domingo, 19 de junho de 2016

O que é religião?

O que é religião?
Consideremos o alcance e o significado da palavra "religião". O que pensam as pessoas quando falam sobre religião, ou sobre os religiosos?
Você acha que a religião é "uma falsa crença persistente, mantida mesmo em face de fortes provas em contrário". Eu tenho certeza de que você percebe que isso dificilmente esgota o tema do significado para a maioria das pessoas, e muito menos para os que o estudam academicamente — teólogos, filósofos, historiadores e antropólogos. Religião, por certo, só em parte se envolve com crenças ou doutrinas reais, e é raro que tais crenças, se verdadeiramente religiosas, sejam consideradas (exceto por fundamentalistas) como explicações literais do mundo.
No início de seu livro, você insiste que a religião deve ser científica ou empiricamente comprovável. No entanto, para a maioria dos que a têm estudado ao longo dos tempos, ela é um produto da imaginação, tanto quanto a arte, a poesia e a música. As atividades da religião, seus rituais, mitologias, hinos, meditações, orações, cânticos, poesia, imagens, parábolas, lendas, tabus e itens sacramentais (ou seja, os objetos do culto, como velas, incenso, óleos, vestes, água benta) são principalmente simbólicos, muitas vezes apelando a níveis profundos da memória popular. Símbolos poderiam ser descritos como fortes ou fracos, em lugar de verdadeiros ou falsos, na medida em que participam daquilo que tentam tornar inteligível. Se eu digo, por exemplo, que o pão é o sustento da vida, duvido que você afirme que isso é "uma falsa crença, mantida mesmo em face de fortes provas em contrário". Mas é provável que use esse argumento contra o ritual do pão da Eucaristia, que envolve um simbolismo dinâmico semelhante de presença real.
O poeta Samuel Taylor Coleridge, ao contemplar, um dia, as fontes da praça de São Pedro, em Roma, se viu dominado pela força da tangível metáfora natural, a permanência da forma, a matéria em constante mutação — que ele percebeu como um símbolo vivo do infinito contido no finito: e ali estava a fonte, sua forma estável e seu fluxo permanente, e a imagem dela ele levou consigo. Muitos dos símbolos e rituais da religião são versões formalizadas daquela percepção de Coleridge: do fogo da Páscoa às águas do batismo, do incenso às libações dos ritos fúnebres.
É interessante que um dos grandes sociólogos da religião, Emile Durkheim, afirme corajosamente em seu livro The Elementary Forms ofthe Religious Life (As formas elementares da vida religiosa) que "na realidade, não existem religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras a seu próprio modo: todas respondem, embora de diferentes formas, às condições determinadas da existência humana." O mesmo poderia ser dito, é claro, acerca da arte. Rituais e símbolos religiosos, desde a aurora da história humana, registravam e celebravam nascimento, crescimento, velhice, morte e sepultamento, a formação de famílias e comunidades, os encontros para festas, para o trabalho na lavoura, para caçadas e viagens, os ciclos de vida de plantas, animais e seres humanos, as mudanças de estações, as rotações diurnas, lunares e anuais, o mistério da existência. As grandes religiões do mundo, provadas e testadas, como fontes de florescimento ao longo de três milênios, continuam a desempenhar e celebrar essas experiências cíclicas e os mistérios subjacentes. É excitante pensar no aprofundamento de nossa percepção do mundo através da dimensão científica, em especial da cosmologia e biologia; todavia, a ciência não consegue abranger os símbolos multidimensionais da religião que, por sua natureza, resistem à explicação e ao controle.
Talvez lhe interesse, ademais, que uma longa tradição da filosofia vê a religião como uma espécie de "virtude". Tomás de Aquino, o filósofo medieval da igreja, localiza essa virtude na área da justiça. Justiça é, certamente, uma questão de dar às pessoas e às coisas o que lhes é devido; religião é uma questão de dar a Deus o que Lhe é devido. Como no caso de todas as virtudes (de acordo com Aristóteles, o grande filósofo da Grécia antiga), é possível cair da corda bamba da conduta virtuosa de duas formas. A conduta que não apresenta a virtude da religião é a que ou trata Deus como uma criatura, ou trata uma criatura como Deus — idolatria.
Foi somente após o Iluminismo que a palavra "religião" passou a significar principalmente um aspecto da conduta ou cultura humana. E nos conflitos entre o trono e o altar, estado e igreja, políticos e clero, emergiu um esforço planejado e determinado para descrever a religião como atividade particular, puramente pessoal. A batalha para banir a religião para a esfera privada continua até hoje. Você desejaria vê-la banida da esfera privada também.

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Fonte:
O Anjo de Darwin: uma resposta seráfica a Deus um Delírio, por: John Cornwell.  Imago Editora. São Paulo, 2007, págs. 41-43

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