domingo, 26 de junho de 2016

A psicologia comparada e a questão da alma

A psicologia comparada e a questão da alma
A nossa lei do pitecômetro encontra a mais viva resistência num domínio da fisiologia nervosa, no tocante à origem da alma. A maravilhosa "alma do homem" seria, segundo se afirma, uma "substância" completamente especial, e muitos são os que consideram como impossível que se tenha desenvolvido historicamente a partir da "alma símia". Mas, durante estes últimos dez anos, as notáveis descobertas da anatomia comparada revelaram-nos que a histologia como a anatomia macroscópica do cérebro são as mesmas, tanto no homem como no resto dos antropoides. As escassas diferenças de volume e de forma das diferentes partes do cérebro são menores que as diferenças correspondentes que existem entre os antropoides e os catirrinos inferiores, sobretudo os cinocéfalos.
Em segundo lugar, a ontogenia comparada ensina-nos que a estrutura extremamente complicada do cérebro humano provém de uma mesma forma simples, como acontece nos demais vertebrados, quer dizer, de cinco vesículas, situadas umas atrás das outras, no embrião. A simplicidade dessa disposição embrionária, — a forma particular do cérebro nos primatas — é a mesma no homem e nos antropoides.
Em terceiro lugar, a fisiologia comparada mostra-nos, tanto pela observação como pela experiência, que todas as funções cerebrais — tanto a consciência e o que se chama de faculdades superiores, como as simples ações reflexas — têm por condição, no homem, os mesmos fenômenos físicos e químicos no sistema nervoso dos mamíferos restantes.
Enfim, em quarto lugar, sabemos que, por intermédio da patologia comparada, as perturbações denominadas "enfermidades do espírito" têm por causa modificações físicas de zonas determinadas do cérebro, tanto no homem como nos mamíferos mais próximos deste.
Um exame crítico imparcial confirma, igualmente, aqui a lei de Huxley: as diferenças psicológicas entre o homem e os antropoides são menores do que as que existem entre estes e os símios inferiores. Este fator psicológico corresponde exatamente às investigações anatômicas, que nos permitiram conhecer as diferenças de estrutura do córtex cerebral — esse "órgão da alma" —, cuja importância não se pode negar. A elevada significação desta circunstância torna-se mais clara quando se consideram as extraordinárias diferenças da vida psíquica dentro da mesma espécie humana. Vemos no cume um Goethe ou um Shakespeare, um Darwin e um Lamarck, Spinoza e Aristóteles, e, no mais baixo da escala, encontramos os weddas e os akkas, os australianos e os drávidas, os bosquímanos e os patagões. A vida psíquica apresenta diferenças infinitamente maiores, quando se compara   aqueles   espíritos   geniais   e   esses   representantes degradados da humanidade, do que entre estes e os antropoides.
Se hoje a "alma humana" é considerada por muitos como um "ser" especial, é porque torna-se argumento decisivo contra a "maldita" teoria da origem do homem no símio; ela explica-se, por um  lado,  pelo  estado ainda rudimentar do que se chama "psicologia"   e,   por   outro,   pela   crença   tão   difundida   da "imortalidade da alma". Essa "ciência", que se fundamenta em manuais e cátedras acadêmicas, sob o nome de psicologia, não é uma verdadeira ciência empírica do espírito, uma fisiologia do órgão da alma.  É uma metafísica absolutamente fantástica, formada por uma introspecção impossível de classificar, com comparações desprovidas de espírito crítico, observações mal compreendidas e experiências incompletas, erros especulativos e dogmas religiosos.
A maioria dos chamados "psicólogos" não conhece sequer a estrutura íntima do cérebro, nem dos órgãos dos sentidos — tão úteis, maravilhosos e complicados — os únicos que permitem a atividade psíquica, tanto no homem como nos outros animais. A maior parte deles ainda não tem conhecimentos sobre os dados significativos   da   psicologia   experimental   moderna   e   da psiquiatria, ou ignora-os intencionalmente; não sabe mesmo a localização dos diferentes meios de atividade do espírito e sua dependência da constituição normal de certas zonas cerebrais.
