domingo, 19 de junho de 2016

O método de estudo da sociologia segundo Durkheim

O   método   de   estudo   da sociologia segundo Durkheim
Ao procurar conhecer a vida social, uma das preocupações de Durkheim era avaliar qual método permitiria fazê-lo de maneira científica, superando as deficiências do senso comum. Sua conclusão foi de que, em busca da objetividade, ele deveria assemelhar-se ao adotado pelas ciências naturais, mas nem por isso ser o seu decalque, porque os fatos que a Sociologia examina pertencem ao reino social, têm peculiaridades que os distinguem dos fenômenos da natureza. Tal método deveria ser estritamente sociológico. Os cientistas sociais investigariam possíveis relações de causa e efeito e regularidades com vistas à descoberta de leis e mesmo de "regras de ação para o futuro", observando fenômenos rigorosamente definidos.
Primeiro, há que estudar a sociedade no seu aspecto exterior. Considerada sob esta perspectiva, ela surge como que constituída por uma massa de população, de uma certa densidade, disposta de determinada maneira num território, dispersa nos campos ou concentrada nas cidades, etc.: ocupa um território mais ou menos extenso, situado de determinada maneira em relação aos mares e aos territórios dos povos vizinhos, mais ou menos atravessado por cursos de água e por diferentes vias de comunicação que estabelecem contato, mais ou menos íntimo, entre os habitantes. Este território, as suas dimensões, a sua configuração e a composição da população que se movimenta na sua superfície são naturalmente fatores importantes na vida social; é o seu substrato e, assim como no indivíduo a vida psíquica varia consoante a composição anatômica do cérebro que lhe está na base, assim os fenômenos coletivos variam segundo a constituição do substrato social.
Durkheim estabelece regras para que os sociólogos procedam à observação dos fatos sociais. A primeira delas e a mais fundamental é considerá-los como coisas, e seus corolários são: afastar sistematicamente as prenoções; definir previamente as coisas de que trata por meio de caracteres exteriores que lhes são comuns; considerá-las independentemente de suas manifestações individuais, da maneira mais objetiva possível. Analisar os fatos sociais como "coisas" é toma-los como uma realidade externa que, se bem desconhecida, vinha sendo tomada até então como se o investigador se movesse "entre coisas imediatamente transparentes ao espírito, tão grande é a facilidade com que o vemos resolver questões obscuras". Com isso, o pesquisador não fazia mais do que expressar suas prenoções, as quais acabam tornando-se "como que um véu interposto entre as coisas e nós". Tais proposições acarretaram acaloradas discussões na época, obrigando Durkheim a escrever um longo prefácio à segunda edição de seu livro As Regras do Método Sociológico, para esclarecer e reafirmar sua posição inicial.
A coisa se opõe à ideia (...). É coisa todo objeto.do conhecimento que a inteligência não penetra de maneira natural (...) tudo o que o espírito não pode chegar a compreender senão sob a condição de sair de si mesmo, por meio da observação e da experimentação, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis para os menos visíveis e profundos.
A coisa pode ser reconhecida
pelo sintoma de não poder ser modificada por intermédio de um simples decreto da vontade. Não que seja refratária a qualquer modificação. Mas não é suficiente exercer a vontade para produzir uma mudança, é preciso além disso um esforço mais ou menos laborioso, devido à resistência que nos opõe e que, outrossim, nem sempre pode ser vencida.
Assim como um cientista deve ter diante dos fatos uma atitude mental — partir do princípio de que desconhece completamente o que são — o sociólogo deve considerar que se acha diante de coisas ignoradas, porque "as representações que podem ser formuladas no decorrer da vida, tendo sido efetuadas sem método nem crítica, estão destituídas de valor científico e devem ser afastadas". Mas o senso comum pode ser depurado e se
os homens não esperaram o advento da ciência social para formularem ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado e a própria sociedade; pois não podiam passar sem elas em sua existência. Ora, é sobretudo na Sociologia que as prenoções, para retomar a expressão de Bacon, estão em estado de dominar os espíritos e de se substituir às coisas. Com efeito, as coisas sociais só se realizam através dos homens; são um produto da atividade humana. Não parecem, pois, constituir outra coisa senão a realização de ideias, inatas ou não, que trazemos em nós; não passam da aplicação dessas ideias às diversas circunstâncias que acompanham as relações dos homens entre si. A organização da família, do contrato, da repressão, do Estado, da sociedade aparecem assim como um simples desenvolvimento das ideias que formulamos a respeito da sociedade, do Estado, da justiça, etc. Por conseguinte, tais fatos e outros análogos parecem não ter realidade senão nas ideias e pelas ideias; e como estas parecem o germe dos fatos, elas é que se tornam, então, a matéria peculiar à Sociologia.
A dificuldade que o sociólogo enfrenta para libertar-se das falsas evidências, formadas fora do campo da ciência, deve-se a que influi sobre ele seu sentimento, sua paixão pelos objetos morais que examina. Mas, mesmo que tenha preferências, quando investiga, o sábio
se desinteressa pelas consequências práticas. Ele diz o que é; verifica o que são as coisas e fica nessa verificação. Não se preocupa em saber se as verdades que descubra são agradáveis ou desconcertantes, se convém às relações que estabeleça fiquem como foram descobertas, ou se valeria a pena que fossem outras. Seu papel é o de exprimir a realidade, não o de julgá-la.
Por isso é que uma das bases da objetividade de uma ciência da sociedade teria que ser, necessariamente, a disposição do cientista social a colocar-se "num estado de espírito semelhante ao dos físicos, químicos e fisiologistas quando se aventuram numa região ainda inexplorada de seu domínio científico" assumindo, desse modo, sua ignorância, livrando-se de suas prenoções ou noções vulgares (que já haviam sido combatidas por Bacon) e adotando, enfim, a prática cartesiana da dúvida metódica. Essa atitude leva apenas à convicção de que
no estado atual dos nossos conhecimentos, não sabemos com certeza o que são Estado, soberania, liberdade política, democracia, socialismo, comunismo, etc. e o método estatuiria a interdição do uso destes conceitos enquanto não estivessem cientificamente constituídos. E todavia os termos que os exprimem figuram sem cessar nas discussões dos sociólogos. São empregados correntemente e com segurança, como se correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas, quando não despertam em nós senão misturas indistintas de impressões vagas, de preconceitos e de paixões.


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Fonte:
Um Toque de Clássicos: Durkheim, Marx e Weber, por: Tânia Quintaneiro, Maria Lígia de Oliveira Barbosa e Márcia Gardênia de Oliveira. Editora UFMG. Belo Horizonte, págs. 24-27.

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