paulo Honório seis contos. Se, por um lado, o gasto refletia o desprendimento da mulher, por outro não coadunava com o espírito do marido que aprendera o ABC na cadeia. Assinou a promissória, mas quando passou pelo estábulo viu os animais sem ração. Gritou pelo encarregado (Marciano) e encontrou-o de conversa com o professor:
"- Já para as suas obrigações, safado. - Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano, perfilando-se. - Acabou nada! - Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que nos alumia. - Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira. Marciano teve um rompante: - Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade, mas nenhum morador me havia falado de semelhante modo. - Você está se fazendo de besta, seu corno? Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com manga o nariz, que escorria sangue."
Posteriormente, quando avistou Madalena conversando com o professor sobre Marciano, a mulher censura sua brutalidade. Logo ele associou: Madalena dera um vestido de seda à mulher de Marciano; à negra Margarida, que o havia criado, a mulher entregara lençóis e sapatos e mais o material escolar... Tudo transparece para o personagem-narrador como desperdício, todos estão pondo fora seu dinheiro tão duramente conquistado. E assim, das pequenas rusgas e de algumas poucas constatações surge a grande crise, que aumenta ainda mais com a incompatibilidade de gênio entre o casal, culminando com o desmoronamento do casamento. A ternura com que Madalena o tratava não era só para ele, ela a distribuía, como distribuía sua bondade aos menos privilegiados.
O protagonista começa gradualmente a perceber que a mulher abala sua soberania, interfere em sua propriedade — ela mesma sentida como propriedade. Paulo Honório não consegue dominá-la, não consegue fazê-la um ser subordinado como tantos que o rodeiam. Explica-se assim o surgimento de um ciúme doentio que pressiona a personagem, sufoca-a. Acuada pelo ciúme do marido não resta à Madalena outro recurso senão o suicídio. Paulo Honório é vitorioso, mas de uma vitória que ele não esperava e nem queria. A ele somente coube constatar que a violência de sua vida, a brutalidade do meio em que se criara fez dele um vencedor, mas ao vencer Madalena, acabou ele próprio vencido. Depois do suicídio confessa:
"Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil-réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nunca um médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
O que estou é velho. Cinquenta anos pelo S. Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?
Sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combinações, violências, perigos - e nem sequer me resta a ilusão de ter realizado obra proveitosa. O jardim, a horta, o pomar - abandonados; os marrecos de Pequim - mortos; o algodão, a mamona — secando. E as cercas dos vizinhos, inimigos ferozes, avançam.
Está visto que, cessando esta crise, a propriedade se poderia reconstituir e voltar a ser o que era. A gente do eito se esfaldaria de sol a sol, alimentada com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau; caminhões rodariam novamente,  conduzindo  mercadorias para a estrada de ferro; a fazenda se encheria outra vez de movimento e rumor.
Mas para quê? Para quê? não me dirão? Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres amidos, frios, inchariam roídas pela verminose. E Madalena não estaria aqui para mandar-lhes remédio e leite. Os homens e as mulheres seriam animais tristes."

Anos difíceis
Ao final, como homem derrotado, expande seus sentimentos poupando a mulher, culpando-se pelo desfecho infeliz. Em síntese classifica-se como egoísta e bruto, mas, ao assumir a culpa, exime-se de sua totalidade, alegando que a vida e o meio no qual formou seu caráter foram os verdadeiros culpados.
"Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também consequência da profissão.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas."
Voltando ao ciúme, o sentimento é absurdo, despropositado. No entanto, em conversa com o marido, Madalena deixa claro que recorreria ao suicídio por causa dos tormentos a que era submetida. Para justificar-se deixou uma longa carta, que foi levada pelo vento. Paulo Honório a recolhe, julgando-a destinada a outro. Por pura ignorância não soube compreendê-la, não pôde, por isso, evitar a tragédia. Centrado no seu individualismo, criou um mundo isolado, acreditando que as pessoas fossem como ele, bichos:
"Bichos. As criaturas que me serviam durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns ao outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.
Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército, volvendo à esquerda, volvendo à direita, fazendo sentinela. Outros buscaram, pastos diferentes."
Dois anos após o suicídio de Madalena, Paulo Honório refere-se, melancolicamente, a seu presente: fica atestada a ameaça de sua ruína financeira, pois a crise econômica está produzindo falências e concordatas. As laranjas, o algodão, a avicultura já não são facilmente comerciáveis. Insistir em fazer investimentos na fazenda seria loucura, pois os bancos lhe fecharam as portas, provavelmente premidos pela situação. Resta-lhe cruzar os braços e dedicar-se a seu livro de memórias. Por fim concluí:
"Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhes disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou convencido de que nenhum desses ofícios me daria os recursos intelectuais necessários para engendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em momentos de otimismo suponho que há nela pedaços melhores que a literatura do Gondim. Sou, pois, superior a Mestre Caetano e a outros semelhantes. Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos de conhecimentos apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a superioridade que me envaidece é bem mesquinha."


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Fonte:
Literatura Fuvest 96, por Célia A. N. Passoni. Editora Núcleo, 1ª Edição. São Paulo, 1995, págs. 127-132.

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