sexta-feira, 17 de junho de 2016

Os Rolos do Mar Morto

Os Rolos do Mar Morto
"Os Rolos do Mar Morto, descobertos, provavelmente, em 1947 por beduínos árabes chegaram às mãos dos estudiosos no fim daquele ano e no começo de 1948. As descobertas se realizaram nas cavernas nos penhascos margosos que distam entre um e dois km ao oeste da extremidade nordeste do Mar Morto, localidade esta que é conhecido pelo nome árabe de Cunrã (Qumran), perto de uma fonte copiosa de água doce chamada Ain Fexca (Feshkha). Esta localização à margem do deserto de Judá, faz que às vezes haja a expressão "Rolos de Ain Fexca", ou "Rolos do Deserto de Judá".
Os rolos foram vistos por vários estudiosos na parte posterior do ano 1947, e alguns deles confessam que na época, menosprezaram-nos como sendo falsificações. Um dos professores que reconheceram a verdadeira antiguidade dos rolos foi o falecido Prof. Eleazar L. Sukenik da Universidade Hebraica, e ele conseguiu mais tarde comprar alguns deles. Outros rolos foram levados para a Escola Americana de Pesquisas Orientais em Jerusalém, onde o Diretor interino, Dr. John C. Trever, percebendo seu grande valor, mandou fotografar os pedaços que foram levados a ele. Uma das suas fotografias foi enviada ao Prof. William F. Albright, que imediatamente declarou que esta foi "a descoberta a mais importante que já tinha sido feita no assunto de manuscritos do Antigo Testamento".
Os rolos que foram comprados pela Universidade Hebraica incluíam o Rolo de Isaías da Universidade Hebraica (1QIsb), que contém uma parte do Livro, a Ordem da Guerra, conhecido também como A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas (1QM), e os Hinos de Ações de Graças, ou Hodayot (1 QH). Os rolos comprados pelo arcebispo sírio e publicados pelas Escolas Americanas de Pesquisas Orientais incluíam o Rolo de Isaías de São Marcos (1QIsa), que é um rolo do Livro inteiro, o Comentário de Habacuque (1QpHab), que contém o texto dos caps. l e 2 de Habacuque com um comentário, e o Manual de Disciplina (1QS), que contém as regras para os membros da comunidade de Cunrã. Subsequentemente, estes rolos passaram a integrar o patrimônio do Estado de Israel, e são conservados num santuário especial da Universidade Hebraica em Jerusalém. Têm sido publicados em numerosas edições e recensões, e traduzidos para várias línguas, havendo grandes facilidades para quem deseja estudá-los em tradução ou em fac-símile.
Depois da descoberta destes rolos, que são de grande importância por ter sido quase unanimemente reconhecido que pertencem ao último século a.C. e ao primeiro século d.C., a região onde foram achados tem sido sujeitada a exploração sistemática. Numerosas cavernas têm sido achadas, e até agora, onze destas cavernas têm oferecido materiais da mesma época dos rolos originais. A maior parte destes rolos tem vindo da quarta caverna a ser explorada (Caverna Quatro, ou 4Q), e outros de grande significado foram achados nas cavernas 2Q, 5Q, e 5Q. Segundo as últimas notícias, as descobertas as mais significativas têm sido as da caverna 11Q.
Só da caverna 4Q, os fragmentos achados representam um mínimo de 382 manuscritos diferentes, e uma centena destes são manuscritos bíblicos. Estes incluem fragmentos de todos os livros da Bíblia hebraica menos Ester. Alguns dos livros são representados em muitas cópias diferentes: há, por exemplo, 14 manuscritos diferentes de Deuteronômio, 12 manuscritos de Isaías, e 10 manuscritos dos Salmos, representados nos fragmentos achados em 4Q; outros fragmentos destes mesmos livros têm sido achados em 11 Q, mas ainda não foram publicados. Um dos achados significantes, que pode ter grande valor em avaliar teorias sobre data e autoria, diz respeito ao Livro de Daniel, fragmentos do qual têm a mudança do hebraico para o aramaico em Dn 2:4, e do aramaico para o hebraico em Dn 7:28-8:1, exatamente como nos textos de Daniel que se empregam mais recentemente.