Os surpreendentes   resultados   obtidos   pela   anatomia 22   histológica e a ontogenia do cérebro humano, auxiliados pela fisiologia experimental e pela patologia, encontram-se entre as descobertas mais importantes do século XIX. É certo que até agora permaneceram num círculo restrito, fato que se deve, em parte, à resistência passiva da "psicolástica" reinante e à dificuldade de compreensão da arquitetura tão complicada do nosso encéfalo. A localização das faculdades superiores, no córtex cerebral, foi demonstrada, há dez anos, em estudos de Goltz, de Munk, de Wernickx, de Edinger etc.Recentemente, Paul Flechsig (1894) conseguiu delimitar, de maneira mais exata, as diversas partes das zonas cerebrais. Ele demonstrou que na substância cinzenta do cérebro há quatro regiões, correspondentes aos órgãos dos sentidos, ou quatro esferas de sensibilidade, muito diferentes umas das outras: a esfera da sensibilidade geral, no lóbulo parietal; a do olfato, no lóbulo frontal; a da visão, no lóbulo occipital; a audição, no lóbulo temporal. Entre estes quatro focos sensitivos encontram-se os quatro grandes focos do pensamento, ou centros de associação.
São estes os verdadeiros órgãos da vida psíquica, os instrumentos da atividade do espírito, que permitem o pensamento e a consciência: à frente, o cérebro frontal, ou centro frontal de associação; atrás dele, um pouco mais acima, o cérebro parietal de associação; atrás e abaixo, o cérebro principal, ou grande centro de associação occipital-temporal (o mais importante de todos); finalmente, mais profunda, a ínsula de Reil, que constitui o centro de associação insular ou médio. Estes quatro focos, de estruturas particulares e bastante complicadas, diferenciados dos centros sensitivos a eles ligados, constituem os verdadeiros órgãos do pensamento, os únicos instrumentos reais da nossa vida psíquica.
O maior obstáculo ao reconhecimento do grande progresso da psicologia natural consiste no dogma da "imortalidade da alma", ainda arraigado em muitos espíritos. Esta desgraçada superstição, criada pelos povos bárbaros e conservada por meio dos mais diversos mitos, havia sido combatida e derrubada no século VI a.C. pela filosofia naturalista da escola jônica. Ela era até desconhecida das religiões mosaica e budista. Somente devido às especulações místicas de Platão, de Cristo e Maomé se desenvolveu de uma maneira sistemática. Favorecida pela decadência da civilização clássica helénica e pela difusão da hierarquia papista, durante as trevas da Idade Média, esta crença dominou, no transcorrer de mil amos, todas as classes ditas intelectuais. E ainda que alguns filósofos livres-pensadores tenham se esforçado, frequentemente, por combatê-la sobretudo durante a Reforma, ao demonstrarem a ausência de fundamento do dogma da imortalidade, a sua refutação científica definitiva estava reservada à concepção monista da Natureza, que nasceu na metade do século XVIII.
A lei universal da conservação da matéria e da energia domina a vida psíquica dos animais e do homem, tanto quanto os outros fenômenos naturais. Parece-nos, atualmente, completamente absurdo que se queira fazer uma única exceção em relação a esta lei suprema da Natureza, a favor da fisiologia nervosa de um só mamífero, que se desenvolveu, lenta e progressivamente, muitos milhões de anos depois do aparecimento da vida orgânica, e que tem por antepassados imediatos toda uma série de primatas terciários.
Como fomos conduzidos à necessidade de falar do valor universal desta lei da substância, não podemos também deixar de recordar o apoio que ela recebeu dos notáveis progressos, por parte da zoologia, nos últimos quarenta anos. Assim como o darwinismo demonstrou o papel desempenhado pela casualidade mecânica no desenvolvimento orgânico — a sua conclusão mais importante —, a lei do pitecômetro provou o interesse geral desta, inclusive no domínio da antropologia; não só o dogma da imortalidade pessoal da alma é incompatível com a lei da substância, como acontece o mesmo com os outros dogmas, intimamente ligados a esse: o da liberdade da vontade humana, e o da existência de um deus pessoal, semelhante ao homem, que criou, conserva e rege o universo.
Grande número de filósofos contemporâneos pensa que estes três dogmas centrais — fundamentos principais da concepção mística e dualista do universo — não se deixaram comover pêlos recentes progressos das ciências naturais. Ainda, a este propósito, a fé se antepõe à filosofia crítica de Emmanuel Kant, esquecendo que os fundamentos a priori desta eram puramente dogmáticos, o que tem muita importância. As místicas e brumosas figuras destes três fantasmas centrais desvanecem-se, ante o esplêndido raio de sol da substância da proposição do pitecômetro, que se expande sobre o enigma do universo.


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Fonte:
A Origem do Homem, por: Ernst Haeckel. Global Editora. São Paulo, 1989, págs. 21-24.

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