domingo, 26 de junho de 2016

Os Quatro Amores: Eros

Eros
Dou naturalmente o nome de Eros àquele estado que chamamos de "estar amando"; ou, se preferir, àquela espécie de amor em que os amantes estão "envolvidos". Alguns leitores devem ter-se surpreendido quando num capítulo anterior descreve a Afeição como o amor em que nossa experiência parece aproximar-se mais daquela dos animais. Alguém poderia então perguntar: "Não é certo que nossas funções sexuais nos aproximam igualmente deles?" Isto é verdadeiro no que se refere à sexualidade humana de modo geral.
Não vou porém ocupar-me da sexualidade humana em si, pois ela faz parte de nosso assunto somente quando se torna um ingrediente do sentimento complexo de "estar amando". Que a experiência sexual pode ocorrer sem Eros, sem estar "amando", e que Eros inclui outros aspectos além da atividade sexual, tenho como certo. Se quiser colocar a questão assim, não estou pesquisando a sexualidade comum a nós e aos animais ou mesmo comum a todos os homens, mas uma variação humana singular da mesma que se desenvolve dentro do "amor" — a qual chamo de Eros. O elemento carnal ou sexualidade animal contido em Eros, pretendo chamar de Vênus (seguindo um uso antigo). Chamo de Vênus aquilo que é sexual, não num sentido obscuro e refinado, como os psicólogos poderiam explorar, mas num sentido perfeitamente óbvio. O que é tido como sexual por aqueles que experimentam a sensação, o que poderia ser provado como sexual mediante as mais simples observações.
A sexualidade pode operar sem Eros ou como parte de Eros. Apresso-me a acrescentar que faço a distinção apenas para limitar nossa pesquisa e sem quaisquer implicações morais. Não estou de forma alguma adotando a ideia popular de que é a ausência ou presença de Eros que torna o ato sexual "impuro" ou "puro", degradado ou belo, legal ou ilegal. Se todos os que se deitarem juntos sem estar no estado de Eros fossem abomináveis, nós todos viemos de uma linhagem espúria. As épocas e lugares em que o casamento depende de Eros são uma minoria. A maior parte de nossos ancestrais se casaram cedo com parceiros escolhidos por seus pais por razões que nada tinham a ver com Eros. Prestavam-se ao ato sem qualquer outro estímulo além do simples desejo animal. E agiram bem; maridos e mulheres cristãos honestos, obedecendo aos pais, cumprindo suas "obrigações conjugais", e educando suas famílias no temor do Senhor.
Este mesmo ato, porém, praticado sob a influência de um Eros ardente e sublime, que reduz o papel dos sentidos a uma consideração menor, pode, de maneira oposta, revelar-se como simples adultério, envolvendo a traição da esposa, do marido, ou de um amigo, profanando a hospitalidade e resultando no abandono, dos filhos.
Deus não se agrada do fato de a distinção entre um pecado e um dever depender de sentimentos nobres. Este ato, como qualquer outro, é justificado ou não por critérios bem mais prosaicos e explicáveis: pelo cumprimento ou quebra de promessas, pela justiça ou injustiça, pela bondade ou egoísmo, pela obediência ou desobediência. O meu tratamento exclui a simples sexualidade — sexualidade sem Eros — com bases que nada têm a ver com a moral, por ser irrelevante ao nosso propósito.
Eros (a variação humana) constitui para o evolucionista algo que surgiu de Vênus, uma complicação e desenvolvimentos tardios do impulso biológico imemorial. Não devemos supor, entretanto, que isto aconteça necessariamente na consciência do indivíduo. Uns provavelmente irão sentir a princípio um mero apetite sexual por uma mulher e depois passam, num estágio posterior, a "sentir amor por ela". Mas duvido que isto seja comum. No geral, o que acontece primeiro é simplesmente uma deliciosa preocupação com o ser amado — uma preocupação geral, inespecífica, com a mulher total. O homem nestas condições na verdade não tem tempo para pensar em sexo, pois está muito ocupado pensando numa pessoa. O fato de ela ser uma mulher é muito menos importante do que ser ela mesma. Ele está cheio de desejo, embora este não tenha uma tonalidade sexual. Se lhe perguntasse o que quer, sua resposta sincera geralmente seria: "Continuar pensando nela". É o amor contemplativo. E quando mais tarde desperta o desejo explicitamente sexual, não irá sentir (a não ser que teorias científicas estejam a influenciá-lo) que desde o princípio fora essa a razão de tudo. Ele irá sentir com muito maior probabilidade que a maré enchente de Eros, tendo demolido muitos castelos na areia e ilhado muitas rochas, encheu agora esta parte de sua natureza com uma sétima onda triunfante — a pequena poça de sexualidade comum que se encontrava na praia antes de chegar a maré. Eros se introduz nele como um invasor, dominando e reorganizando, uma a uma, as instituições de um país conquistado. Pode ter tomado muitas outras antes de chegar ao sexo nele; e irá reorganizá-lo também.
Ninguém indicou tão concisa e corretamente a natureza dessa reorganização do que George Orwell, que a rejeitava e preferia a sexualidade em sua condição primitiva, incontaminada por Eros. No livro 1984 o seu terrível herói (muito menos humano do que os heróis de quatro patas de seu excelente Animal Farm!), antes de penetrar a heroína, exige uma certeza: "Você gosta de fazer isso?" pergunta, "Não simplesmente de mim, mas da coisa em si?" Não fica satisfeito enquanto não obtém a resposta: "Adoro". Este pequeno diálogo define a reorganização. O desejo sexual, sem Eros, deseja a coisa em si; Eros deseja o ser amado.
A coisa é um prazer transitório; isto é, um acontecimento que ocorre no interior de nosso próprio corpo. Usamos uma expressão idiomática infeliz quando dizemos a respeito de um homem sensual rondando as ruas que ele "quer uma mulher". Num sentido rigoroso da ideia, uma mulher é justamente o que ele não quer. Ele deseja um prazer em que a mulher acontece ser a peça necessária. O quanto ele se preocupa com a mulher como tal pode ser medido pela sua atitude cinco minutos depois do prazer (ninguém guarda o maço de cigarros depois de tê-los fumado). Eros, por sua vez, faz com que o homem não deseje uma simples mulher, mas uma mulher especial. De algum modo misterioso mas indiscutível, o amante deseja a amada, ela mesma, e não o prazer que lhe pode proporcionar. Amante nenhum no mundo jamais procurou os abraços da mulher amada como resultado de um cálculo, embora inconsciente, de que seriam mais agradáveis do que os de qualquer outra.
Se ele tivesse pensado no assunto, sem dúvida esperaria que fosse assim, mas levantar a questão seria sair por completo do mundo de Eros. O único homem que, segundo sei, fez essa pergunta foi Lucrécio, mas ele não se achava certamente apaixonado na ocasião.
Sua resposta é digna de interesse. Aquele austero sibarita era de opinião que o amor na verdade prejudica o prazer sexual. A emoção era uma distração. Ela prejudicava a receptividade fria e crítica de seu paladar. (Um grande poeta; mas "Senhor, que grandessíssimos animais foram os romanos!")

[...]


 ---
Fonte:
Os Quatro Amores, por: C. S. Lewis. Tradução: Neyd Siqueira. Editora Mundo Cristão. São Paulo, 1986, págs. 72-75.

Nenhum comentário:

Postar um comentário