O legado na ficção ocidental
De
Dante a Kafka, um mapa do legado bíblico na tradição literária
Por: Flávio
Aguiar
A imagem
central da Bíblia é a da transformação, pelo menos em sua tradução evangélica.
A água transforma-se em vinho, o vinho em sangue. Uma coisa pode vir a ser
outra: essa é a grande lição bíblica, ou uma coisa pode se revelar como outra.
Na Bíblia
encontramos mutações extraordinárias a todo momento. Javé cria o mundo,
partejando-o da treva, separando a terra da água e modelando um jardim, onde
põe o homem e a mulher. Mas logo a seguir Eva cria o seu mundo, recriando a
própria criação.
É certo que
a serpente, imagem de uma Lilith ou Lâmia, espírito maligno, a induz ao feito;
mas é ela, Eva, que assim escolhe ser, retraça o seu destino e o de Adão, e
inaugura a história humana.
Séculos e
séculos, e livros e livros depois, uma outra mulher se transfigura em mãe do
Messias; é o anjo que anuncia a gravidez e assim mesmo a engravida pela
palavra: "Ave, Maria, bendita sois vós...". Mas é ela que acolhe o
destino e revoluciona, dessa forma, não só o mundo, mas o destino das mulheres,
ainda que seu exemplo posterior tenha sido usado para construir uma aura de
submissão característica de uma sociedade patrícia e patriarcal.
Que
diferença em relação ao brilho dos personagens da tradição helena! Aquiles
brilha para nós porque será sempre Aquiles, Odisseu será sempre o astuto
inventor do cavalo da traição, Heitor é extraordinário porque permanece ele
mesmo até o fim.
A melhor tradução
dessa permanência do caráter na cultura helênica nos deu o teatro grego, com
suas máscaras. A máscara não esconde, mas revela o caráter do personagem. O
personagem é a persona que reveste o ator. Édipo é orgulhoso porque é a
encarnação do orgulho; com isso derrota a Esfinge, mas, ao mesmo tempo, por não
poder ser de outra maneira, vai ao encontro de seu trágico destino. Os perfis
dessa tradição são homens e mulheres extraordinários em sua maioria, colocados
em situações de exposição extrema.
Já na
Bíblia, desde o Antigo Testamento até o Novo, qualquer ser humano, por mais
ínfimo que seja, espelha a humanidade como um todo. O "povo
escolhido" passa escravizado quase a maior parte do tempo. Caim era
lavrador e Abel, pastor. Abraão, o patriarca, era um camponês. Noé foi um
carpinteiro (entre outras coisas) que se fez armador ao construir a arca;
depois do dilúvio assou toda a carne que levara nela sob a forma de animais
vivos; tornou-se vinhateiro e se embebedou. E assim por diante: Moisés foi
príncipe, mas era filho de escrava. Cristo semeou entre pescadores, pequenos
funcionários como coletores de impostos, prostitutas, pobres e doentes.
Esta força
da transformação do destino e do simples em grandioso, aponta Frye em várias
passagens, faz parte do principal legado da Bíblia à tradição da literatura do
Ocidente, ao lado do travejamento de imagens e de situações que se espelham e
se resolvem umas às outras. Esteve presente em grandes momentos da constituição
das nossas literaturas.
Quase ao fim
do Medievo, Dante a capta ao retraçar o destino humano nas profundezas do
Inferno, que é o primeiro dos reinos que ele visita ao começar seu périplo
alegórico pelo outro mundo. Pela ortodoxia cristã, nessa altura já
consubstanciada na Suma Teológica de
São Tomás de Aquino, os condenados do Inferno estavam fadados ao silêncio
eterno e à treva total, exceto pelo brilho nos olhos do fogo interior que os
consumia.
Entretanto
Dante lá desce, ouve-lhes as histórias, e rompe o silêncio prometendo contá-las
na superfície, como faz no poema. As passagens pelo Purgatório e depois pelas
esferas celestes são igualmente extraordinárias e seminais para a nossa
tradição literária; mas não têm a grandiosidade dramática contida nas palavras
candentes dos personagens infernais, que reivindicam a radicalidade de suas
histórias humanas, num movimento que está prestes a romper para sempre a
moldura medieval da estabilidade sempiterna.
No fundo do
círculo dos sedutores, Odisseu conta a Dante da viagem que empreendeu pelo
Atlântico afora, em busca do conhecimento. A viagem lhe terminou mal; mas em
compensação era o prenúncio do Novo Mundo que se estava por inaugurar.
Vivendo num
momento revolucionário, o poeta inglês John Milton, no século XVII, captou a
essência da transformação do que estava se construindo no seu Paraíso Perdido. Essa marca se encontra
tanto na assembleia dos demônios, depois da Queda, quando eles debatem como
devem retomar sua luta contra Deus, como no modo como conta o destino de Eva e
Adão, que se entregam à radicalidade dos sentimentos humanos, demasiadamente
humanos.
Depois de
comer do fruto da danação, Eva pede a Adão que se salve, salvando assim também
o Paraíso. Ela age assim por amor: não quer que o companheiro desfrute do seu
destino de perdição. Entretanto, pelo mesmo amor, Adão diz que não poderá mais
viver sem ela, preferindo perder-se a perdê-la.
Em outro
quadrante revolucionário, o do século XVIII, o poeta também inglês William
Blake vai inaugurar um redesenho do mundo poético, que espelha a extraordinária
transformação que a independência das colônias americanas prenuncia e que
depois a Revolução Francesa consagra em solo europeu. Não mais a estabilidade
das altas esferas atrai os poetas como material poético; ao contrário, é o fogo
subterrâneo, a forja das rupturas históricas que, com seu ímpeto
revolucionário, descortina o horizonte do possível, como no seu poema "O
casamento do céu e do inferno".
Ainda hoje
podemos invocar a palavra bíblica para nos ajudar a decifrar os signos do nosso
tempo. O que é o destino de Joseph K, em O
processo, de Kafka, senão a perda do ser humano num labirinto completamente
dessacralizado, cujas trilhas não libertam, só esmagam? Não parece ser este
também o destino da contemporaneidade, comprimida entre fanatismos que, em nome
de diferentes Bíblias, inclusive uma que se diz laica e republicana, se perde
em meio a guerras e ocupações infindas, lembrando a esterilização a que se quis
levar Sansão?
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Fonte:
Revista Biblioteca Entre Livros. Nº 2: A Bíblia Muito Além da Fé. Duetto Editorial. São Paulo, págs. 65-66.
Fonte:
Revista Biblioteca Entre Livros. Nº 2: A Bíblia Muito Além da Fé. Duetto Editorial. São Paulo, págs. 65-66.
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