Além dos achados de Livros bíblicos, descobriram-se fragmentos de livros deuterocanônicos, especificamente Tobias e Eclesiástico, e também de vários escritos não canônicos. Alguns destes já eram conhecidos: Jubileus, Enoque, o Testamento de Levi, etc. Outros foram totalmente desconhecidos, especialmente os documentos que pertenciam ao grupo de Cunrã: Salmos de ações de graças, o Livro da Guerra, os comentários sobre trechos das Escrituras, etc. Estes últimos nos oferecem uma visão da natureza e das crenças da comunidade de Cunrã.
Perto dos penhascos no planalto aluvial que domina as praias do Mar Morto há os alicerces de um prédio antigo e complexo, muitas vezes chamado de "mosteiro". Este foi totalmente escavado durante várias estações, e isto tem desvendado informações importantes quanto à natureza, ao tamanho e à data da comunidade de Cunrã. As moedas achadas ali, juntamente com outros vestígios, têm oferecido indicações para fixar a data da comunidade entre 140 a.C. e 67 d.C. Os membros eram quase todos masculinos, embora que a literatura regulamente as condições para a admissão de mulheres e crianças. O número de pessoas que viviam ali ao mesmo tempo seria aproximadamente entre 200 e 400. Uns 2 km ao sul, em Ain Fexca, foram descobertos remanescentes de outras construções, cuja natureza não tem sido exatamente esclarecida. A água doce da fonte provavelmente foi usada para o plantio, e para outras necessidades da comunidade.
Pela literatura que a seita deixou, sabemos que o povo de Cunrã era judaico, um grupo que se separara da corrente central do judaísmo que se situava em Jerusalém, e que até criticava e mostrava hostilidade aos sacerdotes de Jerusalém. O fato de adotarem o nome "Filhos de Zadoque", levou alguns estudiosos a postular que os sectários de Cunrã fossem vinculados aos Zadoquitas ou Saduceus; outros estudiosos acreditam que seria mais correto identificá-los com os Essênios, uma terceira seita do judaísmo, descrita por Josefo e Fílon. Não é impossível que haja elementos de verdade em ambas estas teorias, e que tenha havido originalmente uma cisão na linhagem sacerdotal ou saducéia que aderiu ao movimento chamado dos hasideanos, os antepassados espirituais dos fariseus, seguida por outra separação posterior para formar uma seita fechada, separatista, parte da qual se situou em Cunrã. Devemos aguardar mais descobertas antes de procurar dar uma resposta final a este problemas complexos.
A comunidade dedicava-se ao estudo da Bíblia. A vida da comunidade era ascética, na sua mor parte, e suas práticas incluíam o banho ritual, que às vezes tem sido chamado batismo. Alguns estudiosos têm entendido que esta prática foi a origem do batismo de João Batista. Uma comparação do batismo de João com o dos cunranianos mostra, no entanto, que as duas práticas eram inteiramente distintas entre si. Isto sendo o caso, mesmo se João tivesse pertencido a esta comunidade (o que não se comprovou, e talvez nunca venha a ser provado), este deve ter desenvolvido distinções importantes na sua própria doutrina e prática do batismo.
Alguns estudiosos acreditam que haja elementos do zoroastrismo nos escritos de Cunrã, especificamente no que diz respeito ao dualismo e à angelologia. O problema é extremamente complexo. O dualismo do zoroastrismo desenvolveu-se consideràvelmente na era cristã, e por este motivo é precário argumentar que as crenças do zoroastrismo conforme hoje as conhecemos representem as crenças de um ou dois séculos antes de Cristo.
As descobertas de Cunrã são importantes para estudos bíblicos em geral. Não se pode tirar conclusões acerca do cânon, sendo que o grupo de Cunrã era cismático desde o princípio, e além disto, a ausência do Livro de Ester não implica necessariamente que rejeitava este Livro do Cânon. Quanto à matéria do texto do Antigo Testamento, os rolos do Mar Morto têm grande importância. O texto do Antigo Testamento Grego, ou Septuaginta, e as citações do Antigo Testamento no Novo, indicam que tenha havido outros textos além daquele que veio até nós (o Texto Massorético). O estudo dos rolos do Mar Morto revela claramente que, na época de serem produzidos, que seria mais ou menos na época da elaboração dos manuscritos bíblicos utilizados pelos autores do Novo Testamento, havia no mínimo três tipos de textos circulando: um pode ser chamado o precursor do Texto Massorético; o segundo estava intimamente relacionado com aquele utilizado pelos tradutores da Septuaginta; o terceiro era diferente de ambos. As diferenças não são grandes, e em passagem alguma envolvem assuntos de doutrina; mas para um estudo textual pormenorizado é importante que nos libertemos do conceito que o Texto Massorético seja o único texto autêntico. A verdade é que as citações do Antigo Testamento que se acham no Novo, dão margem para se compreender que não foi o Texto Massorético aquele que mais se empregava pelos autores do Novo Testamento. Precisamos qualificar estas declarações pela explicação que a qualidade do texto é diferente entre os vários livros do Antigo Testamento, e que há muito mais uniformidade no texto do Pentateuco do que em algumas outras porções da Bíblia Hebraica. Os rolos do Mar Morto têm feito uma grande contribuição para o estudo do texto dos Livros de Samuel.
No que diz respeito ao Novo Testamento, os rolos do Mar Morto são igualmente de grande importância. Obviamente, não existe nenhum texto do Novo Testamento nas descobertas de Cunrã, sendo que o primeiro Livro do Novo Testamento foi escrito muito pouco tempo antes da destruição da comunidade de Cunrã. Além disto, não há motivo algum para que alguma escrita neotestamentária tenha sido trazido a Cunrã. Por outro lado, há certas referências e pressuposições no Novo Testamento, mormente na pregação de João Batista e Jesus Cristo, e nas escritas de Paulo e João, que podem ser colocados contra um pano de fundo reconhecidamente semelhante àquele descrito nos documentos de Cunrã. Por exemplo, o pano de fundo gnóstico de certas escritas paulinas que antigamente foi considerado como situação histórica do gnosticismo grego do segundo século d.C. — o que implicaria numa data posterior para a composição da Epístola aos Colossenses — reconhece-se agora como sendo o gnosticismo judaico do primeiro século d.C. ou ainda antes da era cristã. Semelhantemente, o estilo do Quarto Evangelho revela-se como sendo palestiniano e não helenístico.
Muita coisa tem sido escrito no assunto do relacionamento entre Jesus Cristo e a comunidade de Cunrã. Não há evidência nos documentos de Cunrã que Jesus tenha sido membro da seita, e nada há no Novo Testamento que exija tal ponto de vista. Bem ao contrário, a maneira de Jesus encarar o mundo, e mais especialmente, Seu próprio povo, é diametralmente oposta à cosmovisão de Cunrã, e podemos declarar, sem medo de errar, que Jesus não tenha sido membro daquele grupo em tempo algum. Pode ter sido alguns discípulos que tenham surgido de um passado deste tipo, mais especificamente os discípulos que antes seguiam a João Batista, mas há muita falta de provas neste assunto. A tentativa de comprovar que o Ensinador da Retidão de Cunrã tenha servido como padrão da descrição de Jesus que se registra nos Evangelhos não se corrobora pelo estudo dos rolos do Mar Morto. O Ensinador da Retidão era um jovem magnífico com grandes ideais, que morreu cedo demais; não há, no entretanto, nenhuma declaração clara que tenha sido condenado à morte, nem se pode inferir que tenha sido crucificado para então ressurgir dentre os mortos, e que os sectários de Cunrã tenham aguardado sua volta. A diferença entre Jesus e o Ensinador da Retidão destaca-se nitidamente em vários pormenores: o Ensinador da Retidão nunca foi considerado o Filho de Deus ou Deus Encarnado; sua morte não se revestiu de natureza sacrificial; a refeição sacramental (se realmente tenha sido isto mesmo), não era considerada como sendo uma lembrança da sua morte nem como uma promessa da sua volta, e nada tinha que ver com a remissão dos pecados. É óbvio que no caso de Jesus Cristo, todos estes aspectos são claramente declarados, não só uma vez, mas repetidas vezes no Novo Testamento, e, afinal, são doutrinas fundamentais sem as quais não poderia existir a fé cristã."


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Fonte:
"Manual Bíblico: um comentário abreviado da Bíblia", por Henry H. Halley. Tradução de David A. de Mendonça. Sociedade Edições Vida Nova. Edição atualizada por Gordon Chown. São Paulo, 1971.

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